Homenagem – Albert Camus

Homenagem – Albert Camus

Manuel da Costa Pinto

Comentando a obra do escritor Albert Camus – que morreu há 50 anos, num acidente de automóvel em 4 de janeiro –, o crítico João Alexande Barbosa escreveu:

“Desde Núpcias até a conferência de Uppsala, é possível traçar uma linha de coerência para com o fragmento, que termina por emprestar à obra uma feição incômoda de inconclusão para aqueles que desejam sempre a segurança dos sistemas classificatórios. Para esses, Camus sempre deixou de dizer alguma coisa. O seu mundo não era nem podia ser esgotante porque sobretudo pretendia ser verdadeiro. Feito de sugestões, pesquisas, avanços e recuos, era um mundo dialético por natureza. Se no discurso que pronunciou na Suécia é possível apontar a dimensão de um escritor já amadurecido na sua arte, não é menos possível mostrar a sua fidelidade para com o mundo corajosamente inseguro que construiu. Daí uma espécie de eterno retorno que é constante em sua obra: cada novo livro oferece a possibilidade para melhor compreensão de um anterior. Mas quando esperamos o fechamento do círculo, eis que as cordas se desatam e novamente começa o jogo difícil da procura. Por isso, Jean Starobinski pôde escrever: ‘Camus pertencia menos a seus livros do que à tentativa que lhes sucedia, e que colocava novas questões’.”

A obra de Camus sempre girou em torno de alguns temas ou obsessões, examinados a partir de gêneros diferentes: ficção, teatro, ensaio. E cada um deles, por sua vez, recapitula as origens de uma intuição, de uma disposição fundamental, que começa a se delinear em sua Argélia natal.

Camus é conhecido como o “filósofo do absurdo”, que teria dado à sua percepção do confronto entre o desejo de clareza do homem e a opacidade do mundo (em O Mito de Sísifo) uma dimensão romanesca e teatral (em livros como O Estrangeiro e A Peste e em peças como Calígula e O Mal-entendido). Essa repartição da obra camusiana é muito semelhante àquela encontrada na obra de Jean-Paul Sartre, também ele um escritor e pensador que abordou temas como consciência e contingência em ensaios (O Ser e o Nada), romances (A Náusea) e peças (Entre Quatro Paredes).

Por causa disso, da amizade entre ambos e de certas coincidências intelectuais e biográficas (como a questão do engajamento e a Resistência ao nazismo), Camus se viu a contragosto associado ao existencialismo de Sartre. Enquanto a situação política do pós-guerra sustentou interesses comuns, essa vinculação não foi tão incômoda. Com o acirramento da Guerra Fria, porém, as diferenças se acentuaram, culminando na ruptura entre ambos após a polêmica em torno de O Homem Revoltado, livro de 1951 em que Camus faz uma crítica aos movimentos revolucionários que transformam a história num fim em si mesmo, legitimando a violência em nome da eficácia política – atitude filosófica à qual haviam aderido Sartre e Maurice Merleau-Ponty (este último, ao menos, no livro Humanismo e Terror).

Tais divergências, contudo, não eram apenas de ordem ideológica. É verdade que tanto Sartre quanto Camus escreviam ficção em diálogo cerrado com suas concepções ensaísticas e que a “náusea” sartriana se assemelha ao absurdo – a tal ponto que a própria definição que dele nos dá Camus, em O Mito de Sísifo, faz referência explícita ao filósofo existencialista: “Esse mal-estar diante da inumanidade do próprio homem, esta queda incalculável diante da imagem do que somos, esta ‘náusea’, como a denomina um autor de nossos dias, é também o absurdo”.

A diferença fundamental é que aquilo que Sartre denominou de “náusea” é a representação ficcional (no romance homônimo) do movimento da consciência, de sua descoberta da indeterminação do ser em contraste com a viscosa fixidez das coisas, ao passo que Camus cria a “noção de absurdo” depois de ter experimentado o “sentimento do absurdo”.

E este, por seu turno, se esboça não a partir de uma pesquisa sobre a estrutura do ser ou da intencionalidade da consciência (como ocorre com Sartre a partir de Husserl e Heidegger), mas de uma sensação de “divórcio entre o homem e sua vida, entre o ator e seu cenário”, que começa a se insinuar nos textos de feição autobiográfica, a meio caminho entre o ensaio e a ficção, que Camus publica na juventude.

Celebrações hedonistas

Nascido em Mondovi (província argelina de Constantine) em 1913, Camus passou a infância em Belcourt, um bairro pobre de Argel, entre banhos de mar, “peladas” em que brilhava como goleiro e devaneios alimentados pelos livros do tio Acault, um açougueiro erudito que lia Balzac, Gide e Valéry.

Essa vida socialmente miserável, porém inundada pela opulência do sol mediterrâneo, acabaria por moldar um temperamento ao mesmo tempo austero e marcado pelo apego físico àquilo que está destinado a desaparecer. Resultam daí seus dois primeiros livros: as ficções breves, quase ensaísticas, de O Avesso e o Direito (1937) e os relatos de Núpcias (1939), sobre suas andanças por cidades da Argélia e da Itália (num registro lírico que ele iria retomar anos depois em O Verão, de 1954).

