Peça que traz Jesus travesti tem ingressos esgotados após sofrer censura em Jundiaí
Renata Carvalho em ‘O evangelho segundo Jesus, rainha do céu’ (Bob Sousa/Divulgação)
O monólogo O evangelho segundo Jesus, rainha do céu, na qual uma travesti interpreta Jesus Cristo, foi foco de uma decisão judicial que determinou o cancelamento de uma apresentação que aconteceria no Sesc Jundiaí, interior de São Paulo, na última sexta (15). Mas quem, de última hora, decidiu assistir às duas sessões seguintes em Santo André, no sábado (16), e em Rio Preto, no domingo (17), não encontrou ingressos disponíveis. Em Santo André, o público chegou a exceder a capacidade do teatro, obrigando o Sesc a liberar um lote extra de convites.
“A peça sempre foi um sucesso de público, já rodamos o Brasil inteiro com ela. Mas acho que essa polêmica trouxe uma visibilidade boa para o assunto da transfobia”, afirma Natalia Mallo, diretora da produção. A enorme repercussão do caso durante o fim de semana atraiu muitos ataques e comentários negativos, diz, mas também fez surgir novos apoiadores: “Acredito que toda narrativa provoca uma contra-narrativa. Então, no meio disso acabamos encontrando uma rede de aliados.”
Antes da apresentação no Sesc de Jundiaí, a peça foi alvo de protestos de congregações religiosas, de políticos locais e do grupo Tradição, Família e Propriedade (TFP). As reclamações foram levadas à Justiça pela advogada Virginia Bossonaro Rampin Paiva, com o argumento de que o monólogo seria um “crime contra o sentimento religioso”. Na visão do juiz responsável pelo processo, a produção “expõe ao ridículo os símbolos como a cruz e a religiosidade”, além de ser “atentatória à dignidade da fé cristã” por trazer uma travesti na pele de Jesus Cristo, interpretado pela atriz Renata Carvalho. O Sesc recorreu da decisão.
Segundo a diretora, este é o primeiro caso concreto de censura judicial sofrida pela peça, originalmente escrita pela dramaturga escocesa Jo Clifford e adaptada à realidade brasileira por Mallo. “Falamos muito da hipocrisia dos fariseus, da questão do apedrejamento, dos ensinamentos de amor e aceitação de Jesus, mas sem mudar o texto original. Tudo o que queremos dizer com a peça fica muito ilustrado quando grupos conservadores atacam a produção”, afirma.
O espetáculo já estava em cartaz há um ano, acumulando apresentações em Sescs e festivais de teatro pelo país. O monólogo também já foi levado a prisões, abrigos e instituições de ensino popular. “A ideia é fazer aquilo que Jesus faria: uma peregrinação fora dos centros”, explica a diretora. Em todas as apresentações, há um cuidado para o que Mallo chama de “crítica cega” não aconteça: “Buscamos sempre um diálogo, escutamos as críticas e tentamos convidar as pessoas para assistir à peça. Às vezes não conseguimos dialogar e dá no que deu”.
Neste domingo (17), ela teve os quatro pneus do seu carro furados, ato que atribui à repercussão do episódio em Jundiaí. Episódios semelhantes aconteceram em outras cidades: “Na estreia em Londrina e no Paraná sofremos ameaças da Arquidiocese e de políticos. No Sesc Taubaté, precisamos revistar o público porque havia um grupo de 20 homens agitados, um pouco agressivos, que desapareceu no momento em que anunciamos a revista”, conta. Ela afirma também que o “movimento de oposição” tenta “articular com outros juízes nas cidades por onde a peça passa para evitar que ela chegue aos palcos.
“Hoje, o discurso religioso é usado para excluir, mas a essência dele é o oposto, é solidariedade. ‘Amai ao próximo’. Nosso trabalho vai numa ferida social que está aberta, dolorosa. Mas é necessário mexer nela”, diz. A peça segue em exibição no festival Porto Alegre em Cena, nos dias 21 e 22 de setembro; no Sesc Santo Amaro, na semana seguinte; no Festival de Artes Cênicas de Salvador, de 24 a 29 de outubro, e em 2018 deve ir a Cabo Verde, na África, para o festival Mindelact.
COLABOROU AMANDA MASSUELA