Jules Verne: doutor fantástico

Jules Verne: doutor fantástico

Aplicado estudante de biologia, geologia, astronomia e mecânica, Verne foi testemunha dos progressos tecnológicos de seu tempo

Viver no século 21 não é fácil! As mudanças parecem ocorrer em velocidade maior do que nosso cérebro é capaz de assimilar: a TV traz-nos imagens que parecem ter sido tiradas de nossos piores pesadelos (como ratos com orelhas humanas nas costas e guerras como antes só se viam no cinema), estamos cercados de informações por todos os lados e, como se não fosse o bastante, a cada dia surgem novos aparelhos que devemos prontamente aprender a manejar se não quisermos ficar para trás.

Situação análoga à nossa atual devem ter vivido os europeus do século 19, época de tantas transformações em seu continente. Com o fim da Idade Média, marcada pelo teocentrismo (Deus no centro de tudo) e pela forte influência da Igreja em toda a sociedade, surge o humanismo renascentista e se inverte o pensamento medieval: agora o homem é o centro. O conhecimento deixa a esfera do divino para entrar na do racional, trazendo as investigações científicas e o questionamento de tudo para a ordem do dia. O homem deseja desvendar o universo que o cerca. Por meio da observação e do uso da razão, Nicolau Copérnico (1473 – 1543) revela que a Terra gira em torno do Sol e não o contrário, como se acreditava. Johannes Kepler (1571 – 1630) mostra que os astros descrevem uma trajetória elíptica e não circular. Galileu Galilei (1564 – 1642), além de ratificar a teoria heliocêntrica de Copérnico, prova que objetos leves e pesados caem com a mesma velocidade (discordando de Aristóteles). E a dissecação, contestada pela Igreja, torna-se importante meio de se obter informações sobre a anatomia do corpo humano. Sem dúvida, esse é o momento de derrubar dogmas.

Mais do que apenas observar, o homem quer agora ter acesso a locais inatingíveis, como o céu. Leonardo da Vinci, um dos espíritos mais sedentos de conhecimento que já passou pela Terra, presenteou as gerações posteriores com o esboço de uma máquina que permitiria ao homem voar e com a idéia de que uma pessoa precisava apenas de um pedaço de pano para se atirar de um lugar alto em completa segurança. O tempo provou que Da Vinci trilhava o caminho certo, pois seu “parafuso voador” era muito parecido com o helicóptero atual, e os atuais praticantes de pára-quedismo devem a ele os primeiros esboços do pára-quedas.

Passando para os séculos 18 e 19, a tecnologia faz avanços que modificariam, definitivamente, a organização da sociedade e o modo de vida das pessoas. A invenção da máquina a vapor e do tear mecânico e a substituição do ferro pelo aço, mais resistente e com menor custo de produção, são alguns dos fatores que geram a chamada Revolução Industrial. A partir dela, o trabalho manual é substituído pela produção em larga escala nas fábricas – levando os antigos artesãos a virarem operários – e os meios de produção tornam-se propriedade de alguns poucos capitalistas. As mudanças na economia refletem-se no modo de pensar, surgindo o positivismo de Auguste Comte e o marxismo de Karl Marx, que se revoltam contra as desigualdades geradas pelo capitalismo.

Fora isso, a ciência descobre fatos que dizem respeito não apenas ao universo, mas também à própria natureza humana. Charles Darwin causa uma verdadeira reviravolta no campo das ciências naturais ao publicar, em 1859, Sobre a origem das espécies, no qual afirma a existência de uma seleção natural, que faz com que sobrevivam apenas espécies mais bem adaptadas ao meio ambiente. O homem deixa de ser uma criatura especial de Deus, com a mesma forma desde o surgimento de Adão e Eva, para se tornar descendente de reles animais. Na mesma época, Pasteur desfaz o encanto da geração espontânea, revelando a existência de um mundo de microorganismos à nossa volta.

É nesse contexto, em plena ebulição nos campos da astronomia, da física, da química e da biologia e nas ordens social, econômica e cultural, que Jules Vernes (1828 – 1905) nasce, cresce e escreve suas fantasiosas histórias.

