Insert coin

Insert coin

 

Você tem um livro publicado, mas seu pai não o lê, não gosta de seus poemas. Adora, porém, Roberto Carlos. Toda vez que escuta as canções do Rei (não qualquer uma, mas uma daquelas que acertam em cheio alguma coisa que a gente nem sabia que estava lá), toda vez que escuta uma dessas canções, se volta para o filho e diz: “É um poeta, né?”.

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Talvez fosse demais ouvir aí uma destinação; e essa é uma palavra um pouco séria, pesada demais. Em todo o caso é uma bela história e não só porque envolve seu pai. A poesia aí encontra alguma coisa (que talvez ela nem acreditasse que ainda estava lá). Sim, porque, se a arte não desvela mais o ser do homem, ou não dá mais a medida da habitação da comunidade humana no mundo, como talvez quisessem Hegel ou Heidegger, é disso que ela parece se aproximar naquela mobilização interna de afetos provavelmente bem conhecida por qualquer um que já conheceu um fã de RC. (A tal ponto, que talvez se pudesse dizer que quando descamba para uma espécie de hino religioso, Roberto Carlos talvez não faça mais do que reencontrar uma vocação e revisitar, mais uma vez, a união primordial entre arte e religião que a modernidade se acostumou a imaginar como sua contraparte impossível ou como sua origem perdida.)

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Você parece achar que isso é muito, um pouco altivo demais, sério demais. Talvez essa história te sirva só para pensar em escrever para o seu pai, talvez como quem tentasse ocupar esse espaço do É-um-poeta-né. E você sabe muito bem que o acento aí não é o da filosofia moderna alemã, nem exatamente o do lugar primordial da arte no mundo helênico. Não, o sotaque aí é o da música popular, às vezes mesmo brega, é a levada da cultura de massa. E mesmo que esses termos sejam bem pouco precisos, amplos demais, pouco sutis, isso te serve talvez como antídoto. Não se levar a sério, não se levar tão a sério assim, Leonardo, é uma arte. É talvez a sua arte. Ou a sutileza que eu mais invejo e admiro em você. A maneira como você conta essas histórias, essa história, a sua história, ou a história sua com o seu pai – e que é muito mais do que sua, sempre – a delicadeza com que surgem essas cenas que você faz deslizar para fora da moldura pesada e dura da Poesia, da Grande Arte, da Tradição… Aos doze anos, seu pai te estende uma moeda feita no ano em que você nasceu. Ela não leva, no entanto, o brasão da família (nem o da nação, nem uma inscrição religiosa), mas as efígies em alto relevo de Didi, Dedé, Mussum e Zacarias. Sim, você nasceu no ano em que os Trapalhões comemoravam 15 anos e uma coleção de moedas especiais foi cunhada pela Casa da Moeda (onde seu pai trabalhava). O contexto pareceria evocar uma moldura simbólica do destino – adesão épica à herança familiar ou aceitação trágica de um acaso que cai desatinadamente sobre o sujeito. Mas que inscrição familiar é aí possível? Que tipo de destino descortinam ao homem as efígies de Didi, Dedé, Mussum e Zacarias? Que habitação se desvela a não ser, talvez, a de uma singular maneira de desativar essas expectativas grandiosas no tom menor de uma ironia baixa, sem acidez?

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Seu pai não é somente o seu pai, claro, e você sabe muito bem. Quero dizer: a herança que você recebe, a herança cujo peso você desativa, não é somente familiar. O destino que se desvela aí para você é o desatino da escrita; é o lugar de poeta que se abre aí para você – e a história sobre RC diz isso muito bem. Aí parece que começariam outros problemas, mas isso talvez não importe tanto. Você diz que o verso é só “por praticidade” e fica parecendo que é só posteriormente, meio sem querer que, de repente, você descobre que “isso aqui é um poema”. É certamente um lugar curioso para a poesia o da “praticidade” (tanta gente dizendo, tão sem pensar, que ela não serve pra nada…). E talvez ninguém mais acredite que o que mais importa mesmo não é que isso aí seja um poema, mas que seja um poema para o seu pai. E um poema sobre o seu pai. (Mesmo que sem o seu pai.) E realmente, se você quer contar uma história, só contar essa história, talvez a poesia seja mesmo o meio mais prático, mais rápido e leve. E talvez o verso sirva mesmo para imprimir um ritmo qualquer, uma leveza, e essa seja a moldura menos grandiosa (mais suave, por exemplo, do que escrever um romance sobre isso).

