Jean Pierre Vernant, um helenista nas barricadas
O ano de 1968 alterou radicalmente o modo como os intelectuais franceses viviam a política. A própria noção de intellectuels nasceu na França em meio ao debate político em torno do affaire Dreyfus e a reação de cientistas, médicos, artistas, poetas e filósofos que se manifestavam nas páginas do jornal L’Aurore em favor da revisão do processo do capitão. Mas foi com a Segunda Guerra Mundial que essa intelectualidade passou por uma maior radicalização. Muitos passaram a integrar as fileiras da resistência à ocupação nazista, como o historiador medievalista Marc Bloch, fuzilado pela Gestapo em 1944, e outros tantos que integraram o Partido Comunista, como o helenista Jean Pierre Vernant.
Nascido em 1914, Vernant foi aprovado no exame de agrégation em Filosofia em 1937 e passou a lecionar essa disciplina em uma escola de Toulouse, em 1940. Dois anos depois, ajudou a fundar a Armée Secrète e teve um papel ativo na resistência. Com o codinome de Colonel Berthier coordenou as operações das Forces Françaises de l’Intérieur na região de Haute-Garonne e comandou a libertação de Toulouse em agosto de 1944. Apesar dessa intensa atividade política, Vernant nunca aceitou posições de responsabilidade no interior do Partido Comunista. Na verdade, manteve sempre uma atitude seu apoio ao partido, sem nunca renunciar à crítica, até romper com ele definitivamente em 1970.
Os recorrentes atritos de Vernant com a direção do Partido revelam a angustiante relação dos intelectuais franceses com o stalinismo. Já em 1939 apareciam os primeiros sinais dessa tensão. Quando seu irmão Jacques denunciou a assinatura do pacto germano-soviético, Jean-Pierre manifestou também sua oposição ao pacto respondendo-lhe que “a verdadeira coragem está em, no seu íntimo, não ceder, não se curvar, não desistir. Ser um grão de areia que as máquinas mais pesadas, aquelas que esmagam tudo por onde passam, não conseguem destruir”. Foi por não ceder, curvar-se ou desistir que sua militância no PCF foi sempre tormentosa.
Guerra da Argélia
Com a guerra da Argélia, primeiro, e em 1968, depois, essa relação se tornará ainda mais tensa, resultando na ruptura de Vernant com o PCF. Se a trajetória de Vernant merece ser aqui recordada é porque ela foi, também, a de muitos intelectuais que viram nos acontecimentos de 1968 uma demonstração clara da falência política do PCF. A guerra da Argélia foi uma experiência política crucial para uma geração de intelectuais e jovens que depois iria participar ativamente dos acontecimentos de 1968. Ela promoveu uma profunda divisão na sociedade francesa e alimentou uma crescente radicalização dos conflitos políticos. O papel dos comunistas na luta pela independência das colônias francesas na África oscilou, entretanto, repetidas vezes. Em 1938, o secretário-geral do PCF, Maurice Thorez, assim se pronunciava contra a independência: “Se a questão decisiva do momento é a luta vitoriosa contra o fascismo o interesse dos povos coloniais é o de sua união com o povo da França e não uma atitude que poderia favorecer os empreendimentos do fascismo.”
Seja agitando a ameaça fascista, seja alertando a respeito do perigo do fundamentalismo islâmico, repetidas vezes o PCF se pronunciou contra os movimentos concretos de independência no Magreb. Quando, em maio de 1945, argelinos atacaram colonos europeus após manifestações organizadas pelo Parti du Peuple Algerien (PPA), uma delegação de representantes do Partido Comunista da Argélia e do Partido Comunista Francês se reuniu com o governador geral para denunciar “as provocações dos agentes hitlerianos do PPA e do PPF [Parti Populaire Français, a organização fascista dirigida por Jacques Doriot] e de outros agentes camuflados nas organizações que se pretendem democráticas ao serviço do imperialismo fascista”. Os comunistas exigiram do governador penas severas para aqueles elementos que tinham por objetivo “provocar uma guerra civil” e uma “repressão implacável”. Mas os representantes não se manifestaram a respeito dos milhares de argelinos mortos pelas forças de repressão imediatamente após os acontecimentos de maio.
