Incerto amanhã
Olivier Roy
As revoltas espalham-se pelo Oriente Médio, e os jovens que lançaram o movimento de protesto ganham a adesão de um número crescente de manifestantes. Isso nos leva a perguntar onde tudo isso vai terminar e quais serão as consequências geoestratégicas. Seria presunção afirmar que já temos respostas perfeitas neste momento, mas, mesmo assim, podemos começar a refletir sobre essas perguntas.
Se em alguns países a situação é de tudo ou nada (na Líbia, Muammar Gaddafi ou vai afogar a revolta em sangue ou vai desaparecer), em outros estamos assistindo a um exercício de contenção de danos, algo em que o regime atual cria a aparência de estar mudando e, ao mesmo tempo, se esforça para manter as mudanças no menor nível possível.
E, se as potências ocidentais estão aplaudindo o processo de democratização, por enquanto elas não deixam de estar obcecadas pela necessidade de conservar a estabilidade – ou seja, o status quo estratégico: uma paz fria entre Israel e o mundo árabe e a tentativa de montar uma frente unida para isolar o Irã.
Conservadores de várias linhas em diversas sociedades árabes também se preocupam com o rumo provável do movimento democrático e buscam algum tipo de solução de meio-termo.
Um conflito de gerações percorre a oposição às diversas autocracias. Isso se evidencia especialmente no caso daIrmandade Muçulmana, no Egito. A geração mais velha que controla o aparatopartidário ainda está seduzida pelo culto ao líder carismático. Ela é socialmente conservadora e teme que a revolta se espalhe. Embora aceite o pluralismo político, sua cultura não é democrática, e ela desconfia da liberdade de expressão e do debate.
Poderia uma Irmandade Muçulmana tradicionalista tornar-se parceira de um Exército que procura
interlocutores que compartilhem seu desejo de ordem e sua rejeição aos novos movimentos sociais?
Em toda a região, na ausência de elementos do próprio movimento, as figuras que estão administrando a transição vêm do velho regime. Elas não aderiram à cultura política dos manifestantes. Continuam trancadas em uma mentalidade autoritária, pedindo o retorno à normalidade. Não compreendem que anunciar eleições e um punhado de reformas já não é o bastante para tirar as pessoas das ruas.
Cada vez mais é o desemprego ou subemprego entre os jovens que move protestos que reivindicam o fim da monopolização de grandes setores da economia por uma elite. Em todos os países afetados, com exceção da Tunísia, o Exército faz parte dessa elite.
Está claro que, na maioria dos casos, a oposição à moda antiga vai sentir-se tentada a buscar um entendimento com as elites entrincheiradas. Estas, por enquanto, estão prometendo restabelecer um governo que certamente se mostrará mais aberto, mas que nem por isso deixará de ser autoritário.
A divisão crítica aqui é de ordem geracional, mais que ideológica. Uma nova geração de Irmãos Muçulmanos, que já era visível na esfera pública e na internet, está sujeitando os princípios da Irmandade à prova da democracia e da liberdade de expressão.Essa nova geração uniu-se às manifestações na Praça Tahrir, no Cairo, contrariando os conselhos da liderança da organização.
O mesmo se aplica à geração mais jovem de cristãos coptas, que não quer mais ser representada pelo patriarca, o papa Shenouda 3º.
O problema é que as elites no poder, assim como uma parte da oposição convencional, ainda não
compreenderam quão inovador é o movimento de protesto. Não compreenderam que ele é não violento, que fala em nome da democracia e do pluralismo e que não usa a ideologia para disfarçar divisões sociais.
Em lugar disso, abraça todos os setores da sociedade exceto a família governante e inutiliza todos os velhos instrumentos da repressão, que empregava um misto de violência e suborno.
O que está sendo rejeitado é uma cultura política que sobrevive há 60 anos no Oriente Médio: a aparência de unidade em torno de uma causa (o povo árabe, o islã ou a Palestina) e um líder (o zaim), um Estado erguido sobre os serviços secretos (os mukhabarat) e a vilipendiação de todos os adversários, tachados de traidores a serviço de potências estrangeiras (geralmente os Estados Unidos ou Israel).
