Leite derramado, “mise en abyme” do desvario
“A mise en abyme compreende ‘todo espelho que reflete o conjunto da narrativa por reduplicação simples, repetida ou especiosa’ e ‘todo enclave que mantém uma relação de similitude com a obra que contém’ (Dällenbach, 1977: 71, 18). A mise en abyme teatral se caracteriza por um desdobramento estrutural-temático, ‘isto é, uma estreita correspondência entre o conteúdo da peça engastante e o conteúdo da peça engastada’ (Forestier, 1981: 13)”. Patrice Pavis. Dicionário de teatro.
Chico Buarque é antes de tudo um narrador. Um narrador de extraordinária memória épica – o que lhe confere, segundo a relação que o filósofo e ensaísta alemão Walter Benjamin (1892-1940) estabelece entre narração, experiência, história e crônica, em seu célebre ensaio “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, o estatuto de um dos melhores cronistas da história do Brasil. Seja em seu vasto cancioneiro, dramaturgia ou prosa de ficção, Chico narra acontecimentos, “sem distinguir entre os grandes e os pequenos”, levando em conta – quer por meio da rememoração de sua própria experiência, quer por intermédio da rememoração da experiência alheia – a ideia de que “nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história”.
Da primeira canção composta aos quinze anos, a bossa nova romântica Canção dos olhos (1959), ao mais recente romance escrito, O irmão alemão, em que se misturam realidade e ficção, todas as histórias narradas por Chico Buarque formam uma única e extensa rede na qual se emaranha também a própria história do Brasil, diante da qual ele assume, por sua vez, a posição de um privilegiado cronista. “O historiador é obrigado a explicar de uma ou outra maneira os episódios com que lida”, lembra-nos Walter Benjamin, opondo a este a figura do narrador, que pode se contentar em representar tais episódios “como modelos da história do mundo”. Recorrendo ao acervo de toda uma vida (construído tanto pela sabedoria do falar para si como pela do ouvir dizer), o cronista Chico Buarque “infunde a sua substância mais íntima” na narração da história social do país, com a dignidade de desejar contá-la por inteiro.
As marcas da prosa de Chico Buarque em seu quarto romance, Leite derramado, são as da ambiguidade e indeterminação que, nas céleres 190 páginas que constituem o livro, migram do plano do conteúdo e contaminam o próprio gênero romanesco. Misto de memorialismo, romance histórico e saga familiar (“Sem você me enterrariam como indigente, meu passado se apagaria, ninguém registraria a minha saga”, diz ele à enfermeira-escriba à certa altura) – ainda que cada um deles contrariado pela brevidade da narrativa –, Leite derramado propõe ao leitor inúmeras sutilezas no plano da psicologia, da história das mentalidades, da política e da ideologia. A maior das sutilezas do livro talvez seja aquela que diga respeito ao modo como o protagonista possa ser encarado. Eulálio Montenegro d’Assumpção não seria especialmente um indivíduo, sequer um tipo, constituindo mais apropriadamente a figuração de uma espécie de discurso que os laivos de modernidade vividos pelo Brasil às portas do século XX vão tornando obsoleto.
A filiação do romance à obra de Machado de Assis é inequívoca. Tal como em Dom Casmurro, o protagonista de Leite derramado também vive atormentado pela ideia de ter sido traído por uma mulher tão ideal quanto enigmática; tal como em Memórias póstumas de Brás Cubas, a nulidade do narrador-personagem como indivíduo e cidadão procura ser compensada pela constante evocação que ele faz de sua nobre linhagem; por fim, tal como em Quincas Borba, o personagem se deixa expropriar por interesseiros, tentando compensar a perda da situação de bem-aventurança usufruída no passado pela utilização de um discurso delirante no qual a realidade é constantemente solapada pela fantasia.
