Atriz travesti interpreta Jesus em espetáculo ‘transfeminista’

Atriz travesti interpreta Jesus em espetáculo ‘transfeminista’

Renata Carvalho em cena de “O evangelho segundo jesus, rainha do céu”/Foto: Lilian Fernandes


Paulo Henrique Pompermaier

Em 2014, na pequena capela de St. Marks, em Edimburgo, a escritora britânica Jo Clifford apresentava sua peça “O evangelho segundo Jesus, rainha do céu” no Fringe, um dos maiores festivais de artes cênicas do mundo. O texto apresenta um Jesus reencarnado travesti, e através de parábolas bíblicas convida o espectador a repensar tolerância, respeito e amor ao próximo. A diretora e tradutora argentina, radicada brasileira, Natalia Mallo, que frequentou o festival a convite da organização British Council, ficou imediatamente impactada com a peça e passou aquela noite traduzindo o texto. Apresentou uma primeira versão para Clifford no dia seguinte.

Da amizade e colaboração entre as duas autoras surgiu o texto final de Mallo, que adaptou a versão inglesa ao contexto brasileiro em diversos aspectos. O uso de marcadores de gênero em português, por exemplo, foi muito pensando por Mallo “por ser um aspecto crucial e político da tradução”. Quem dá vida a Jesus é a atriz trans Renata Carvalho, 33. Uma Jesus “jovem, exuberante, provocadora, que traz um pouco do ambiente da rua,do submundo, da noite”, na opinião da diretora. “São elas [as trans] que morrem diariamente nas ruas para nos lembrar que a sociedade ainda é extremamente violenta e intolerante e que vivemos uma cultura de medo e repressão”. Com o espetáculo, ela pretende instaurar um “ritual amoroso”, propondo “resgatar a mensagem revolucionária de amor e perdão” da bíblia. Em entrevista à CULT, a atriz Renata Carvalho fala sobre sua atuação e a recepção do público.

 CULT – Como o público está recebendo o espetáculo?

Renata Carvalho – Estamos recebendo muitas mensagens de carinho, sempre frisando a qualidade do texto da Jo Clifford e todo seu conteúdo e pensamento. Algumas pessoas vêem como pejorativo e desrespeitoso só pelo fato de ser uma atriz travesti fazendo Jesus. Muitos cristãos, evangélicos e religiosos de forma geral gostam muito e vão falar conosco no fim de cada apresentação. O espetáculo enaltece a palavra de Jesus. É um espetáculo transfeminista que fala de amor, tolerância e respeito. Vamos parar de tanto ódio em nome Deus? Onde Jesus escreveu que era para separar, segregar, xingar, bater e matar o próximo? Mais amor, por favor. Transfobia mata.

Você traz elementos da sua militância política na sua encenação? Como isso ocorre?

Sou travesti, precisava trazer a realidade da nossa população para esta encenação. Desde que iniciei minha transição de gênero em 2007, todos os meus trabalhos permeiam este tema e não podia ser diferente. Somos o país que mais mata travestis e transexuais no mundo. Abordo o tema nos projetos Bispo e ZONA!, de O Coletivo, grupo do qual faço parte em Santos. Em O evangelho segundo Jesus, Rainha do céu buscamos a identidade da travesti brasileira, esse era nosso principal objetivo. E nossa realidade está ali presente seja nas musicas, nas gírias, no figurino, no corpo, na feminilidade. Essa Jesus é brasileira.

Como você vê a questão da representatividade trans, hoje? O que acha de atores cis interpretando personagens trans?

Neste momento atual em que vivemos, neste regime patriarcal/neo-liberalista/misógino/racista e LGBTfóbico precisamos de representatividade, sim. E é claro que neste contexto nós, travestis e transexuais, também queremos representatividade, sermos vistas e enxergadas. Quando chegarmos à normatização de nossos corpos e identidades, onde vamos ver travestis e transexuais interpretando papeis cis, aí sim não vejo problema em uma atriz ou ator cis fazerem papeis de trangêneros. A Glória Perez colocar uma mulher cis fazendo um papel de um homem trans não nos ajuda e não nos representa. Assim como Cauã Reymond, Carolina Ferraz, Claudia Raia, Floriano Peixoto, Luiz Miranda e tantos outros que aceitaram esses papeis. Aqui vai um pedido de uma atriz, travesti e militante: atores e atrizes cis, não aceitem interpretar papeis de trangêneros. Isso significa tratar o tema como ele deve ser tratado, com respeito. Se a Natalia Mallo tivesse escolhido uma atriz cis para o papel da Jesus, quem nos representaria? Quem falaria por nós? Quem pode falar melhor do que nós, que vivemos na pele a transfobia? Nós precisamos sair das esquinas, esta não pode ser a nossa única opção de vida. Por isso resisto e luto.

A montagem atualiza as parábolas bíblicas, ou elas são atuais por si só?

O que continua atual é a ignorância, a intolerância e o preconceito. E neste ponto Jo Clifford é brilhante, ela ressignifica a história da maior injustiça já cometida, onde um homem inocente foi condenado, morto e crucificado “pela sociedade do bem” e “os homens da igreja”. Colocando umas das populações mais estigmatizadas e marginalizas pela sociedade, os transgêneros, no centro da discussão. E se Jesus voltasse nos dias de hoje como uma travesti?

O evangelho segundo Jesus, rainha do céu
Quando: Até 5/11 de quinta a sáb., 20h30
Onde: Sesc Pinheiros – Rua Paes Leme, 195, metrô Faria Lima
Quanto: R$ 25 (inteira); R$ 12,50 (meia)

Errata: ao contrário do informado pela reportagem, a diretora Natalia Mallo não é brasileira, e sim argentina radicada no Brasil.

(1) Comentário

  1. Não havendo ofensa à nenhuma religião séria…nada demais. Serão poucos os cuidados necessários se for tudo feito com maturidade e fundo de destaque às verdades de Jesus.

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