O movimento de protesto é democrático e nacionalista, e é provável que fortaleça a posição regional e internacional dos países em que tiver êxito, porque vai instalar governos com legitimidade maior e, consequentemente, dotados de maior liberdade de manobra.
A difusão rápida do movimento por todo o Oriente Médio suscita outra pergunta: até que ponto a democratização (quer ela acabe por ser bem-sucedida, quer não) mudará o equilíbrio estratégico de poder?
O que está acontecendo no Bahrein é um bom indicativo do impacto geoestratégico possível. A divisão religiosa nesse país, onde uma minoria sunita governa a maioria xiita, sugere que uma vitória da democracia empurrará o Bahrein para a órbita do Irã, modificando consideravelmente o equilíbrio de poder no Golfo Pérsico.
Isso porque, entre outras razões, o Bahrein passará a ser visto como exemplo pelos xiitas da Arábia Saudita. É essa, pelo menos, a análise preferencial feita em Riad, e é ela que justifica o apoio saudita, contínuo e inequívoco, à família governante do Bahrein.
Contudo, a oposição barenita (que, por uma vez pelo menos, está associada a um partido político)
apresenta-se não como grupo sectário, mas como movimento que atrai cidadãos de todas as denominações religiosas.
Seus partidários agitam a bandeira nacional – a bandeira da família Khalifa –, e não o estandarte xiita nem as cores do Irã. Ela tem poucos vínculos com a teocracia iraniana, que colocou sob prisão domiciliar um de seus líderes espirituais, o aiatolá Shirazi. E a escola dominante de pensamento religioso no Bahrein, o “akhbarismo”, não é a escola predominante no Irã.
Em suma, a oposição barenita assumiu uma compleição nacional, como fizeram as oposições na Tunísia e no Egito.
Logo, a monarquia barenita encontra-se em um momento de virada. Ou ela continua a identificar-se com a minoria tribal Bani Utbah, que tomou o poder no século 18, ou aceita um conceito mais amplo de cidadania que abarque os dois lados da divisão religiosa – isso, aliás, é justamente o que os manifestantes vêm pedindo.
Nacionalizar-se dessa maneira é o que a monarquia marroquina vem conseguindo fazer no decorrer de sua longa história. No Marrocos, a maior parte da nação identificou-se com a monarquia, de tal modo que esse foi o único Estado árabe verdadeiramente independente durante a era otomana e que conservou sua identidade nacional sob o protetorado francês.
Hoje o movimento de protesto no Marrocos, em contraste com os de outros países da região, não procura solapar o sistema como tal. O que deseja é uma reforma, mais que uma revolução, e uma transição gradual para uma monarquia constitucional. Apesar disso, o círculo extenso que cerca o rei Mohammed 6º teme mudanças que tornem o poder mais transparente e o forcem a abandonar os privilégios de que desfruta.
No Iêmen, o governo está jogando com as velhas divisões entre os povos tribais e os moradores das cidades, além das divisões que separam as tribos do norte do país, historicamente hostis à elite urbana, dos democratas.
No pano de fundo há o movimento secessionista do sul, que se vê como o principal prejudicado pela
reunificação. O presidente Ali Abdullah Saleh terá pouca dificuldade em mobilizar as tribos, cuja intervenção, se acontecer, será sangrenta. Também na Líbia a oposição precisa enfrentar lealdades tribais, embora pareça ter dinamismo suficiente para superá-las.
Na Síria, onde as memórias do massacre de membros da Irmandade Muçulmana em Hama, em 1982, ainda são recentes, a minoria alauita, que detém o poder, sem dúvida sente-se ameaçada e, como Gaddafi, se disporia a resistir.
