A frágil esperança do fim do fim

A frágil esperança do fim do fim
O cantor e compositor João Bosco (Divulgação)

 

Mano que zuera, que surpreendente esse disco do João Bosco, que já de início começa pelo “Fim” (João Bosco, Francisco Bosco) e que pede, no decorrer da canção, o fim do fim. A música começa com um lamento sem palavras – choram voz, violão e violoncelo, João Bosco e Jaques Morelenbaum. E aí vem o canto descortinando o terrível séquito do avesso do amor: a mágoa, a noite, o castigo, o açoite, o ressentimento, a injustiça, toda a dor, o infinito do fim. A solidão, a errância, a acusação, o não ser, jogo de cartas marcadas pelo desamor, sem coringa, sem trégua, mundo moribundo. É melhor a dor ou o nada?, pergunta o poeta. O nada, onde o fim chega ao fim, será um recomeço? Há essa luz por entre as trevas do caos do mundo? Depois do fim do fim, recomeça a canção, desta vez sem palavras, o acordeom fazendo a melodia, chorando entre o pulsar e o ranger dos acordes do violão e das frases do violoncelo.

Aí vem o samba “Duro na queda”. Que samba bom! Um samba daqueles da dupla João Bosco e Aldir Blanc, que tem bar, berro e brahma, um cara contando sua dor de amor e desejo de vingança, mas a vontade maior é de que sua Janaína volte, pois sua mulata de olhos claros vale o mundo. E a beleza dos contracantos e improvisos do clarinete de Anat Cohen colorindo tudo. Depois, a canção que dá nome ao disco, a swingada “Mano que zoera”, de João Bosco e Francisco Bosco: olhares que se encontram, corpos que se perdem, amores que somem no meio da algazarra da multidão. Me faz pensar em Baudelaire, no poema “A uma passante”, só que tropicalizado, no meio da folia: “No meio da fanfarra você se virou e viu/O meu olhar no seu, depois sumiu/ Sumiu/Sumiu/Sumiu”. Que arranjo!

E vem “João do Pulo”, de João Bosco e Aldir Blanc, trágica história de nosso herói corredor, João como um João qualquer, de sangue afro tupi, que foi de príncipe a escravo, de operário a herói do morro, que teve sua perna amputada e fez o Brasil triste tri trovejar nessa hora. O Brasil pulou e tremeu de dor “Ao ver o pulo do gato cortado/ Cortada a perna de luz, cortada/A claridade do raio de Xangô”. E de um pulo caímos em Minas, na música de Milton Nascimento, que vem como que completando tudo, João cantando daquele jeito dele só, sem palavra, dizendo sem dizer.

Agora um passeio ultra leve pelo Rio, guiados pela canção de João Bosco e Arnaldo Antunes, momento de beleza e placidez acentuado pela clara voz de Julia Bosco. Passamos por Botafogo, Lagoa, Ipanema, Barra e outros lugares mais. A beleza da paisagem e a água lavam a alma do poeta e a nossa, os problemas se dissipam e tudo pode esperar esse momento de contemplação e renascimento. Aí vem um acalanto: “Onde estiver” (João Bosco, Francisco Bosco), canto amoroso – “Somos um só coração” – e de proteção – “E toda noite ao escurecer/ Seus sonos vou velar”, para afastar o mal, serenar o coração dos filhos.

Depois do acalanto, o canto triste da escravidão: “Sinhá”, parceria com Chico Buarque, conta a maldade a que se acha sujeito um escravo acusado de olhar a sinhá, a tortura que o negro sofreu nas mãos do branco, um triste relato dos “extremos desconhecidos de crueldade a que a escravidão pode chegar, como todo poder que não é limitado por nenhum outro e não sabe conter a si próprio”, como disse Joaquim Nabuco. Chora o canto: “Para que me pôr no tronco/ Para que me aleijar/Eu juro a vosmecê/Que nunca olhei sinhá/Por que me faz tão mal/ Com olhos tão azuis/ Me benzo com o sinal/ Da santa cruz”.  Aí vem um “Pé-de-vento” (João Bosco, Roque Ferreira), um amor que agita e foge, num samba bom pra Morena Rosa que é dos ventos. Quem sabe sopra um vento bom?

E sopra, e vem um tema de Moacir Santos, “Coisa n.2”, instrumental, só João, voz e violão. Depois, a especular “Nenhum futuro” (João  Bosco, Francisco Bosco) e o que o espelho sugere é trágico e desalentador. Despenca o céu sobre nossas cabeças: guaranis alcoolizados, mar vermelho, 111 corpos no Carandiru. Chora o anjo da história. Lágrimas vermelhas e negras. Para terminar, a heraclitiana “Quantos rios” (João Bosco, Francisco Bosco) canta o Rio que não é um só, que é o Rio de cada um, de cada olhar: são tantos rios que cabem no Rio e, como ensinou o filósofo, não se pode entrar duas vezes no mesmo Rio.

O contraste entre opostos – de um lado, a barbárie da civilização e, de outro, a beleza deslumbrante da natureza, da paisagem carioca. De um lado, o desamparo e a crueldade do homem; de outro, sua fina sensibilidade e ternura – o diálogo cria movimento e luz nesse trabalho de João Bosco. Isso sem falar na excelência das melodias, dos músicos e dos arranjos. Um mergulho no Brasil, em sua miséria e beleza, um espelho que nos faz suspeitar de nenhum futuro, da presença aterradora do fim. E da esperança frágil do fim do fim.

Quando ouvi o disco de João Bosco fiquei impressionada com a sua força e contemporaneidade e em como ele mostra nossas feridas. Fratura exposta. O filósofo italiano Giorgio Agamben, no ensaio “O que é o contemporâneo?”, diz: “Contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro”. João contemporâneo.


ELIETE NEGREIROS é cantora e pesquisadora, autora de Paulinho da Viola e o elogio do amor (Ateliê Editorial, 2016)

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