O fato é que o narrador-protagonista de Leite derramado começa e termina sua narrativa deslocado radicalmente do ambiente que lhe forjou a consciência de classe, insulado em memórias que não lhe servem mais de grande valia e mergulhado em uma outra realidade sociocultural que não a sua. A operação é complexa e exige cuidados. Em vez do parasitismo borboleante de Brás Cubas, haveria aqui o exercício de uma passividade e de uma inércia de tal monta que a História teria progredido de supetão, rumo ao futuro, deixando para trás um sujeito já quase reduzido à mera condição de objeto, quando não vivendo em condições abjetas.
A adaptação de Leite derramado para o teatro, a cargo de Roberto Alvim, mantém firme semelhança com os eventos descritos no livro, adotando, por sua vez, algumas dissonâncias em relação ao texto-matriz. O arco temporal da peça é praticamente o mesmo do livro. Nela, invocam-se os antepassados gloriosos de Eulálio e mostra-se em cena a degeneração de sua descendência. Paralelamente, a trama alude a fatos históricos especiais, por intermédio dos quais o pai do protagonista vive seus momentos de glória e este, por sua vez, amarga momentos de infortúnio. As diferenças entre o romance e o texto dramatúrgico parecem se organizar em trono de três eixos básicos. Primeiramente, a peça elimina a figura de Matilde, anulando, por conseguinte, a dúvida recorrente de Eulálio quanto ao fato de sua jovem mulher, desaparecida precocemente, tê-lo traído ou não. Desse modo, a narrativa teatral não envereda pelo drama de consciência que no palco circunscreveria o personagem aos domínios de uma questão de natureza essencialmente psicológica. Vale notar que o discurso patriarcal de Eulálio opõe, na peça, o mundo da mãe senhorial ao mundo da prostituta servil (mulheres de cócoras a quem Eulálio-pai lançava moedas são mencionadas; a índia-secretária põe-se de quatro para satisfazer as fantasias do senador; a enfermeira, por sua condição subalterna, é vista por Eulálio pela ótica dos favores sexuais; o bisneto refere-se às putas do high society).
Tal escolha pelo apagamento da figura de Matilde está na base da segunda diferença verificada. Em vez de misturar suas lembranças pessoais com as memórias sociais do país, o protagonista da peça se deixa atravessar por questões essencialmente políticas, vendo-se às voltas com uma série de símbolos que em cena ganham o estatuto de conteúdos manifestos, diferentemente do romance, onde eles vivem em estado de latência. Por fim, o texto dramatúrgico propõe com ousadia e apreço pelo risco uma interpretação do protagonista que o romance em momento algum autoriza o leitor a pensar. Antes de se fecharem as cortinas, Eulálio Montenegro d’Assumpção assume sua condição de pobre diabo, para quem os delírios de grandeza sonhados com muita vivacidade até ali teriam compensado a situação de cruel anonimato que ele, como todos os brasileiros pobres, está destinado a viver. Do mesmo modo que as classes C, D e E, no contexto neoliberal em que vivemos, procuram se identificar com a classe média e as elites dominantes, o protagonista da adaptação teatral renuncia às suas origens humildes e adere, por um mecanismo que podemos chamar de glória de empréstimo (bem ao estilo machadiano, aliás), aos delírios de grandeza típicos da sociedade do espetáculo, que ele acredita proporcionarem satisfação e felicidade às classes dominantes. Ungido pela cruz da caravela que anunciou o início desta Ilha de Vera Cruz.
Roberto Alvim é um diretor cujas criações são sempre hieráticas. Atribui-se a qualidade de hierático àquilo que é relativo às coisas sagradas ou religiosas. Se pensarmos que sua adaptação de Leite derramado não investe em uma interpretação lógico-científica do Brasil (como o próprio romance de Chico Buarque também não o faz), optando antes por explorar uma série de símbolos mantidos na qualidade de mitos que nenhuma loquacidade dá conta de explicar, o qualificativo hierático se aplica muito bem a seu teatro. Mas o adjetivo também significa aquilo que pertence aos sacerdotes ou que tem as formas de uma tradição litúrgica. Ora, nada mais litúrgico do que as formas às quais Alvim dá plasticidade em cena, exigindo que seus atores se expressem por meio de uma postura vocal e corporal que é a mais pura manifestação de um sacerdócio. Diz-se ainda serem hieráticos os estilos tradicionais de arte, com suas formas rígidas e majestosas. Ao renunciarem ao dialogismo e às pequenas interações dramáticas, os personagens de Leite derramado assumem um quase imobilismo que, envolto em solenidade, é pura poesia.