Na Argélia, enquanto isso, a sombra de dez anos de guerra civil está impedindo os protestos de se espalhar. O regime argelino implantou uma forma inovadora de autorrepressão entre a população, em que ninguém nunca sabe quem está massacrando quem. Isso permite que os militares exerçam o poder de modo mais ou menos sereno e discreto.
Em suma, ao jogarem com divisões culturais, os regimes autoritários no Oriente Médio enfraquecem seus próprios Estados, enquanto forças democráticas estão empurrando esses Estados na direção da homogeneização nacional maior.
Um dos resultados dessa onda de democratização pode ser o fortalecimento do nacionalismo, mas de um nacionalismo regido pela realpolitik, mais que por ideologias supranacionais de qualquer espécie.
Seja qual for o alcance de seu sucesso, é pouco provável que o movimento democrático crie novas formações geoestratégicas (como um choque entre xiitas e sunitas, por exemplo). Pelo contrário,é mais provável que leve ao fortalecimento dos nacionalismos sobre a base de uma administração mais satisfatória das divisões sociais e religiosas.
Contudo, se o nacionalismo sair triunfante, será um nacionalismo muito menos ideológico.
Uma consequência provável de tudo isso, embora inesperada, é a diminuição do papel exercido pelo conflito israelo-palestino na política regional. Ao mesmo tempo, isso terá o efeito de isolar Israel, que perderá seu status muito alardeado de única democracia do Oriente Médio.
É interessante observar quão pouco os integrantes dos novos movimentos vêm aludindo a Israel ou à Palestina, especialmente quando se considera que, até agora, essa situação (Israel-Palestina) vem servindo para frustrar a evolução política em outros países. Isso se deve a como essa situação vem sendo manipulada pelos regimes no poder, mas também por certa esquerda terceiro-mundista ocidental para a qual nada poderia mudar no Oriente Médio enquanto a questão da Palestina não for resolvida.
A cegueira em relação às sociedades árabes não vem sendo exclusiva dos governos ocidentais.
Se a relativa indiferença dos manifestantes em relação a Israel-Palestina tiver o efeito de relegar o governo de Tel Aviv ao segundo plano, ela também tem implicações para o Hezbollah, no Líbano.
Para o Hezbollah, o movimento em busca da democracia encerra dois problemas. Primeiro, ele ameaça
amesquinhar o papel regional do Hezbollah, reforçando a posição dos Estados-nação à custa das ideologias panárabes e pan-islâmicas.
O segundo problema é que ele substitui o pertencimento religioso pela noção da cidadania como fundamento desses Estados. Desse modo, o Hezbollah, que é ao mesmo tempo partido religioso e movimento ideológico vanguardista, vai perder parte da liderança moral que acumulou por opor-se aos regimes forçados e às negociações debaixo dos panos com Israel.
Resta ver como os novos regimes que vão emergir vão se comportar em relação a Israel. É provável que eles mantenham a paz fria, mas uma paz fria que force Israel a confrontar suas próprias contradições e obrigue as potências ocidentais a assumir suas responsabilidades.
Outra vítima colateral da democratização será a frente contra o Irã. Não porque o Irã vá ganhar popularidade, mas porque os novos governantes terão pouca disposição de empreender cruzadas no exterior e não vão mais precisar provar suas boas intenções para um Ocidente que, em lugar disso, terá de reconhecer a vontade do povo.
Olivier Roy foi consultor da ONU
Oliver Roy, 62 anos, é professor de teoria social e política no Instituto Universidade Europeia, em Florença, na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais e no Instituto de Estudos Políticos, em Paris.
Um dos principais estudiosos europeus de religiões comparadas e das sociedades islâmicas, foi consultor das Nações Unidas para o Afeganistão. É também diretor de pesquisa no Centro Nacional de Pesquisa Científica, em Paris, além de ter sido professor visitante na Universidade da Califórnia, em Berkeley.
Publicou, entre outros livros, La Sainte Ignorance (A Santa Ignorância) e L´Échec de l´Islam Politique (O Fracasso do Islã Político), ambos pela editora francesa Seuil.
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