Goethe como crítico literário

Goethe como crítico literário

Talvez por se sentir seguro de sua obra, Goethe parecia assumir uma postura paternalista e “solidária” diante de outros poetas

 

“A literatura é o fragmento dos fragmentos.
Escreveu-se sobre a mínima parte do que aconteceu e foi dito.
E do que se escreveu não restou quase nada”
(Goethe, Máximas e reflexões)

Nas notas e dissertações destinadas a uma melhor compreensão de O divã ocidental-oriental, uma composição lírica de Goethe do ano de 1819 e que se propõe a conciliar a rica tradição poética árabe com elementos da moderna subjetividade européia, Goethe nos diz que “a poesia, considerada pura e autenticamente, não é nem discurso nem arte”. E a seguir, explica: “não é discurso porque necessita de ritmo, canto, movimento do corpo e mímica para a sua consumação; não é arte porque tudo repousa sobre o talento, que pode certamente ser regulado, mas não deve ser reprimido artisticamente; além disso, a poesia sempre permanece a expressão verídica de um espírito elevado e excitado, mas não tem alvo e finalidade”.

Essa caracterização é surpreendente, pois afasta a poesia de qualquer registro teórico e a abandona ao sabor do que é natural no ser humano, o Naturell, que traduzimos de uma maneira aproximada por “talento”. Simultaneamente temos aqui uma indicação do perfil da compreensão crítica que Goethe tem da literatura, tanto em seus escritos sobre o tema quanto em suas observações em obras autobiográficas e literárias. Aliás, o mote que abre essas observações a O divã ocidental-oriental é um convite para que penetremos no campo da poesia, pois apenas assim compreenderemos o poeta em seu processo de criação literária.

“Quem quiser compreender o poetizar,
Deve ir para a terra da poesia,
Quem quiser compreender o poeta,
Para a terra do poeta deve vagar”

A verdade é que Goethe nunca foi teórico no campo da poesia e nem desenvolveu uma teoria poética sistemática, não porque não quisesse ou não pudesse fazê-lo, mas devido à maneira como pensou e praticou a poesia em relação à vida. Como já reconheceu Dilthey, dificilmente encontraremos outro poeta que fez confluir tanto vida e poesia, seja no plano individual seja no plano coletivo.

E quando em seus escritos se insinua algo como regras ou princípios poéticos, como é o caso das famosas observações sobre literatura épica e dramática, é porque então foi guiado pelas mãos de Schiller. Esse sim sempre demonstrou um forte interesse por teorias estéticas. Na correspondência de ambos, fica evidente que Goethe se aproxima de Schiller e de princípios poéticos porque tinha em vista questões pontuais que envolviam sua própria criação literária, no caso específico o romance Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, que estava finalizando entre os anos de 1795 e 1797.

Mas não deixa de ser curiosa essa postura de Goethe diante da reflexão literária, justamente pelo poeta que foi e por aquilo que certamente nos poderia transmitir a partir de sua experiência. Essa posição contrasta com seus escritos sobre as artes plásticas, nos quais não hesitou em se apresentar como legislador e em formular princípios para os artistas. Goethe chega mesmo a propor um programa artístico nos ensaios publicados na revista Propileus (ver seus Escritos sobre arte).

Direção normativa

No campo da literatura, porém, parece que Goethe, não sem um certo egoísmo, está mais preocupado com o ato criativo e, talvez, por se sentir absolutamente seguro de sua obra, assume uma postura paternalista e “solidária” diante de outros poetas: escreve resenhas e biografias, incentiva jovens talentos, apóia causas nacionais e internacionais, aprecia edições e reedições de sua obra, etc., mas não se envolve em polêmicas, como ocorreu no campo das artes plásticas. Por isso, ao assumirem uma direção normativa, como é o caso das Regras para atores (traduzidas por Fátima Saadi, Rio de Janeiro, 7 Letras, 2006), os escritos de literatura possuem um fim prático e se dirigem essencialmente para o público alemão, junto ao qual Goethe sentia necessidade de intervir. Tomemos nessa linha dois breves textos.

Com o sugestivo título Sanscolutismo literário, num ensaio de 1795, Goethe faz um diagnóstico sombrio e desfavorável da situação de escritor na Alemanha do fim do século 18. De um lado, observa que a nação alemã não possui uma unidade de formação, não constitui um sistema cultural coeso, de modo que cada escritor segue seus impulsos individuais, sem que haja uma tendência estabelecida. Por outro lado, em decorrência disso, o público também carece de um gosto apurado e refinado. A isso se acrescenta a precária situação financeira de jovens escritores (e mesmo dos já consagrados), que os leva a trabalharem para se sustentar, em ocupações subalternas que não permitem uma realização ou satisfação pessoal. Lembremo-nos aqui do destino de um dos maiores poetas de língua alemã, Hölderlin, que sofreu muito por não conseguir lidar bem com a humilhante função de preceptor junto a famílias abastadas.

