A insurgência trans e seu alvo impreciso

A insurgência trans e seu alvo impreciso
Na peça "Gisberta", Luis Lobianco conta a história de transexual brasileira morta em Portugal em 2006 (Divulgação)

 

A razão que motiva minha escrita são as recentes manifestações ocorridas no Centro Cultural Banco do Brasil de Belo Horizonte: na estreia do espetáculo Gisberta em que Luis Lobianco conta a história de Gisberta Salce Junior, transexual morta em Portugal em 2006 -, grupos LGBTQ protestaram contra o fato de um ator cisgênero interpretar pessoas trans. Tais manifestações exigem da sociedade brasileira, em especial da classe artística, uma reflexão profunda sobre paridade, empregabilidade e legitimidade no que se refere aos movimentos identitários e sua pauta reivindicatória que, nesse momento, recai sobre a arte. Porém, para que possamos refletir sobre esse episódio e sua indiscutível contribuição aos campos dialético e epistemológico, temos de fazer antes de tudo um exercício de cunho sócio-político.

São inquestionáveis, e queremos irreversíveis, as conquistas decorrentes da sólida atuação do movimento LGBTQ no que se refere à cidadania, visibilidade e oportunidades no mercado de trabalho, direitos alcançados com o amplo apoio da sociedade civil e governos, que nos últimos dez anos passaram a entender a urgência de reconhecer e dignificar a luta dessa comunidade historicamente oprimida e marginalizada.

Entretanto, sabemos quão longo é o percurso para que algo marcado pelo signo da exclusão e do preconceito obtenha uma mudança paradigmática radical, principalmente para que ações efetivas sejam aplicadas e resultem numa política pública eficiente, capaz de combater os altos índices de violência e barbárie imputados às pessoas trans, especialmente no Brasil, que lidera o ranking mundial em assassinatos de transexuais e travestis.

No que concerne ao universo trans, talvez a batalha por reconhecimento e dignificação seja ainda mais complexa, pois o apagamento simbólico, histórico e assassino desses corpos decorre de uma sociedade conservadora, altamente recalcada em suas sexualidades e incapaz de compreender, como imperativo fundamental do nosso tempo, o direito e a urgência que tangenciam às liberdades individuais. Tornou-se ainda mais necessário catapultar o debate político acerca de pautas que estão condenadas ao descaso, por isso é também importante a maneira de fazê-lo para que seu significante não pareça vazio e menor.

Pois bem, a tônica que mobilizou os acontecimentos em Belo Horizonte está associada aos questionamentos levantados pelo Coletivo T, movimento de artistas trans não-binárias de SP, e se ampara no quesito representatividade na arte. É preciso perceber a sutileza que há nesta reivindicação, que se sustenta nas restrições de atuação a que estão submetidas as artistas trans, podendo atores cisgênero transitar por diversas narrativas e estéticas, enquanto às artistas trans resta somente a representação de si mesmas.

Com isso, estabelecemos outro critério, novamente guetificado e, portanto, excludente. Mas é premente, também, resgatar a atualidade do conceito aristotélico que garante à arte os atributos da semelhança, verossimilhança e representação, ou seja, a liberdade é premissa do fazer artístico, e quem a faz precisa ter assegurado seu lugar criativo, livre e incensurável. Logo, me parece injustificável os impropérios disparados contra atores cisgênero que protagonizam espetáculos de imenso sucesso junto às mais variadas plateias.

São inúmeras as desigualdades que caracterizam esse universo, exclusões marcadas por uma absoluta falta de oportunidade aos saberes e vozes, que impõem às pessoas trans a localização restrita de se manterem num lugar silenciado, condenadas ao não reconhecimento, a não transcendência.

Contudo, a postura belicosa adotada pelo Coletivo T diminui a potência social e simbólica dessa discussão, especialmente nesse momento político no qual alguns discursos tendem a ser confusos, ter argumentação frágil e gerar pouca empatia, capazes de afastar simpatizantes e até aliados. Aqui me refiro à potência do exercício político no aspecto amplamente social, capaz de ocupar a arena pública de forma agregadora, progressista, e não, provocar o afastamento de setores que colaboram no pensamento e na implementação de conquistas.

Não será a arte, ou somente ela, que dará conta de reparar injustiças históricas, é preciso criar espaços de diálogos, de formação política, de alteridade. Não basta a questão identitária para garantir equidade e respeito. É preciso amplificar a caixa que garante voz e vez, entretanto, isso só ocorrerá num investimento coletivo e híbrido, que verse sobre as políticas sociais, culturais e políticas, capaz de criar uma nova hegemonia de direitos fundamentais, que extingue qualquer tipo de intolerância do estatuto social.

