Na guerra, a primeira vítima é a vítima

Na guerra, a primeira vítima é a vítima
(Foto: Naaman Omar/Apaimages)

 

… e nós e vós, imunes,
chorando, apenas sobre fotografias.
Cecília Meireles, “Guerra”

O escritor espanhol Javier Marías, numa entrevista à revista Paris Review, evocou uma imagem do jogo luz-e-escuridão que ele atribui, sem muita convicção, a William Faulkner: “acender um fósforo no meio da noite num descampado não permite ver nada mais claramente, apenas ver com clareza toda a escuridão em volta”. Eu dou um passo a mais que Marías: a literatura, a filosofia e as ciências sociais fazem não mais que isso, acendem um fósforo para nos darmos conta “do tamanho da escuridão que existe”.

O que eu posso esperar diante do assombro dessa guerra? É um conflito que é difícil até mesmo de nomear, algo que se arrasta há mais tempo do que a própria memória – e que somente um historiador muito habilidoso e culto, alguém que nunca esteve carnal e espiritualmente envolvido com as dores de palestinos e judeus, seria capaz de reconstruir com competência e precisão.

Só há o turvo e a dor, um estado de permanente suspensão da vida entrecortada por soluços de tranquilidade. Ali tudo o que deveria repousar naturalmente sob o manto dos ciclos solares vem se tornando excepcional, incomum: comprar pão em Gaza, ouvir uma música bestialmente alta em Tel Aviv é como escalar o Everest, não, é como pisar na Lua, parece um milagre.

Eu admiro muito aqueles que procuram explicar – e ainda mais os que tentam entender – o conflito entre palestinos e judeus. E louvo os que têm esperança. Sinto-me incapaz de encontrar as razões, de compreender o seu sentido e, ainda mais, de olhar para o futuro. Sei apenas que me apavoram as pessoas que, não tendo vivido o que palestinos e judeus têm vivido nos últimos cento e poucos anos, que não leram os seus relatos (não reconhecem os nomes de Susan Abulhawa e Amós Oz), são capazes de formar um juízo seguro e assumir uma posição firme sobre essa tragédia.

Eu vi naquele sábado. Ainda que os guerreiros não saibam quando começou, eles não têm qualquer motivo para esperar o fim da guerra. E isso abre uma ferida no meu espírito. E porque eu não posso fazer coisa alguma, eu que sou um homem inútil – o mundo não vai alterar a sua rota só porque estou triste –, decidi fazer alguma coisa, acender um fósforo, este texto.

Não sou especialista em Oriente Médio ou na história do conflito entre judeus e palestinos. Na verdade, não sou especialista em coisa alguma; sou especialista nos meus assombros, na minha melancolia, na minha empatia radical com quem sofre os horrores da calamidade e tento lidar com essas coisas para também não me afogar nela.

Assisto ao que está acontecendo desde o dia 7 de outubro último, o ataque terrorista do Hamas. Não vou falar de números de vítimas. O que me preocupa é a vítima. Acho indecorosa a contabilidade de cadáveres, como se um número a mais tornasse o ato horrendo ou um a menos, apaziguasse. Para quem é capaz de calçar os sapatos da vítima de um ato bárbaro, um único supliciado é um número astronomicamente inaceitável.

Eu sei, por exemplo, que o Direito Humanitário Internacional estabelece a distinção entre civis e combatentes e que a grande comoção dispara com o registro das vítimas civis, as criancinhas, pessoas que seguiam suas vidas e não tinham o propósito, com os seus atos e recursos, de abater um inimigo qualquer – apenas respiravam, riam e iam à padaria. Eu entendo a distinção entre, de um lado, alguém treinado, armado e desempenhando uma função na máquina da guerra e, do outro, o padeiro que caminha para seu negócio preocupado com as notas da sua filha na escola. Mas essa é uma distinção que não aplaca a minha perturbação.

Um soldado, por definição, é uma pessoa que foi rebaixada ao nível inferior de humanidade, um ser que não escolhe o seu ato, uma pessoa que se perde de si, que não pode decidir porque matar ou porque morrer. É somente uma peça da qual os comandantes, a “nação”, retiraram o brilho da alma com a promessa mais ridícula e estúpida já inventada: a morte heroica. Em “O narrador”, Walter Benjamin traça uma figura fantasmagórica: acaba a guerra e se observam os soldados voltando para casa, estão mudos, mais pobres na sua capacidade de comunicar. Quem esteve lá, nos intestinos da máquina da morte e teve o infortúnio de sobreviver, teve o infortúnio de não ter tido o infortúnio de morrer, ele viu algo que lhe roubou sua humanidade.

Para mim, as vítimas da guerra, civis ou militares, são feitas do mesmo material humano: um revestimento de pele e carne que abraça uma alma que não deseja outra coisa senão uma boa vida. E antes que você se surpreenda, sim, eu acredito em almas, no brilho único que habita em cada pessoa, o que a faz conversar com gatos, decifrar os buracos negros e fazer gols de bicicleta. Todos somos do mesmo material, assim como também é do mesmo material que se faz o objeto que, ao destroçar o corpo, destroça a alma: uma peça de metal, o deslocamento de ar, o calor acima da temperatura do Inferno.

Mesmo que esta guerra acabe, que um vença ou até mesmo que a paz venha a reinar um dia, cada uma das vítimas estará derrotada – elas não têm o que lamentar ou comemorar. Cada dor singular, o desespero singular estampado no olhar singular de uma pessoa única, é maior do que toda a alegria que poderá povoar o mundo.

Para as vítimas, não há vitória ou honra. Nenhum monumento ou um minuto de silêncio – melhor, um ano inteiro de silêncio – as alcançará, porque elas decidiram fazer a imbecilidade de esbarrar em uma bomba ou de não ter tido tempo de fugir. Vão perder a festa da humanidade! Pior, elas não poderão comprar o pão. Era o pão que lhes interessava, não um monumento de bronze; era um beijo, o seu objetivo, não saltar por cima de uma montanha.

As vítimas de uma guerra são muito exigentes, isso são! Elas esperam que as coisas sejam apenas ruins e difíceis, como perder a pessoa amada, ter um emprego cansativo, enfrentar uma dor de dente. Elas só não querem que tudo piore e piore e piore. Que as coisas não estejam bem, lhes era suficiente.

O suplício da vítima da guerra não é uma “consequência indesejada”, um “lamentável episódio”… Não: destroçar pessoas, empilhar corpos que já não têm nem mesmo identidade para que alguém lhes renda um rito fúnebre digno, matar, trucidar, destruir, é o único caminho da guerra – independente do que digam sobres seus motivos. Destruir, matar, arrasar, é o que se faz nesse jogo. E todos sabem disso desde o início.

Eu, você e qualquer um que tenha chegado até aqui neste texto inútil, estupidamente inútil, tão inútil quanto acender um fósforo para confrontar toda a escuridão que habita este mundo, nós vamos nos indignar, chorar, bradar, vociferar sobre fotografias.

Se no futuro me perguntarem o que senti nestes dias, eu responderia: “Amigo, eu me desesperava”. Mas, dizendo assim, retrucariam, esse desespero era moda em 2023.

Waldomiro J. Silva Filho é Professor Titular de Filosofia da UFBA e Pesquisador do CNPq. Nasceu em Camacã, Bahia, e torce para o Fluminense. É autor, entre outros, de A calamidade (2022), Procurando razões (2022) e Os dias (2023).


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