Mas hierático também se desdobra em hierofania, cuja composição etimológica no grego antigo não pode aqui passar despercebida. Hierós implica a ideia de sacralidade; já a forma phan carrega o sentido de aparição ou manifestação relevadora – idêntico traço semântico ocorre também em fantasia, fantasma e fantástico. Alvim tem predileção pelas formas espectrais, diluídas pelas inúmeras sombras que constantemente as rodeiam em decorrência da estética noir que o diretor já de longa data adota em seus trabalhos. Talvez aqui tenha sido o próprio Eulálio Montenegro d’Assumpção a estimular a hierofania do diretor. Ao final do primeiro capítulo, assim o ancião anuncia sua passagem do mundo da vigília para o mundo onírico: “Sirene na rua, telefone, passos, há sempre uma expectativa que me impede de cair no sono. É a mão que me sustém pelos raros cabelos. Até eu topar na porta de um pensamento oco, que me tragará para as profundezas, onde costumo sonhar em preto-e-branco”. As profundezas do protagonista são fantasiosas, fantasmagóricas, fantásticas, convidando cada espectador a adivinhar os mistérios que este ancião, como um expositor de objetos sagrados, entre sedado e aturdido, o convoca a examinar.
O projeto dramatúrgico, como já visto, não trai a narratividade do romance, entretanto não elimina em cena, por sua vez, os traços ásperos e esquivos do discurso vazado sob a forma de fluxo de consciência desta figura até certo ponto rodriguiana, cindida entre alucinação, realidade e memória. Garante-se a compreensão do espectador em razão de ser oferecida a ele uma espécie de ancoragem de sentido confortável: trata-se, afinal, da apresentação da trajetória de uma vida, mola dramática que sustenta boa parte da ficção literária, teatral, cinematográfica… Mas tal facilidade é apenas aparente, porque esse mesmo espectador – contrariado em seu horizonte de expectativa – é impelido a adentrar uma floresta de signos bastante enigmática, tensionada a tal ponto que só lhe resta uma opção: oscilar entre a intranquilidade e a perplexidade.
Leite derramado constitui uma experiência essencialmente sensorial, empreitada para a qual a atriz principal do espetáculo contribui de modo muito especial. Misturando os registros lírico, dramático e trágico, Juliana Galdino explora os recursos de uma perturbadora teatralidade, calcados em expansão e recolhimento. A voz da atriz – muito já se falou a respeito – é uma performance em si mesma. A intensidade – não somente técnica como também emocional – que ela imprime à figura do ancião está a serviço da selvageria que se vê em cena disfarçada de identidade nacional; eis-nos, pois, enforcando-nos, pura e simplesmente, com as raízes do Brasil.
Exige-se dos intérpretes do Club Noir um trabalho bastante especial de ritualização de voz, gestos e movimentos. Eles estão quase sempre em pé e imóveis, estáticos, remetendo com tal postura à etimologia da forma indo-europeia “st”, presente não só em “estático” propriamente como também, por exemplo, em “estátua” e em “estar” – palavras que ao mesmo apontam para a ideia da estabilidade de um corpo ereto e implicam o traço semântico de “ser”. Em muitas línguas, os verbos “ser” e “estar” equivalem (“É de estarrecer/Estar e ser em inglês/É a mesma coisa”, nos lembra, divertidamente, a poeta Alice Ruiz). Desse modo, as estátuas a que Roberto Alvim normalmente dá vida em cena são seres estuados. Tomados por fantasias que se desregulam e os fazem mergulhar em ex(s)tática fantasmagoria. Renato Forner, Diego Machado, Taynã Marquezone, Marcel Gritten, Caio Daguilar, Luis Fernando Pasquarelli e Nathália Manocchio- Juliana Galdino, Renato Forner, Diego Machado, Taynã Marquezone, Marcel Gritten, Caio Daguilar, Luis Fernando Pasquarelli e Nathalia Manocchio– além de minha brilhante assistente de direção Steffi Braucks assumem com muita competência e energia criativa as figuras espectrais, expressionistas, que convivem com Eulálio Montenegro d’Assumpção, cujas aparições remetem o espectador ao passado recente do país ou à mais arrematada ancestralidade.