Testemunha dos progressos científicos e tecnológicos do século 19, Verne apaixona-se pela ciência e se dedica ao estudo de diversas áreas – biologia, geologia, astronomia, mecânica etc. Considerado por muitos um visionário, ele antecipou, em obras como Vinte mil léguas submarinas (1869) e Da Terra à Lua (1864), invenções como o submarino nuclear, aparelhos de mergulho mais leves e a construção de uma estrutura que, impulsionada por uma grande combustão, permitiria uma viagem à Lua. Ou seja, com os aparatos científicos que cria em suas histórias, Verne aproxima-nos do fundo do mar, do Pólo Norte, da Lua, do espaço sideral, trazendo-os para a vida corriqueira e ajudando a divulgar a ficção científica, cuja iniciadora teria sido Mary Shelley, com a publicação de Frankenstein – O novo prometeu, em 1818.

Numa definição bastante superficial, fazem parte da ficção científica histórias que incluem um fator científico como componente essencial. Nos textos de Jules Verne, a ciência é mais do que um componente essencial: ela é vista como parte do dia-a-dia da humanidade, isso num tempo em que a própria palavra “ciência”, apesar da velocidade de seus progressos, ainda era estranha à maior parte da população. O submarino Náutilus do enigmático capitão Nemo, em Vinte mil léguas submarinas (1869), no início causa espanto em seus “passageiros” (na verdade, prisioneiros) professor Aronnax, Conselheiro e Ned Land, mas não demora muito e logo ele se torna objeto de admiração. A tecnologia é capaz de esclarecer ao curioso professor Aronnax as loucuras realizadas pelo capitão, como navegar a 16 mil metros abaixo da superfície ou ir ao nunca antes visitado Pólo Sul. São os aparatos inventados pelo capitão que permitem a ele concretizar seus devaneios. O mesmo ocorre em Da Terra à Lua (1864). A descrição feita por Verne começa com os preparativos da viagem, indo desde a construção do imenso canhão que atiraria o projétil em direção à Lua até o aparelho que produz oxigênio e retira gás carbônico do ar do foguete. E tudo isso é tão detalhado que não ousamos discordar da total possibilidade de tal empresa.

Todavia, o cientificismo e a tecnologia não apagaram, e provavelmente nunca apagarão, a sedução exercida pela fantasia e pelo misterioso. Até mesmo nós, em pleno século 21, interessamo-nos cada vez mais pelas diversas religiões, histórias de fantasia e de super-heróis, pelos contos de fadas, pela mitologia, pelo macabro, pelos fenômenos paranormais. Não é de se admirar que as bilheterias de filmes relacionados a esses temas, como Senhor dos Anéis, Harry Potter, Homem-Aranha e Shrek alcancem números estrondosos. E não foi diferente na época de Verne.

Já no início do século 19, em plena França racionalista, as primeiras traduções dos contos de E.T.A. Hoffmann no país têm impacto imediato, chamando a atenção para um novo gênero literário que florescia na época: o fantástico. O fantástico mistura fantasia e realidade, o possível e o impossível, mas de um modo que surpreende o leitor: primeiro ele apresenta um mundo que se parece com o nosso (pessoas têm seus empregos e suas famílias), mas, de repente, surge alguma coisa totalmente imprevista. Sem aviso, descobre-se que, naquele mundo, é possível ficar invisível, voar em cima de um tapete ou ser atacado por um vampiro. E nem sempre fica claro para o leitor se o vampiro era realmente um vampiro – ou se tudo não passou de sonho.

A literatura fantástica enfatiza o misterioso sobrenatural. Em seus textos, a Lua não é concreta. Ela é uma entidade misteriosa capaz de transformar homens em feras ou de dar o sinal para que forças desconhecidas se revelem e as criaturas da noite assumam o comando. O mal é livre nas trevas, elas o protegem em sua escuridão, permitindo ao Doutor Frankenstein de Mary Shelley (1818), ao Mr. Hide de Robert L. Stevenson (1886), ao Dorian Gray de Oscar Wilde (1890), ao Drácula de Bram Stoker (1897) e ao Charles Ward de H. P. Lovecraft (1927) cometerem assassinatos, usarem drogas ou realizarem estranhos experimentos sem sofrerem quaisquer censuras. No fantástico, a Lua está mais para a caveira amarela descrita por Dorian Gray do que para o satélite da Terra apresentado por Verne em Da Terra à Lua. Ela é um personagem, ao passo que nos livros de Jules Verne ela é um lugar a ser alcançado e explorado.

