Jorge Mautner, 80: um artista cientista

Jorge Mautner, 80: um artista cientista
É o que faz Jorge Mautner: divide conosco uma arte potencializada pela ciência (Foto: Rodrigo Sombra)

 

Imagine um músico escritor que nos leva, há mais de meio século, por tentativas de entender fenômenos, leis, verificando e sentindo tudo com métodos experimentais. É o que faz Jorge Mautner: divide conosco uma arte potencializada pela ciência. Em latim, scientia significa conhecimento. Canções como Matemática do desejo, Maracatu atômico, Os marcianos, Futurismo, e tantas outras, são experiências para ampliar nossa percepção. Sempre atento, seu último vídeo postado no YouTube é um poema ao coronavírus.

Carioca, nascido em 17 de janeiro de 1941, filho de refugiados da Segunda Guerra, Mautner é único na cultura brasileira. Paradoxal, romântico e tecnológico, comunista e social-democrata, entre melancolia e ironia, mitologia e fofoca, lançou 15 discos e 14 livros. Na ditadura militar, foi exilado. Felizmente, desde cedo seu trabalho é reconhecido. Deus da chuva e da morte (1962) foi Prêmio Jabuti. Em 2003, Eu não peço desculpa, em parceria com Caetano Veloso, venceu o Grammy Latino de melhor álbum de MPB. Também recebeu a Grã-Cruz da Ciência e da Cultura da Áustria. O documentário mais recente sobre sua vida-obra é a série Kaos em Ação (2020, pela HBO).

Aos 80 anos, Jorge Mautner está em casa. Ele escreve e se exercita enquanto espera a vacina contra a Covid-19. Na conversa por telefone com a Cult, avisa: “os cientistas querem isso de que a gente está falando: o humano e o mistério contínuo de tudo. Quanto mais você revela o mistério, brotam dois”.

Cult – Mautner, você está bem?

Jorge Mautner – Sofrivelmente bem (risos). São dores. É a idade. Segunda-feira vou ao médico. Foi só falar com você que a dor já passou.

O que anda fazendo nesses terríveis dias de pandemia?

Eu escrevo, recebo pessoas que vêm me visitar, conversam. Continuo lendo. Até parei de fazer show, mas vou começar de novo… Fico tocando. É quase a mesma coisa. Não é com tanto vigor como antigamente. O último show que fiz foi no início de 2020. Teve reunião geral do Partido Comunista do Brasil. Então, fui, toquei lá. O resto estou postergando. Porque também 79 é muito! Aos 80 então…

Confinado em casa, descobriu uma alegria nova?

Não… Eu moro com minha esposa, estamos há 58 anos casados. Minha filha mora pertinho, minha netinha também, tenho amigos, João Paulo Reys [produtor]. Continuo lendo, fazendo Tai Chi e esperando chegar a hora de morrer [risos].

Como assim, Mautner? Você sempre está “de acordo a lei estabelecida, que é driblar sempre a morte com a vida”.

Ah, sim, mas é nisso tudo que vive a morte. Inclusive elogiá-la. Quero viver mais um pouquinho [risos].

E faz Tai Chi todos os dias?

Todos os dias. Tai Chi Chuan é aquele chinês. Tem bases paradas, e as mesmas bases desencadeiam bases móveis. As bases paradas são as consideradas bases medicinais. Quanto tempo você consegue ficar numa postura difícil? Isso tudo fortalece o ken. O ken é uma substância inenarrável como a consciência. Todo lugar tem seu ken, onde se apoiar, por isso o apoio parado um tempão é muito importante. Imagina: uma canelinha fininha sustenta milhões de filogramas. Ó como o ser humano é. Duas canelas. Esse método trata disso. Você vai ficando em posições do tigre, de várias coisas, paradas durante uma hora. O tempo todo reestruturando esses centros nervosos. Depois todas essas bases servirão como em movimento, são taoístas: dar o soco de verdade e matar de verdade o inimigo, claro [risos]. É maravilhoso! É poesia pura no corpo. Eu faço à noite. Estou me preparando pra fazer agora antes de dormir. Porque adormece, faz o que você quiser. E, olha, excita tudo! Inclusive, o freudismo fez sem saber, mas é mais impressionante! Você vai para uma praia de Copacabana imaginária à noite, fazendo torções que beiram o sofrimento, e beirando o sofrimento e sendo contentamento. Alegria que a felicidade da postura faz com a gente e destrava tudo na linguagem melhor.