Goethe nesse ensaio então arremata: “Um escrito significativo, assim como um discurso significativo, são apenas uma conseqüência da vida; nem o escritor nem o homem que age configuram as circunstâncias sob as quais nasceram ou sob as quais agem. Todo gênio, mesmo o maior deles, em certos aspectos, sofre de seu século, embora tire proveito de outros aspectos, e somente da nação podemos exigir um excelente escritor nacional”. A partir dessas palavras se explica porque Goethe permaneceu tanto tempo ligado à corte de Weimar, exercendo inclusive funções administrativas. Segundo Heinrich Heine, em A escola romântica, a amplitude de seu gênio somente se poderia desenvolver na Alemanha se tivesse a seus pés toda uma corte. Não era Goethe que servia a corte de Weimar, mas essa a ele.

Teatro

Já no breve ensaio Teatro alemão, de 1813, fazendo eco a observações contidas em Poesia e verdade e nos primeiros livros do romance Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, Goethe assume um tom crítico e severo diante do processo de formação da literatura na Alemanha. Ao avaliar retrospectivamente as dificuldades que enfrentou o teatro na Alemanha, constata que os maiores inimigos do teatro sempre foram a política, a religião e um gosto supostamente depurado por interesses éticos mais elevados. O teatro alemão inicia de maneira rude e crua, com saltimbancos, grupos itinerantes e com o teatro de marionetes, mas não alcança um desenvolvimento, e acaba acomodando-se às peças estrangeiras traduzidas pelo crítico afrancesado Gottsched. Com seu gosto mediano, Gottsched também foi o responsável pela difusão de uma certa vertente didática e pedagógica do teatro alemão anterior à Lessing.

A situação melhora um pouco a partir da atuação de três atores: Ekhofen, Schrödern e Iffland, mas isso com a ajuda de tendências da época, que permitiram um equilíbrio das diferenças de classe e, por conseguinte, com o estabelecimento de um padrão de gosto que podia acolher valores humanos universais. Assim, a proposta de um teatro alemão deve ser pensada, aos olhos de Goethe, como um processo ainda não acabado e que deve evitar fórmulas fixas, parâmetros estreitos e particularismos. É nessa perspectiva que se há de compreender a fórmula paradoxal com a qual encerra o ensaio: “nunca haverá e nunca poderá haver um teatro alemão”.

Expressão do classicismo

Quer dizer, então, que não há senão apontamentos circunstanciais nos chamados escritos de literatura ou nas reflexões que Goethe fez em outras obras sobre o tema? De modo algum. A maior parte das “teses” que encontramos em seus escritos são, todavia, expressão de um contexto cultural, da afirmação dos parâmetros do classicismo de Weimar e de uma tendência da estética alemã da época. Vejamos, por exemplo, alguns casos:

1) no texto Para o dia de Shakespeare deparamos com o lugar comum do movimento Sturm und Drang (tempestade e ímpeto), da rejeição das poéticas normativas e de gosto e o apelo ao gênio original. Cooptando Shakespeare para a causa nacional e celebrando-o como gênio original, Herder já havia nessa mesma época afirmado que o bardo é o maior poeta nórdico.

2) nos apontamentos feitos acerca da Poética de Aristóteles, por sua vez, o que notamos é a inserção de Goethe no amplo movimento de passagem das estéticas normativas para as poéticas da tragédia, que se dava naquele momento nos escritos de Schiller, Hölderlin, Schelling e Hegel. Goethe se afasta da perspectiva que considera a catarse como efeito moralizador sobre o espectador e a interpreta como um ingrediente interno da composição mesma do poema trágico. A famosa caracterização da tragédia como “contradição irreconciliável”, que anunciou ao chanceler Von Müller, em 1824, é apresentada por Albin Lesky, em seu clássico estudo intitulado A tragédia grega (ed. Perspectiva, 1971), como parâmetro de uma verdadeira filosofia do trágico e que estaria ausente no pensamento antigo.

3) Reflexo da época é também a reinterpretação que faz, em Sobre literatura épica e dramática, junto com Schiller, dos gêneros poéticos, que deixam de ser apenas rótulos para serem associados a posturas fundamentais do homem e do tempo. O mesmo vale para a naturalização operada da lírica, do drama e da épica e a identificação destes três gêneros com atitudes humanas fundamentais, nas notas a O divã ocidental-oriental.

Literatura como busca arqueológica

Seja como for, o que percebemos nos inúmeros escritos de Goethe no campo da literatura é a permanência de um problema fundamental, explorado também em outros domínios do saber: a relação entre arte e natureza. A abertura que Goethe demonstra diante da poesia popular, não só alemã, mas mundial, e a sua consciência de uma literatura universal, se inscrevem nesse registro. Tudo se passa como se Goethe visse as diferentes manifestações literárias dos povos como florações ímpares e autônomas, as quais convêm se aproximar sem ímpeto classificatório, mas tomando-as como momentos de realização individual de um fenômeno primordial. A literatura converte-se assim numa espécie de busca arqueológica e numa antropologia do gênero humano, observado em suas inúmeras manifestações e concretizações no decorrer do tempo.

Marco Aurélio Werle é professor de filosofia na USP, organizador e tradutor de Ensaios sobre arte, de Goethe (Humanitas/Imprensa Oficial, 2008)

 

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