Considerada ‘hermética’, poesia de John Ashbery buscou comunicar o desconhecido

Considerada ‘hermética’, poesia de John Ashbery buscou comunicar o desconhecido
O poeta norte-americano John Ashbery (Foto: Moira Egan/Divulgação)

 

O choque que a poesia de Ashbery pode causar provoca uma inquietação crescente. Este primeiro acicate é adensado pela incerteza a que nos conduz cada leitura. Nem todos os poemas são igualmente interessantes, assim como nem toda experiência é necessariamente bem-sucedida. Alguns parecem esboços ou repetições frustradas de um mesmo tema, enquanto de outros disse Perkins:

“Quando Ashbery escreve bem, nenhum poeta vivo da língua inglesa pode rivalizar com ele em expressões surpreendentes, novas e perspicazes. Suas atitudes e emoções são indescritivelmente galantes, quando ele mescla humor e pathos, resignação elegíaca e esperança, e mantém discurso fluente, sereno, equilibrado e maravilhosamente imaginativo, apesar de partir de premissas que poderiam levar ao desespero”.

Por outro lado, a crítica principal que se faz a Ashbery incide justamente sobre seu solipsismo excêntrico. O leitor fica impotente pela aparência arbitrária das relações que perdem a tensão geradora de sentidos. Harold Bloom, entretanto, defendeu-o da pecha apressada de “solipsista esteticista” logo inventada pelos jornais para tachá-lo, definindo-o como um “solipsista imperfeito, que acena ante a realidade do outro eu e então retira-se para seu mundo interior”. Em vários momentos, a combinação de “rags and crystals” (em “37 Haiku”) traz vida e morte contemporâneas, com todos os seus escolhos, para o presente da consciência.

“Criar uma obra de arte sobre a qual o crítico não consiga nem mesmo falar deveria ser a principal preocupação do artista”, desafia Ashbery. Ele refere-se, com humor, à “waterworks architecture” de sua poesia, em que a verdade se torna um buraco ou borrão, “a randomness, a darkness of one’s own”. Desafiado pela natureza escapadiça dessa arte que se mostra e se esconde, o leitor tenta, à medida do possível, se aproximar de seus movimentos assimétricos.

Mas, em inúmeras entrevistas, Ashbery bate na mesma tecla, justificando e defendendo o seu desejo de comunicar, ainda que seja algo ainda não explorado. Uma vez, inclusive, confessa alegria por um trabalhador contratado para fazer reformas em sua casa que nunca havia realmente lido um livro e que, curioso, pôs-se a ler seus poemas e a interessar-se muito. A principal qualidade desse leitor, para Ashbery, era a falta de preconceito em relação ao que seria “difícil”. E assim se justifica:

“Penso que todo poema, antes de escrito, é algo desconhecido, e aquele que não é, nem valeria a pena escrever. Minha poesia é muitas vezes criticada por sua deficiência em comunicar, mas eu discordo disso; minha intenção é comunicar e meu sentimento é que um poema que comunica algo já conhecido do leitor não está realmente comunicando nada a ele e, na verdade, demonstra uma falta de respeito por ele.”

Cada poema é uma paisagem com regras próprias de habitat, que exploramos com o poeta. Este nos convida continuamente a compartilhar a busca. Astro tutelar dessa proposta, Rimbaud, em suas “Cartas do vidente” já propunha ao poeta a tarefa de descobrir territórios desconhecidos, que ele desbravaria na frente e de onde traria notícias, muitas vezes informes, ao leitor. O explorador, identificado com a alteridade, conflui com Ashbery, quando este compara sua poesia à música polifônica, cujas vozes se misturam e sobrepõem.

Nosso trabalho de leitura é uma tentativa de nos aproximarmos de um artista contemporâneo, empreitada tão fatigante quanto correr atrás do tempo para agarrá-lo. Como adverte o próprio Ashbery, a defender-se dos leitores apressados, as linhas de visão se configuram adiante:

 

Tomorrow is easy, but today is uncharted,
Desolate, reluctant as any landscape
To yield what are laws of perspective

(em “Self-Portrait in a Convex Mirror”, III)

Amanhã é fácil, mas hoje é inexplorado,
Desolado, relutante como toda paisagem
Em ceder as leis de perspectiva

(em “Auto-retrato num espelho convexo”, III)

 

VIVIANA BOSI é doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP). O texto acima foi originalmente publicado no livro John Ashbery: um módulo para o vento (EDUSP) e cedido pela autora ao site da CULT.

(1) Comentário

  1. É aquilo que Ricoeur, filósofo francês do período que se seguiu a segunda guerra mundial definiu como desvio da predicação. Falando da metáfora, disse que significar as coisas em ato seria ver as coisas como não impedidas de advir, vê-las como aquilo que eclode e é nessa interpretação crítica que entraria a filosofia e a arte, no fazer do poeta. Para ele a metáfora é tensão. Está nisso sua força que nos faz descobrir as coisas apesar do hermetismo próprio em que está inserida. Daí que derramamento verbal, sentimental, passa longe de qualquer choque semântico ou um novo significado predicativo a partir do colapso do significado literal. Está no caminho certo ao escrever poesia assim John Ashbery !

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