Lembrança de risco
Alcir Pécora
Passageiro do Fim do Dia, de Rubens Figueiredo (Companhia das Letras), tem como eixo básico de ação uma viagem de ônibus, num final de expediente de sexta-feira, na qual Pedro se dirige a um subúrbio distante para passar o fim de semana com a namorada, Rosane. Pedro tem quase 30 anos, é dono de sebo, mora com a mãe num pequeno apartamento próprio, enquanto Rosane é faz-tudo de uma firma de advocacia e mora com a tia e o pai, aposentado por invalidez, em lote obtido por doação.
Acresce que a viagem é tumultuada, desde o início, por rumores, cada vez mais tensos, de que estariam ocorrendo depredações no ponto final. Pedro tenta ocupar o tempo com as notícias ouvidas no rádio de pilha e com a leitura de episódios de Viagem de um Naturalista ao Redor do Mundo, de Charles Darwin, relativos a sua passagem, em 1831, pelas mesmas áreas do Rio de Janeiro cruzadas agora pelo ônibus.
Assim, uma leitura alegórica insinua-se no paralelismo entre a viagem de ônibus ao subúrbio e a viagem de Darwin, dramatizada em torno do episódio no qual o cientista, ao tentar se comunicar, gesticulando, com um escravo que supõe idiota, surpreende-se horrorizado com a sua reação de alçar as mãos como para se proteger da violência iminente do proprietário.
O caminho da compreensão da violência embutida na própria posição do viajante, por mais simpático que seja à vítima, é detidamente percorrido pelo romance.
O eixo econômico das ações, narradas em terceira pessoa, dá ensejo, contudo, a uma proliferação de episódios intercalados. Eles vão e vêm, com base nas observações visuais do narrador ao longo do trajeto, cujos retratos rápidos nada concedem à beleza fotogênica, ou nos devaneios de Pedro, disparados a partir de lembranças apenas suas ou ligadas a Rosane.
Desse modo, surgem os eventos do dia em que foi atropelado pelo cavalo de um policial num ataque contra ambulantes, a cirurgia complicada, a ação indenizatória do amigo advogado, que lhe valeu o dinheiro para a compra do sebo.
Os seus clientes são outro núcleo de memórias: o juiz aposentado, a juíza liberal, o advogado enricado, os meninos de rua que olham concupiscentes para a casa de jogos eletrônicos ao lado.
Nesse conjunto, menos interessante que o do subúrbio, destaca-se, entretanto, o episódio mais extraordinário do livro: a descrição de várias etapas de um videogame disputado por dois meninos que matam aula.
O acompanhamento cego do jogo, uma vez que o narrador não conhece suas regras nem seus objetivos, obtém aos poucos, de leve, uma demonstração cabal da boçalidade normalizada. E o que é melhor: sem carecer de explicação, pois o estilo indireto livre, que acompanha a cabeça de Pedro, constitui um narrador inseguro que, ao arriscar explicações insuficientes e alternativas para os eventos que não entende, paradoxalmente, por vezes, acaba produzindo explicações demais.
O núcleo de lembranças ligado a Rosane expõe o estado de abandono crônico dos subúrbios: infindáveis cadastramentos, em geral frustrados, para obter casa, cupons de supermercado, seguros-desemprego; doenças do trabalho; desgraças da vizinhança: balas perdidas, desemprego, drogas etc. Histórias conhecidas de sobrevivência precária – e de solidariedade, apesar de tudo.
Nesse ponto, é fácil reconhecer o gênero social do romance. Mas isso é apenas enunciar o óbvio, não o que de mais convincente se passa dentro do livro.
Para conhecê-lo, é preciso perceber que o narrador combina habilmente uma visão distanciada das ações com uma visão de muito perto, com clareza hiper-realista de detalhes, num movimento que impede a visão social de se estagnar esquematicamente.
Claro está que há riscos. Para obter o efeito de distanciamento, por vezes, o discurso se modaliza demais com muitas inserções adverbais, além de retomadas anafóricas que emperram a frase. Já ao aproximar a lente, por vezes os detalhes se acumulam e autonomizam a tal ponto que acabam tomando a forma de um arranjo decorativo, que se compraz em seu próprio efeito.
No meio está o equilíbrio difícil, mas em geral bem logrado por Figueiredo.