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Você sabe, é assim que eu te leio. Quero dizer: essa questão da paternidade, da herança, de uma certa relação com o passado, ela insiste na sua poesia: “Sem título, 2012” é sobre uma separação, o término de um relacionamento amoroso; “Kansas” sobre a morte de um amigo; “Crocodilo” é atravessado pelo tempo; todo A morte de Tony Bennett é sobre isso, creio eu (recortar, colar, perseguir: qual a saúde que há em ser aquele que vem depois?). Já “Insert coin” é esse grande poema sobre o seu pai, mas também sobre uma viagem a Mariana – e essas cidades do barroco mineiro sentem o peso do passado, da tradição, igrejas, estátuas, patrimônio histórico (mal cuidado, aliás). São mesmo muitos túmulos, muitos fins, muitas perdas, e esses seus versos-por-praticidade parecem suspender tudo uns dois palmos acima do chão. Escala Richter revolve o fundo, o subterrâneo, o peso dessas coisas enterradas. Você diz que gosta da ideia de ter o nome próprio de outra pessoa no título do seu livro. É talvez um jeito de descentralizar o seu nome na capa. E, a princípio, essa referência a uma escala que mede algo da ordem do catastrófico parece destoar do tom menor do livro. É que a gente esquece que abalos sísmicos vem em todos os tamanhos (mesmo que todos à sua maneira revolvam o fundo, mesmo que em todos o que está morto pareça insistir em não permanecer morto). É que a gente esquece que onde há escala, há sempre escalas, ordens muito diferentes de grandeza e de perspectiva. E aí, terminar um casamento, ter ou perder um pai, escrever um poema, enterrar um amigo, visitar uma cidade – tudo isso vem também em muitos tamanhos (mesmo que todos revolvam o fundo de algumas dores, afinal nada que passa está exatamente morto).

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Você é um poeta lírico. Embora não haja nos versos aquele lirismo habitual. O título “Insert coin” fala certamente do episódio clímax em que a moeda paterna cai no buraco que a madeira velha e carcomida abre no túmulo de um artista do passado. Mas isso não é tudo. Em uma dessas referências à cultura de massa bem ao seu gosto, insertcoin é a frasezinha que pisca repetidamente na tela dos jogos eletrônicos de fliperama, pedindo reiteradamente jogue de novo, insira uma moeda e jogue de novo, de novo e de novo. O jogo de azar já foi considerado o paradigma de um tempo infernal, de um presente interminável que anula o valor do passado em um lance sempre novo de sorte. O jogo eletrônico é sem dúvida um filho mais novo do jogo de azar e tem também esse poder de suspender o tempo. No entanto, não acho que seja bem por aí que a coisa passe pra você. Sim, estamos lançados na temporalidade daqueles a quem nunca é permitido terminar o que foi começado. Mas talvez por isso mesmo estejamos sempre em condições de recomeçá-lo e recomeçá-lo. Sem tábula rasa, sem precisar matar o pai, acabar com a arte, com o verso ou com a poesia. Eu acho, querido, que “Insert coin” é a contraparte gozadora da ladainha vanguardista do game over. Gosto de usá-lo para pensar a poesia, seu lugar e a possibilidade e as maneiras de fazê-la hoje – e isso também em uma certa relação com a herança, com a paternidade e com seu passado. A moeda descortina, então, um certo destino (e não só para você…): o destino de recomeçar e recomeçar, de reescrever e escrever ainda. Tudo está, sim, dito, e não vai nisso nenhum problema, nenhum drama, nem qualquer heroísmo. Sim, “já era”, mas “os amigos são sempre os amigos” e, se você tiver uma moeda, pode recomeçar.