Entre celebrações hedonistas do mar e da paisagem mediterrânea (“Aqui, compreendo o que se denomina glória: o direto de amar sem medida”, escreve ele diante das
ruínas romanas de Tipasa, no litoral magrebino), vemos surgir em germe aquele travo do sentimento do absurdo. Camus fala da “confrontação de meu desespero profundo e da indiferença secreta de uma das mais belas paisagens do mundo” (O Avesso e o Direito) e desse “homem lançado sobre uma terra cujo esplendor e cuja luz lhe falam sem trégua de um Deus que não existe”, para então concluir: “Que acordo mais legítimo pode unir o homem à vida do que a dupla consciência de seu desejo de durar e de seu destino de morte?” (Núpcias).

Tais passagens antecipam O Mito de Sísifo (1943) e sua tentativa de “sistematizar” essas intuições a partir da tonitruante frase inicial – “Só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio”. É curioso notar que, para tratar de um assunto que no fundo remete a temas do pessimismo clássico (gratuidade, derrelição, disparate), Camus tenha de falar de um gesto extremo como o suicídio, quando poderia se limitar a expor nossa incapacidade para compreender as essências para além das aparências.

Ocorre que “o absurdo não está no homem (…), nem no mundo, mas em sua presença comum”, ou seja, no contraste entre nosso “apetite de unidade” e a “hostilidade primitiva do mundo”. Portanto, Camus recusa tanto o suicídio (que aboliria o absurdo sem resolvê-lo) quanto as filosofias existenciais (Chestov, Kierkegaard, Husserl, Heidegger, Jaspers) que conduzem à reconciliação com o absurdo e, portanto, ao “suicídio filosófico”. Sua conclusão é a aceitação do absurdo como condição humana – mas uma aceitação que não se confunde com resignação: “O absurdo só tem sentido na medida em que não consentimos nele”.

“Ponto zero”

Essa tensão perpétua, cuja face luminosa já aparecera nos textos de O Avesso e o Direito e Núpcias, ressurgiria, quase ao mesmo tempo que O Mito de Sísifo, na peça Calígula (em que o imperador, transtornado com a mortalidade e a infelicidade dos homens, torna-se um cruel assassino para rivalizar com a crueldade dos deuses) e no romance O Estrangeiro (em que uma neutra sucessão de episódios conduz o protagonista Meursault à gratuidade de um assassinato cometido “por causa do sol” e ao cadafalso).

Nas anotações reproduzidas em seus Carnets, Camus referiu-se a essa trilogia sobre o absurdo como “ponto zero” de sua obra ficcional e filosófica – que a partir daí vai se desdobrar na vizinhança da história. Vivendo na França, onde participara da luta ao nazismo como editor do jornal Combat, ele escreve Estado de Sítio (peça ambientada na Espanha nos moldes dos autos medievais) e o romance A Peste, no qual a cidade de Oran sitiada pela epidemia é uma alegoria da Resistência, mas também uma fábula cautelar que se aplica a outras formas de hipnose ideológica.

E foi contra o elixir das utopias (e contra o vírus totalitário que estas contêm) que Camus escreveu O Homem Revoltado, libelo político no qual contrapõe a revolução (que “consiste em amar um homem que ainda não existe”) à revolta, que consiste em se solidarizar com um homem e com um mundo já existentes.

E como esse homem e esse mundo haviam sido descritos segundo aquela intuição sobre o absurdo, O Homem Revoltado parece sintetizar a complementaridade entre suas obras ficcionais e não ficcionais: “Este ensaio se propõe a prosseguir, diante do assassinato e da revolta, uma reflexão começada em torno do suicídio e da noção de absurdo. O mal que apenas um homem sentia torna-se peste coletiva”.

Mas, como afirmou João Alexandre Barbosa, “quando esperamos o fechamento do círculo, eis que as cordas se desatam”. Sob o impacto de sua ruptura com Sartre, por causa de O Homem Revoltado, e de sua dilacerante hesitação durante a guerra de libertação da Argélia (filho de operários pobres, Camus não se via na pele do colonizador francês e queria preservar o convívio multiétnico de seu país), ele escreve a novela A Queda, peça de acusação (e de autoacusação) contra a soberba dos guias de cons-
ciência, na figura de um “juiz-penitente” que se apresenta como “profeta vazio para tempos medíocres” e expõe suas culpas e vaidades para cancelar qualquer possibilidade de ajuizamento.

Seria o caso de dizer que, após o lirismo dos ensaios de juventude, da tragédia solar de O Estrangeiro e do mundo enclausurado de A Peste, Camus desvela com A Queda os aspectos mais sombrios (porque moralmente ambíguos) da equivalência e da gratuidade impostas às coisas por sua percepção do absurdo. Porém, ao morrer, três anos após receber o Prêmio Nobel de Literatura de 1957 (quando profere a conferência de Uppsala), ele deixava inacabado um romance que de alguma forma retornava a suas raízes mediterrâneas.

Escrito em chave autobiográfica, com várias personagens e passagens identificáveis em sua trajetória
pessoal, O Primeiro Homem possivelmente sofreria modificações nas mãos de um autor avesso ao tom confessional. Mas resta dessa peregrinação às origens um ethos que percorre sua obra, a altiva austeridade de uma comunidade de homens indiferentes às promessas e utopias políticas: “incapazes de conceber a vida futura, a tal ponto a vida presente parecia-lhes a cada dia inesgotável sob a proteção das indiferentes divindades do sol, do mar ou da miséria”.

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