Jantar de frases feitas

Jantar de frases feitas

Alcir Pecora

Um Erro Emocional, de Cristovão Tezza, representa, a seu modo, um tour de force: a tentativa de narrar, ao longo de um jantar entre um escritor mulato e uma leitora fervorosa, a memória afetiva das duas pessoas  na iminência de um caso de amor. Os eventos são mínimos. O romance compõe-se dos devaneios de cada um deles, quase sem comunicação entre si.

Pode ser divertido notar que as ações se resumem ao seguinte: o escritor Donetti entra no apartamento de Beatriz, com uma garrafa de vinho e um manuscrito nas mãos, declarando que se apaixonou por ela (pág. 7); dez páginas depois, ele abre o vinho; na pág. 24, ela pede pizza; na 66, a pizza chega; quatro páginas depois, ela é aberta; mais cinco páginas, é cortada a primeira fatia; outras cinco páginas, uma segunda fatia; na pág. 86, Beatriz vai ao banheiro; na 105, propõe um chá, que o escritor aceita na 115, mas torna a pedir vinho na 139, o que a leva a se dirigir à despensa para buscar uma nova garrafa; na 144, a garrafa é trazida, e ele a abre; mais três, Beatriz dá o primeiro gole; na pág. 154, traz água; na 172, vai buscar outra garrafa; aproveita que saiu da sala para “fazer xixi” cinco páginas depois; na 178, traz a garrafa; na 183, Donetti a serve, ao que ela, na página seguinte, propõe fazer café; na pág. 191, a última do livro, Beatriz verte a água no coador e Donetti estende a mão para tocá-la.

Se rareia o plano factual, o plano mental é agitado. Donetti e Beatriz, cada um por seu lado, imaginam, escrevem mentalmente, sonham, fazem um auto de fé mental, avaliam, pensam, fantasiam, lembram, sorriem da ideia, perguntam imaginariamente, inibem com silêncio, estão na lua, quase decidem dizer, quase dizem, devaneiam, quase completam, pensam em acrescentar, dialogam mentalmente etc. – tudo sem cruzar a linha da própria memória em favor de uma conversa comum.

Estereótipos
O contraste entre os dois planos é o que há de mais inovador no romance: um choque tão inverossímil e artificioso que lembra uma procedural play, isto é, uma rotina elocucional a priori, aplicada de modo indiferente ao conteúdo da obra. Isso poderia lhe dar um aspecto experimental interessante, mas infelizmente não é o que predomina nele. Afora esse mérito da composição, o romance perde-se na natureza estereotipada das lembranças, na estreiteza de suas referências, incompatíveis com os personagens de grande autor e de leitora refinada, para naufragar no tom filosofante, cujo sujeito é um “nós” sentencioso, generalista, que dissolve o drama pessoal numa cascata kitsch.

Donetti lembra-se, por exemplo, da relação feliz com a primeira mulher, até a suspeita de que ele estivesse tendo um caso homossexual; das más críticas recebidas pelos últimos livros; do flagrante dado pelo namorado de Cláudia, que viria a ser sua segunda mulher, quando se beijam numa festa; da audiência de seu divórcio, quando Cláudia descobre seus casos; da cena da mãe estapeada pelo pai, à vontade na “alegre barbárie carnavalesca brasileira”; e, principalmente, se lembra da cena em que foi iniciado sexualmente por uma prostituta, também nomeada Beatriz, à qual foi levado pelo pai, aos 15 anos. Por sua vez, Beatriz, a leitora, pensa no acidente no qual morreram seus pais e seu irmão; no primeiro beijo; no tarado do pré-primário; na primeira transa, aos 17 anos; no casamento burocrático; e, acima de tudo, remói a vez em que, após seguir o marido e lhe descobrir a traição, vinga-se dormindo com um amigo dele.

Quer dizer, Donetti vê na leitora Beatriz a possibilidade de superar a carga traumática da autoridade paterna e da baderna nacional associada ao sexo pago; e Beatriz enxerga no escritor a chance de conectar sexo e intimidade real, intelectual. Nos dois casos, o gesto de aproximação, difícil e adiado, sugere uma conciliação edificante.

Essa leitura se reforça com a enfiada de lugares-comuns sobre as diferenças entre homens e mulheres, sobre a literatura, o amor, a felicidade, a mitologia mestiça nacional que esvazia o romance na mesma medida em que o preenche com frases de efeito. Leitora e escritor, mulher e homem, ao contrário do que prega o livro, se indistinguem no gosto da frase feita: “estar apaixonado não é a mesma coisa que amar, não somos donos da paixão, apenas do amor”; “todo escritor é um ressentido que precisa recuperar algum tapete imaginário que na infância lhe tiraram os pés”; “é como se levássemos as mulheres para a cama apenas para conversar melhor com elas, o que queremos mesmo é devassar a alma, o corpo é só a porta de entrada”; “a literatura é um elo absoluto entre duas pessoas”; “o sexo ri”; “a infância é um bom tempo não em si, poderia acrescentar, mas só quando vista de longe”; “pessoas que se amam repartem confissões e gostam disso”; “amor é um desejo, não um sentimento, ele só existe no terreno da expectativa, de onde extrai sua seiva e sua vitalidade”; “os homens quanto mais contam, mais ricos ficam; as mulheres quanto mais falam, mais restam pobres”.
Há outras dezenas de frases assim à disposição do leitor.

Alcir Pecora é crítico literário e professor da Unicamp

Um Erro Emocional
Cristovão Tezza
Record
192 págs. – R$ 34,90

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