Excertos de “Insert coin”

No ano em que você nasceu
a comemoração de 15 anos dos Trapalhões.
Seu pai trabalhava na Casa da Moeda
e ganhou uma das 60 moedas cunhadas
especialmente para a homenagem.
Num lado o aviso da efeméride
no outro à maneira de charge
quatro efígies e uma data abaixo.
Após 12 anos, o mesmo pai, testa
em frisos, chama o garoto, feliz aniversário.
Ele mostra a data na moeda e diz
abre a mão, segura, é da sua idade.

(…)

Você disse para um amigo
que estava preparando algo sobre
as férias em Ouro Preto, ele veio logo
falando que seria impossível passar sem
o Romanceiro da Inconfidência.
Você falou que não, que o verso era só
por praticidade e que já tinha até colocado
os Trapalhões, ele disse então que já era.
Sim já era e você nada pode fazer
a não ser ficar pensando também que sim
já era mas que os amigos são sempre os amigos.

(…)

A vida inteira seu pai disse
escrever uma música e o máximo
que ele fizera fora assobiar aqui e ali
trechos dessa canção que, você acha, só existia
quando ele assobiava. Era uma vez uma música
e uma vez ele não só assobiou como também
cantou para você alguns trechos dela
mas isso tem tanto tempo que hoje eles parecem
ser de Detalhes mas não dá pra ter certeza.
E você acha curioso dizer isso agora
você acha muito curioso dizer isso agora
ainda mais pensando no que já vem pensando.
Para falar a verdade, mais do que curioso
você acha até engraçado dizer isso justo agora
ainda mais pensando no que já vem pensando.
E esses pensamentos seus às vezes se juntam a outros
entre eles, um súbito, o de que isso aqui é um poema
para o seu pai, sobre o seu pai mas sem o seu pai.

(…)

Vamos sim, digo a Isolda
concordando em antecipar o almoço.
Na rua de baixo, já tinha visto um restaurante
cujo prato do dia era tutu à mineira
novidade, quem engorda um quilo engorda dois.
Ainda perto do altar mas já rumo à saída
sigo pelo corredor central da nave
o chão de madeira guarda sepulturas anônimas
piso nos números 32 e 33 depois no 37.
Já no meio do caminho avançando
65 e 68 o passo é irregular, a ordenação delas
também, por isso o percurso sugere
um deslocamento quase sem padrão
77 e 80. Isolda já está na porta e espera
82 e 87 e 90 apresso o passo até que
ao lado do tapetinho da porta
piso finalmente sobre a campa de número
94. Olha quem está enterrado aqui, diz ela.
Ainda pensando no tutu à mineira
vejo entalhado em mal alinhadas letras
Mestre Athayde 1762-1830.
Isolda com dois passos já está fora da igreja.
Quanto a mim, parado na saída, reparo, na tal sepultura
há uma fenda na madeira por onde passariam dois dedos.
É para Athayde respirar melhor
teria dito ao passar por mim
a filha adolescente do casal de meia-idade
mas não tenho certeza, havia algum barulho
de modo que ela também poderia ter dito
é nas zonas escuras dos ciclos que decorrem as metamorfoses.
Parado na saída, enquanto meu espírito revisor se decide
entre uma frase e outra, nem percebo seus irmãos mais novos
os atletas vindo do fundo da igreja, correm na minha direção.
Ao escapar do primeiro, não escapo do segundo.
Cara no chão, a moeda com as efígies de Didi Dedé
Mussum Zacarias e a data de 1981 corre
lentamente pela madeira carcomida, campa 94
igreja de São Francisco de Assis Mariana, corre
e gira em círculos progressivamente menores
Didi Dedé Mussum Zacarias, campa 94
madeira carcomida, a moeda gira
progressivamente em círculos
menores em cujo centro
último e vertical está
a fresta por onde
Athayde ainda
respira.

Maurício Chamarelli Gutierrez nasceu no Rio de Janeiro em 1984, é pós-doutorando junto ao Programa de Estudos Literários da Universidade Federal de Juiz de Fora (PNPD/Capes) e doutor em Poética pela UFRJ, tendo defendido tese sobre o contemporâneo e sua poesia no Brasil. Escreve.

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