A ameaça do coronavírus mudou sua relação com o medo?

Esse vírus é mais do que uma Terceira Guerra Mundial. O coronavírus tem capacidade de entrar em mutação constantemente também. Ele mostra que a inteligência existe em todos os seres, né? E o problema do Brasil é tão claro! Joaquim Nabuco e os irmãos Rebouças disseram: teve a primeira abolição, mas não adianta, tem que ter a segunda abolição. São duas demandas: reforma agrária e educação grátis para todo o povo brasileiro, do jardim de infância até a universidade. Essa segunda abolição ainda não chegou. É só isso. Com a descida da leitura de livros e a introdução desses aparelhos de cibernética, todo mundo só fala por esse aparelho, os livros ninguém mais leu. É tudo um bombardeio de imaginações neonazistas, um xingando o outro, brigando, e a corrupção nunca foi tão grande!

O que recomenda às pessoas angustiadas, com insônia, crises de ansiedade?

Ah, eu recomendaria lerem velhos livros. E conversarem entre si, como sempre fazem. Mas, com o fim do livro, nasceu uma compulsão de todo mundo ficar famoso porque aparece lá, nessa eletrônica.

Você está mais animado? Mais deprimido?

Mais animado não, porque jovem você é mais. Mas também não estou deprimido. Isso não. Ah, não, isso não. Ao contrário: uma filha, uma neta, esposa, todo mundo amigo. É muita gente. Eu sou privilegiado, falando com você, com todos, em contato permanente.

O que é poesia?

Poesia é tudo. São as várias formas da gente se exprimir além da palavra: o que ela diz tacitamente, o subentendido e, de repente, embelezar com felicidade tão rara [risos].

Seu pai, Paul Mautner, falava da importância dos artistas e cientistas. A ciência sempre esteve na sua música, desde Radioatividade, abrindo seu primeiro compacto de 1966. Vem do seu pai essa poesia com ciência?

Foi meu pai. Desde criança ele me educava. Meus pais (refugiados) foram asilados no Vaticano. Meu pai judeu e minha mãe não judia, Anna Mautner, vieram pra cá. Minha mãe ficou paralisada durante sete anos. E, durante sete anos, eu fiquei na mão da minha babá (Lúcia), que era mãe de santo. Três, quatro dias por semana, eu passava inteirinhos no candomblé. Ficava não só na cerimônia, mas sexta, sábado, domingo. Olha, vários conceitos que meu pai depois me explicou, da matemática quântica, do relativismo, tudo, eu já sabia por sensações do candomblé. Não é incrível? Afinidade total. Simultaneidades.

Você criou e prega o Kaos com K, o conflito criador. Aos 80 anos, quais são seus conflitos criadores?

Os mesmos de ontem aumentados à potência infinita [risos]. É uma obsessão, uma diversão, uma felicidade, uma coisa que tem a ver com tudo. E principalmente com a condição humana. Se você é assim, se dedica a uma coisa por 25 horas, desde os 14 anos, não para, né? Imagina: eu era secretário do Robert Lowell, poeta, nos Estados Unidos. Aí me chamaram pra democratização. Primeiro, Gil e Caetano não sabiam ainda. Eu os encontrei lá na Espanha. Chegou uma carta. A Violeta Arraes [socióloga, psicanalista e ativista política] estava, mas ela se dirigia a mim não como “menino”, eu era um Comissário do Povo, do Comitê Central do Partido Comunista. Era um recado das Forças Armadas brasileiras: “ou vocês param com essa guerrilha contra nós, porque essa guerrilha só vai perpetuar para sempre a ditadura, ou vocês a interrompam e comecem outro programa”. Ela não queria porque ia relativizar ainda mais. Eu disse: “nada disso! É claro que tem que ser isso”. E a democratização se deu assim, pela música popular, passo a passo. Golbery: “escrevam um livro como será a democratização”. Aí eu escrevi Panfletos da nova era (1980). Tá tudo ali.