Defesa de uma política da verdade
Vernant, desde o primeiro momento foi um radical defensor da independência das colônias africanas e, principalmente, da Argélia, e essa foi razão para uma forte crítica ao PCF. Em um artigo publicado com o pseudônimo de Jean Jérôme na revista Voies nouvelles, em 1959, Vernant discutiu um documento de fevereiro de 1958 da Federação de França da FNL intitulado Le PCF et la révolution algérene. Nesse documento era denunciada violentamente a política do PCF, acusado de não se comportar de modo conforme a seus princípios. Vernant apontava que a crítica não era toda justa, uma vez que se referia a uma política de dois anos antes, e supostamente já sido corrigida pelo Partido, que desde 1957 se pronunciava abertamente pelo direito de independência da Argélia.
Mas Vernant justificava a desconfiança da FNL com o PCF: as retificações da política argelina do Partido não foram explicitadas; elas não se apoiavam sobre uma reflexão crítica do próprio passado. Mas o reconhecimento e a denúncia dos erros cometidos, continuava o historiador, seriam a condição prévia de uma mudança política eficaz. O que Vernant exigia era que a verdade viesse à tona, que os erros e suas razões fossem -assumidos. Ele próprio procurou responder ao documento da FLN com um minucioso dossiê, construído com a paciência de um historiador, no qual esses erros eram expostos. E ao final desse documento, consternado, afirmou: “Tais são os elementos do dossiê concernente às críticas dirigidas pela Fédération de France du FLN ao PCF. Poderá se julgar se elas permitem aos dirigentes do Partido considerar que têm a consciência perfeitamente tranqüila”.
Somente a verdade poderia tranqüilizar. Mas nas décadas seguintes, sua consciência crítica não teve razões para apaziguar-se. Sua primeira obra importante, Les origines de la pensée grecque, publicada em 1962, foi lida por muitos como uma recusa das teses dos defensores do “milagre grego”, mas também poderia ser lida como um duro ataque à política do PCF e uma erudita defesa de uma política da verdade. Nessa obra Vernant procurou apresentar as raízes políticas da racionalidade e grega. A laicização do pensamento político, realizado na passagem do século 8 a.C. ao século 7 a.C. asseguraria, para o helenista, o advento da própria filosofia. O aparecimento da polis foi um acontecimento decisivo para tal.
Na polis grega, afirmava Vernant, política e logos passaram a vincular-se estreitamente. A palavra assumiu uma posição de preeminência sobre todos os demais instrumentos de poder, enquanto a razão se expressou primeiramente no plano da política. Com Aristóteles uma lógica do verdadeiro, própria da teoria, foi contraposta a uma lógica do verossímil. É o caráter público dessa política e desse logos, que permite a todos controlar seus resultados. A polis distinguiu um domínio público de um domínio privado, as práticas abertas, estabelecidas à luz do dia e de conhecimento de todos, aos processos secretos, de conhecimento exclusivo de uns poucos privilegiados. E era contra os segredos acobertados pela realpolitik de uns poucos privilegiados que Vernant se levantava.
Ao longo dos anos 1960 as razões para essa crítica seriam ainda maiores. O PCF continuava oscilante perante a independência das colônias. Quando em outubro de 1960 a Union Nationale des Étudiants de France (Unef) convocou uma manifestação na Mutualité de solidariedade ao povo argelino, o PCF e a Union des Étudiants Communistes (UEC) qualificaram essa iniciativa de “provocação esquerdista”. Mais de 15 mil estudantes compareceram, entretanto, à “provocação”. A partir daí o movimento estudantil se radicalizou rapidamente, construindo um Front Étudiant Antifasciste (FEA) como organização de autodefesa contra a escalada militarista da reacionária Organisation Armée Secrète (OAS) que começou suas operações na Argélia, mas prontamente difundiu suas atividades pela França. Apesar de reunir rapidamente centenas de estudantes a FEA encontrou forte resistência por parte do PCF e mesmo da Unef.