O mesmo se pode dizer dos mares e oceanos de Vinte mil léguas submarinas. Desde a Antiguidade, as águas são motivo de temor para os navegantes. Não é à toa que Ulisses amarra seus companheiros para impedi-los de se jogarem ao mar aberto quando chegam perto de onde moram as sereias. No fantástico, as águas escondem encantadoras ondinas, ninfas e sereias, assim como as florestas abrigam gnomos, trolls e outros entes mágicos. Em Vinte mil léguas submarinas o fundo do mar é um mundo fascinante ainda inexplorado, embora no fantástico ele seja um elemento a ser respeitado, pois Netuno (ou Posêidon) e outros seres estão à espreita. E o que dizer da audácia com que o professor Otto Lidenbrock e seu sobrinho Axël, em Viagem ao centro da Terra (1864), se dirigem aos domínios de Lúcifer sem fazer qualquer cerimônia, pois para eles se trata apenas dos subterrâneos do planeta. Para o geólogo, ir ao centro da Terra é uma excursão como qualquer outra, sendo apenas uma questão de levar os dispositivos certos para as variadas situações.

Mas a linha divisória que separa o fantástico e a ciência não é um muro alto de concreto, havendo intercâmbios entre eles. Bons exemplos são os antes citados Frankenstein e O estranho caso do Dr. Jekyll e Mr. Hide. Nessas histórias, os experimentos científicos são os pontos de partida para o desenrolar dos acontecimentos. O doutor Frankenstein dá vida à sua criatura por meio de uma descarga elétrica – pois, em 1780, o pesquisador Luigi Galvani havia percebido que a pata de uma rã já morta se contraía ao encostar-se nela dois metais diferentes, o que difundiu a idéia de que a vida poderia ter ligação com a eletricidade. Já o Mr. Hide aparece sempre que Dr. Jekyll bebe uma poção preparada em seu laboratório. A diferença é que Mary Shelley e R. L. Stevenson estavam mais preocupados com as conseqüências da ousadia de se brincar de Deus do que em divulgar a ciência. Já Verne procurava “vulgarizar” a ciência, ou seja, difundi-la para as massas, explicando-a para o leitor comum. Para isso, procurava demonstrar que não se tratava de nenhum bicho-de-sete-cabeças, mas de algo que podia trazer grandes conquistas à humanidade e facilitar sua vida, tornando possível a construção de aparelhos úteis (para a produção de luz e calor, purificação do ar etc.) e nos dando acesso a locais nunca antes imaginados.

Jules Verne, apesar de sua paixão pela ciência, parece nunca ter esquecido do que leu em As viagens de Guliver (1726), de Jonathan Swift, e em Robinson Crusoé (1719), de Daniel Defoe, aventuras que o fascinaram quando era criança. Apesar de essas obras terem um forte apelo racionalista (Guliver e Robinson conseguem as coisas porque são práticos, objetivos, racionais), Verne mostra que não enterrou de vez seu lado fantasioso. Em Vinte mil léguas submarinas, os olhos do professor Aronnax brilham quando, a certa altura, reconhece a cidade perdida há tanto tempo. “Atlântida!”, é tudo o que consegue dizer diante dos escombros do que teria sido, um dia, a famosa civilização mitológica. Otto Lidenbrock e Axël, em Viagem ao centro da Terra, deparam-se com uma legítima cópia da era Pré-História, encontrando animais e plantas já extintos, atmosfera e relevo de épocas remotas, e até mesmo um homem primitivo de enorme estatura. E em Ao redor da Lua (1870), os tripulantes do foguete se perguntam se encontrarão selenitas e se conviverão com eles.

Como se pode notar, o escritor francês não ficou tão longe da literatura fantástica como parece à primeira vista. A ficção científica também apresenta fatos inusitados (seres extraterrestres, homens do tamanho de um grão de poeira, máquinas do tempo, robôs apaixonados), só que explica tudo isso como sendo resultado de descobertas da ciência. Já o fantástico simplesmente mostra as coisas mais incríveis sem fazer questão de nos dar qualquer causa lógica para eles. A ficção científica é um sobrenatural explicado. Verne foi um amante da ciência. E foi um amante do devaneio. No lugar de se tornar um prisioneiro da razão, ele a utilizou para voar mais alto. Assim, não há como negar: Jules Verne foi fantástico!

Ana Luiza Sanches Cerqueira
Mestre em Estudos Literários pela Faculdade de Ciências e Letras (FCL) da Unesp com uma tese sobre o fantástico em O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde

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