Mas sobre esse “recado” das Forças Armadas, na série Kaos em Ação, Caetano, com uma certa raiva, discorda de você.

A Violeta disse: “Caetano e Gil não podem saber”. Andamos meia hora e ela falou comigo na qualidade de membro do Comitê Central do Partido Comunista. Veio uma carta do Exército dizendo aquilo lá. Mas não podia dizer nem pra Caetano, nem pra Gil. Não souberam nunca. Só quando fiz esses filmes. Tanto que tá no filme [reproduzindo a fala de Caetano]: “se eu soubesse, eu não viria…” Eu não sabia que ele ia ficar com grilo. Isso era só comigo. A culpa é minha, a responsabilidade é minha. Essas coisas são internas, né?

Você é um poeta romântico?

Sim, eu seria enquadrado como um romântico. O Romantismo sempre esteve mais perto de tudo. É a emoção. A emoção pensa mais que o pensamento lógico. Claro, é Goethe, é todo mundo. Mas também conheço o outro lado. Esqueci o nome do cientista, ele diz: “o próprio elétron tem vontade e alegria de dar o pulo”. A ciência descobriu que as pessoas se apaixonam pelos olhares, mas Ismael Silva já sabia (cantando): “tens um olhar que me consome… por caridade, meu bem, me diga seu nome…” Não é incrível? [gargalhadas]

Você reinventa a melancolia na canção: Orquídea negra, Lágrimas negras, O vampiro; a cor negra pra cantar de forma profunda.

A umbanda, a quimbanda, o candomblé vivem na densidade do mundo mitológico. Os intelectuais ficam: “como é que era na Grécia Antiga?” Ah, está aqui! Orfeu negro (1959) nasceu por isso. Você sabe que o Barack Obama nasceu por causa desse livro? As pessoas ficaram esnobes [risos]. E eles, sem ler, são mais profundos na vivência mitológica.

E sua religiosidade?

O meu lema é: “o zelo de tua casa me devorará”. É Jesus de Nazaré o tempo todo na verdade. Claro que tem todas as outras religiões, mas é Jesus de Nazaré. Ele inventou o socialismo, Direitos Humanos, o pacifismo e tudo. Aristóteles dizia: “as duas emoções mais insuportáveis são as do terror e as da piedade”. Olha que incrível! E é o contrário, né? A piedade é o carinho, é tudo.

No seu disco recente, Não há abismo em que o Brasil caiba (2019), você fala de xamanismo também na música Imagens plumagens.

Isso, é ligada ao xamanismo. Até a pedra tem emoção. É tudo uma inter-relação com você e com a coisa. E um mistério explicado abre dois. Dois explicados abrem três. Assim não para mais [risos]. E a cultura indígena, então? Essa é tão importante, ancestral, contemporânea e futura, como a cultura negra. Isso é o escrever do Brasil.

Qual sua sugestão para ser um bom poeta?

Ler o que quer [risos]. Ler bastantes livros, se aprofundar com profundidade na cultura indígena e nos escravos, que fizeram o Brasil. O Brasil só vai resolver os seus problemas quando decretar a segunda abolição. A segunda abolição é reforma agrária e estudo do jardim de infância até a universidade, grátis. Ponto. Não tem outra saída. Fui claro? Isso é óbvio ululante.

Thiago E é poeta pandeirista e compositor cavaquinista. Autor de Cabeça de Sol em cima do Trem. Com a banda Validuaté, lançou os discos Pelos Pátios Partidos em FestaAlegria GirarEste Lado Para Cima, e o show Validuaté ao vivo. É um dos criadores da revista Acrobata (revistaacrobata.com.br)


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