A recusa da guerra colonial esteve na raiz do processo de radicalização da juventude francesa e precipitou a crise do PCF, abalando sua influência entre os intelectuais. Em maio de 1968, essa influência seria definitivamente comprometida. A radicalização dos estudantes foi, também, a radicalização dos intelectuais. Mas não era o que o Partido Comunista desejava e, por isso, desde o início procurou impor limites ao movimento, chegando a condenar a manifestação estudantil de 26 de maio. Os intelectuais reagiram a essa condenação e 36 deles, militantes do Partido, manifestaram sua oposição a essa decisão em um documento dirigido à direção. Entre eles estava Vernant. Os signatários dessa carta foram convidados, então, a se reunir com membros do bureau político do Comitê Central, dentre eles o medíocre Roger Garaudy e Pierre Juquin. Travou-se, então um diálogo de surdos. Vernant estava sinceramente entusiasmado com as rápidas mudanças políticas impostas pelas barricadas estudantis e pelas greves operárias e procurou explicar isso aos dirigentes do PCF, mas eles, segundo narrou, “não entenderam aquilo que lhes foi dito”.
Partido revolucionário?
A submissão do PCF às regras do jogo da democracia liberal e à política externa da União Soviética tornava sua prática política incapaz de encarar as possibilidades de mudanças sobre as quais os intelectuais dissidentes procuraram chamar a atenção. Não apenas a estrutura partidária burocrática desse partido reproduzia as desigualdades com que afirmava querer acabar, como suas práticas políticas reforçavam essa desigualdade. O movimento da juventude de 1968 viu na crítica às regras do jogo da democracia liberal e das práticas políticas conformes a elas o meio para restabelecer a verdade da política.
Os intelectuais expuseram naquela ocasião “um conjunto de fatos precisos e significativos sobre a fisionomia do movimento, sua amplitude e seu porte, as possibilidades que se abriam a um partido revolucionário”. Mas o PCF era esse partido revolucionário? Na reunião com os intelectuais, Juquin fez uso da palavra para expor a “questão fundamental”: a preparação das eleições parlamentares. Para o PCF, mais importante do que os eventos de 1968 era não assustar seu novo aliado, a Fédération de la Gauche Démocrate et Socialiste, recém-criada por François Mitterrand, e preservar as bases do acordo do programa comum com vistas a uma vitória nas próximas eleições. Vernant concluiu consternado: “Tem-se a impressão de que para eles no fundo nada aconteceu. A crise de maio de 68 não é explicada, analisada, ela é desaparecida”. A suposta vitória eleitoral, como se sabe, nunca ocorreu e dois anos depois o conhecido helenista rompeu definitivamente com o PCF.
As barricadas e as greves permitiram ver nitidamente. Retiraram a política das sombras, das câmaras fechadas nas quais eram feitos os acordos parlamentares. Mas era, justamente isso o que o PCF não estava disposto a admitir, obscurecendo, desse modo, os imperativos de sua política. O elogio da astúcia, da sagacidade e do jogo duplo, encontrava-se explícito em sua prática Para Vernant isso era insuportável. A verdadeira coragem, à qual fez referência em 1939, exigia uma política da verdade. Em 1968, Jean Pierre Vernant, recusou-se a compactuar com o desaparecimento da verdade que viu nas barricas e nas greves.
Alvaro Bianchi é professor do Departamento de Ciência Política na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), diretor do Centro de Estudos Marxistas (Cemarx) e organizador do livro Transgressões: as ocupações estudantis e a crise das universidades (Sundermann, 2008)