Ao pensar o fazer político como uma categoria também afetiva, cabe-nos refletir se somos capazes de compreender que atitudes que promovem o ódio são sempre um desserviço aos processos identitários e civilizatórios. E quanto a isso, a arte não foi, nem nunca será, o único reduto capaz de aplacar essa desigualdade histórica.


VALÊNCIA LOSADA é produtora cultural e estudante de Filosofia

(14) Comentários

  1. Valência, sou um dos artistas do movimento nacional de artistas trans e também fui um dos participantes de tal ocasião no ccbb.
    Não sei se gosto ou não da falta de posicionamento, apesar de ao final dar pra perceber o que de fato você defende, ainda que de alguma maneira haja uma leitura possível do motivo de nossa reivindicação por representatividade.
    Você como filosofa, suponho eu, entende a necessidade de sair da superfície e questionar, repensar.
    Indico que você assista ao canal do YouTube MONART, em que estão publicados os videos do dia da conversa com o ator, inclusive tem uma fala minha também… enfim.
    ”Ao pensar o fazer político como uma categoria também afetiva, cabe-nos refletir se somos capazes de compreender que atitudes que promovem o ódio são sempre um desserviço aos processos identitários e civilizatórios.”
    O que a sua reportagem faz senão esse desserviço, bem como a promoção da continuidade da semente que discorda?
    As pessoas cisgêneras pra mim poderiam por um instante apenas ouvir uma questão que está sendo levantada por pessoas T, ao invés de todo tempo distorcer ou traçar mais teorias. Assim como se eu branco for apontado por uma pessoa negra deveria fazer. Bom, mas isso é só a minha opinião baseada em trajetória e vivência. Será que vale?

  2. Maravilhoso o texto da Valência. Parabéns a revista por propor está pauta . Sou a produtora do espetáculo Gisberta e gostaria de saber se vocês iram publicar no impresso essa matéria?

  3. Realmente uma ótima leitura muito esclarecedora e de fácil entendimento gosto de ler por isso te peço toda vez que fizeres estes textos, gostaria de receber. Adorei.

  4. Valência, seu texto não é nada mais do que “a mesma ladainha” cisgênera sobre o tema, pois não avança em nada. Não avança porque não está ligada de fato em como o tema tem sido debatido nacionalmente junto ao movimento de pessoas T e artistas de inúmeras regiões do país. Há muito material disponível na internet, tanto de texto e vídeo, mas parece que você fala apenas dos seus ou apenas desse ator que ainda tenta defender algo indefensável. É óbvio que no debate não está se discutindo a liberdade que os artistas tem, nem mesmo APENAS o desejo de pessoas T de se auto-representarem. Nós já avançamos! Não há apenas esse desejo, pois sabemos que pessoas T são muitas e com desejos muitos: elas querem ser atrizes ou atores, camareiras, diretoras, dramaturgas, profissões mil. Mas o que está em jogo aqui é o como se consegue desestabilizar a transfobia estrutural que faz acordos entre essa “liberdade individual” e o locus social que ainda as mantêm a margem.
    Existem erros, talvez irreparáveis, no seu texto. Não é um texto-diálogo: trata-se de uma afirmação errônea. É injusto porque não media, apenas exclui. Apenas age da mesma forma como o Luis Bianco tem agido: “buscando aliados na maioria para enfrentar essa minoria quer quer censurar”. Você teve acesso ao primeiro texto que o ator lançou na tentativa de se defender? Acredito que não!
    Por fim, fico impressionado que a Cult tenha retomado este debate de uma forma tão cruel: dar novamente um passo atrás tentando deslegitimar um discurso de pessoas T em prol de uma falsa liberdade!
    Sim, podemos fazer o que quisermos no teatro, repito. Mas hoje, ouvindo essas pessoas, É REALMENTE NECESSÁRIO? QUEM VAI ABRIR MÃO DO PRIVILÉGIO PRA DIVIDIR?

