Leia o primeiro capítulo de “Os sete loucos”, de Roberto Arlt

Leia o primeiro capítulo de “Os sete loucos”, de Roberto Arlt
O escritor argentino Roberto Arlt (Reprodução)

 

A surpresa

Ao abrir a porta envidraçada da gerência, guarnecida de vidros japoneses, Erdosain quis recuar; compreendeu que estava perdido, mas já era tarde.

Estavam à sua espera o diretor, um homem de baixa estatura, beiçudo, com cabeça de javali, cabelo cinza cortado à la “Humberto I”, e um olhar implacável filtrando por suas pupilas cinza como as de um peixe; Gualdi, o contador, pequeno, magro, meloso, de olhos escrutadores; e o subgerente, filho do homem de cabeça de javali, um bonito rapaz de trinta anos, com o cabelo totalmente branco, cínico em seu aspecto, a voz áspera e o olhar duro como o do seu progenitor. Estes três personagens, o diretor inclinado sobre umas planilhas, o subgerente recostado numa poltrona com a perna balançando sobre o espaldar, e o sr. Gualdi respeitosamente de pé junto da escrivaninha, não responderam ao cumprimento de Erdosain. Só o subgerente se limitou a levantar a cabeça:

— Recebemos a denúncia de que o senhor é um vigarista, que nos roubou seiscentos pesos.

— E sete centavos — acrescentou o sr. Gualdi, ao mesmo tempo em que passava um mata-borrão sobre a assinatura que o diretor havia rubricado numa planilha. Então, este, como que fazendo um grande esforço sobre seu pescoço de touro, levantou os olhos. Com os dedos enganchados nas casas do colete, o diretor projetava um olhar sagaz através das pálpebras entrecerradas, ao mesmo tempo que, sem rancor, examinava o extenuado semblante de Erdosain, que permanecia impassível.

— Por que o senhor anda tão malvestido? — interrogou.

— Não ganho nada como cobrador.

— E o dinheiro que roubou da gente?

— Eu não roubei nada. É mentira.

— Então, o senhor está em condições de prestar contas?

— Se quiserem, hoje mesmo, ao meio-dia.

A resposta o salvou transitoriamente. Os três homens consultaram-se com o olhar e, finalmente, o subgerente, encolhendo os ombros, disse sob a aquiescência do pai:

— Não… tem até amanhã às três. Traga com você as planilhas e os recibos… Pode ir.

Essa resolução o surpreendeu tanto que permaneceu ali tristemente, de pé, olhando para os três. Sim, para os três. Para o sr. Gualdi, que tanto o humilhara apesar de ser um socialista; para o subgerente que, com insolência, havia detido os olhos na sua gravata esfiapada; para o diretor, cuja tesa cabeça raspada de javali virava-se para ele, filtrando um olhar cínico e obsceno através do traço cinza das pálpebras entrecerradas.

No entanto, Erdosain não se movia dali… Queria lhes dizer alguma coisa, não sabia como, mas alguma coisa que os fizesse compreender toda a imensa infelicidade que pesava sobre sua vida; e permanecia assim, de pé, triste, com o cubo preto da caixa de ferro diante dos olhos, sentindo que à medida que os minutos passavam suas costas arqueavam-se mais, enquanto nervosamente retorcia a aba do seu chapéu preto, e o olhar tornava-se mais fugidio e triste. Então, bruscamente, perguntou:

— Então, posso ir?

— Sim…

— Não, quero dizer se eu posso fazer cobranças hoje…

— Não… Entregue os recibos para o Suárez e esteja aqui amanhã às três, sem falta, com tudo.

— Sim… Tudo…

— E virando-se, saiu sem se despedir. Pela rua Chile desceu até Paseo Colón. Sentia-se invisivelmente encurralado. O sol descobria os asquerosos interiores da rua em declive. Diversos pensamentos agitavam-se nele, tão dessemelhantes que o trabalho de classificá-los teria lhe tomado muitas horas. Mais tarde lembrou que nem por um instante lhe ocorrera perguntar quem poderia tê-lo denunciado. TRADUÇÃO Maria Paula Gurgel Ribeiro

Os sete loucos
Robert Arlt
Iluminuras
Tradução Maria Paula Gurgel Ribeiro
148 páginas – R$ 65


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