Entre a biografia e a ficção

Entre a biografia e a ficção
(Foto: Lipnitzki/ Roger Viollet)

 

Em Minha pequena Irlanda, uma peça sobre a relação do escritor irlandês James Joyce com sua amada – e depois esposa – Nora Barnacle, Dirce Waltrick do Amarante entrelaça muito bem a biografia com a ficção a fim de explorar as profundezas do que significava, para o romancista irlandês, o amor.

A peça se fundamente em duas fontes principais: Finnegans wake (1939) e as cartas pessoais trocadas entre Joyce e Nora, desde o início de seu relacionamento. Wake, o último romance do escritor irlandês, gira em torno de uma investigação do mundo por meio de uma linguagem onírica, conhecida hoje como Wakese, que é uma combinação de muitas línguas de várias partes do mundo, embora o inglês se sobressaia a todas elas. Graças a esse amálgama linguístico, Joyce é capaz de combinar múltiplos significados em uma única palavra ou frase.

O livro narra a vida da Família Earwicker, formada por Humphrey Chimpden Earwicker, proprietário de um pub in Chapelizod, sua mulher, Anna Livia Plurabelle, e seus filhos, Shem, Shaun e Izzy.

Todavia, a personagem que captura a atenção dos leitores é na maior para das vezes Anna Livia Plurabelle (ALP), a qual personifica o rio Liffey, que atravessa Dublin em direção ao mar. Por isso, a voz de ALP também percorre todo romance, que é circular como o ciclo das águas.

ALP é a protagonista do capítulo VII, o mais famoso do livro e que serviu de base para a peça. Nesse capítulo, duas lavadeiras, cada uma em uma margem do Liffey, lavam as roupas de Earwicker enquanto trocam opiniões sobre um rumor escandaloso, espelhado por Dublin, a respeito da vida íntima desse personagem.

Amarante combina este capítulo com as cartas do casal Joyce e isso se revela já no início da peça:

Luz fraca no centro do palco, duas bacias velhas de lavar roupa e cartas espalhadas no chão com os nomes de James Joyce e Nora Barnacle. Atrás, três varais, fios que vão de um extremo a outro do palco; no varal ao fundo estão pendurados longos lençóis, no varal do meio, roupas masculinas e femininas, o varal da frente está vazio. Todas as roupas penduradas são brancas. Nelas são projetadas imagens de Dublin do início do século 20. À medida que as lavadeiras penduram as roupas, as imagens serão projetadas nelas também.

Música tradicional irlandesa.

A “música tradicional irlandesa” une os diálogos das lavadeiras do Wake com a conversa entre Joyce e Nora, pois propõe um contexto comum à ficção e à biografia. Enquanto as lavadeiras fofocam sobre a intimidade de Earwicker e Plurabelle às margens do rio Liffey, Joyce e Nora conversam sobre os esplendores e as misérias de sua vida amorosa. As lavadeiras, como os leitores, nunca sabem exatamente de que Earwicker é acusado, mas suas roupas não estão limpas, e são penduradas para todos as vejam. Joyce, ele mesmo, era atormentado pelo ciúme, suspeitando que Nora tivesse tido relações sexuais com outro homem. O escritor chegou a se perguntar, mais tarde, quando Giorgio nasceu, se ele era de fato seu filho.

A voz masculina em off – a de James Joyce – implora a Nora: “Diga-me. Quando você estava naquele campo perto do Dodder com aquele outro você ficava deitada quando o beijava?”.

A escuridão exerce um importante papel em Minha pequena Irlanda, como Amarante destaca no ensaio “Quando as mulheres falam”, que acompanha a peça: “No que tange ao aspecto noturno de Finnegans Wake, a noite, a escuridão, diz [Rebecca] Solnit, ‘é também a única forma que temos de nos envolver com outra cultura, com outro pensamento que não o nosso, pois a escuridão impõe um limite, nem tudo nela pode ser visto com exatidão’”. Na peça de Amarante, como no último romance de Joyce, a visão de mundo da mulher é o grande destaque.

Minha pequena Irlanda é também uma peça repleta de brincadeiras sensuais e humoradas, que busca reproduzir o clima jovial do Wake e das cartas de Joyce, o qual persiste em meio às turbulências existenciais. Há na peça uma cena sensual na qual Joyce fantasia o que gostaria de fazer com sua amada. Como resposta, a radiante Lavadeira 2 se toca, enquanto a circunspecta Lavadeira 1 a observa com desaprovação.

A peça foi encenada pelo grupo Ciclopatas e estreou em 2019 na Universidade Federal de Santa Catarina.  No livro, pode-se ter acesso a gravação da montagem da peça, além disso, algumas cenas são ilustradas de forma quase abstrata por Sérgio Medeiros, cujo traçado do pincel flui como água. TRADUÇÃO SÉRGIO MEDEIROS.       

Dylan Emerick-Brown é estudioso da obra de James Joyce, criador do site Teaching Joyce. Leciona língua inglesa na Deltona High Scholl, na Flórida.


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