A ambientação sonora do espetáculo trabalha com materiais de cinco espécies diferentes: a música original, composta por Vladimir Safatle, que pontua os momentos líricos, nos quais a palavra proferida pelos atores não consegue sozinha dar conta do inefável, do indizível; as canções francesas entoadas por uma voz feminina, também gravadas especialmente, que remetem à infância perdida do protagonista; a trilha sonora original, que delineia certas atmosferas e marca algumas passagens especiais entre elas; a reprodução de três tipos de sonoridade estereotipada ligada à construção da imagem do Brasil: uma bateria de escola de samba; o jingle ufanista composto por Miguel Gustavo para a Copa de 1970, Pra frente, Brasil; e um batuque de candomblé.
Vale notar que as composições instrumentais e vocais de Vladimir Safatle funcionam como uma espécie de confrontação do clima de irreverência e jocosidade que se depreende do romance. Há uma leveza e uma luminosidade nas páginas do livro, lastreadas por sua capa alaranjada (metonimicamente referida a Matilde: “Eu cogitara mesmo em levá-la à recepção da embaixada, e para a ocasião ela havia feito as unhas e separado um vestido cor de laranja”), com as quais a densidade das melodias e dos ritmos concebidos por Safatle entra em choque. Em plena sintonia com o projeto dramatúrgico, a música original do espetáculo tem algo de melancólico, soturno e grave, como se no palco Eulálio Montenegro d’Assumpção fosse uma espécie de meio-irmão do homem do subsolo, de Dostoiévski.
A única música de Chico Buarque utilizada no espetáculo é Deus lhe pague, executada na gravação original de 1971, cuja contundência da letra rivaliza de cabo a rabo com a força do arranjo do maestro Rogério Duprat. Letra, aliás, em que se encontra tal verso: “… por essas moscas bicheiras a nos beijar e cobrir…”. Incomodando, zoando, mordendo sem parar, afirma o Dicionário de símbolos, de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, “as moscas são seres insuportáveis. Elas se multiplicam sobre o apodrecimento e a decomposição, carregam os piores germes de doenças e desafiam qualquer proteção”. Mas paira também sobre o inseto uma aura de outra ordem: a mosca pode ainda simbolizar o pseudo-homem de ação – “ágil, febril, inútil e reivindicador” –, encarnado na antiga fábula de La Fontaine, “A carruagem e a mosca”. Ambos os sentidos de que goza esse animal – sagrado para a antiguidade greco-latina e associado, na Idade Média, talvez por engano, à dinastia dos reis merovíngios – parecem rondar a psicologia do protagonista de Leite derramado, um falso homem de ação tão sem substância quanto algumas das imagens que são pura tautologia em Aquarela do Brasil – a canção com que se inicia o espetáculo. Como se Leite derramado fosse uma espécie de aquarela descolorida, sombria, soturna, disposta a anunciar que as querelas do Brasil são todas nossas. Hoje e sempre.
Obs.: Vale lembrar que as ideias expostas no presente texto estão desenvolvidas com mais amplitude reflexiva e analítica no pequeno livro homônimo de autoria deste colunista, editado pelo Sesc, que está sendo distribuído aos espectadores da peça.
LEITE DERRAMADO
ONDE: Teatro Anchieta – Rua Dr. Vila Nova, 245
QUANDO: De quinta a sábado, às 21h; domingos, às 18h. Até 13 de novembro.
QUANTO: R$ 40,00 (inteira), R$ 12,00 (meia)
INFO: (11) 3234-3000