  5. De volta à essa equivocada ideia, no cenário contemporâneo, de que a arte pode tudo e de que, somente por ela, se poderá lograr direitos fundamentais aos excluídos. Esse discurso, por si só, está embutido a noção de dois pesos e duas medidas que, apesar de ser um valor moral judaico-cristão, segue como imperativo das discussões sobre a representatividade identitária nas artes.
    Talvez o que alguns artistas não conseguem entender, para além das urgências estéticas de seus trabalhos, é que o contexto dos pedidos ao não ao transfake, não se trata de uma postura bélica dos coletivos, mas de uma demanda real. Daí, dizer que na arte vale tudo é, essencialmente, desconhecer as demandas contemporâneas a que a arte precisa, também, dar conta para, então, ser de fato politicamente engajada.
    Não adianta recorrer às abstrações filosóficas, como as aristotélicas, para dar autoridade a um argumento e, ao mesmo tempo, descartar reflexões contemporâneas que, por suas vezes, tentam atualizar as reflexões colocando-as dentro desse novo tempo do mundo. Assim, o melhor argumento de que a arte pode tudo é aquele que diz, inclusive, que ela pode esperar que algumas demandas sejam ouvidas, que haja intento de resolvê-las para, então, voltar à práticas banalizadas de pensar e agir.
    Não se trata de um capricho ou de uma postura belicosa, mas de um pedido de representatividade ( assim como têm ocorrido, faz uns anos inclusive, dentro de diversos coletivos de representações da alteridade que, inclusive, chegaram a conseguir feitos maravilhosos como fazer do blackface uma prática a ser odiada) e, uma das coisas de que a arte pode mesmo no âmbito do fazer político, é apontar para a necessidade de representatividade.
    A questão é que, no lugar irreversível que nos encontrarmos, a escuta deve ser praticada. Já entendi (ou acho que sim) que os coletivos trans, devido ao histórico de opressão, encontraram, também nas artes (afinal, esse não é, nem de longe, o espaço de maior representatividade dessas identidades) uma parceria para a sua luta contra a invisibilidade e, também, contra as violências cotidianas sofridas. Essas pessoas não querem tirar o privilégio da arte cis-gênero de ser, nas artes cenicas sobretudo, de serem quaisquer personagens. Entendo que, agora, uma luta ética, que envolve o direito à vida digna, cuja parceria com as artes pode ser um caminho (e, para isso, como menciona Ernesto Laclau, é preciso, para o fortalecimento de um coletivo inclusive em âmbito político, abrir mão de privilégios de acordo com as demandas dos que não gozam dele possam, então, serem fortalecidos em sua luta e, assim, fortalecer toda a heterogeneidade dos coletivos) e, quem sabe um dia, a pauta de um ator cis representar um personagem trans não seja mais uma questão.
    Inclusive, não se deve resumir toda a questão à isso, ainda que a fugacidade dos debates em redes sociais nos levem à essa reflexão tão diminuta. É muito mais que isso, é um convite à reflexão de que pessoas trans são destinadas, hoje, socialmente e à revelia de seus reais desejos, à marginalização em diversos âmbitos sociais, aliás ao direito fundamental de ter uma vida digna.
    Portanto, antes mesmo de apresentar uma posição belicosa (como a da autora do texto abaixo) contra as manifestações do diga não ao transfake, reflita, primeiramente, sobre a demanda do grupo que fez esse manifesto, reflita sobre a posição privilegiada que um artísta cis se encontra (sobretudo pela empatia , já que, tirando alguns pouco exemplos, artistas, em geral, nem estão, nas atuas conjecturas políticas, em uma posição de grandes privilégios).

    #diganãoaotransfake

  6. A Márcia Tiburi poderia ter cedido seu espaço na coluna da revista Cult para uma pessoa trans fazer uma reflexão mais aprofundada sobre o tema. Perdeu a chance de contribuir com o debate. Eu, como pessoa cis, fico aqui me perguntando porque é tão difícil para nós abrirmos mão do nosso privilégio. Qual é, afinal, o medo?
    Valência, a discussão sobre representatividade nas artes deve ser feita sim, sempre. No entanto, a principal voz não deveria ser daqueles que, historicamente, têm o espaço garantido, mas daquelxs que não costumam se ver representadxs (pessoas negras, pessoas trans, pessoas com necessidades especiais…).
    Eu fico pensando o quanto deve doer se ver representada por um cisgênero, o quanto deve ser agressivo. O seu texto é belicoso, minha cara, e vocÊ aponta a arma para a vítima. Pra mim, que também sou artista, vale evocar o mestre Brecht para responder ao sábio Aristóteles. Ele dizia que ética vem antes da estética. Os setores oprimidos estão levantando suas vozes e o fazem independentemente dos meios de comunicação em massa. Mais uma coisa, você usa a expressão “Questão identitária” como se fosse inequívoca. Porque a questão trans (e LGBTQI como um todo) de negrxs, de índios, de mulheres são identitárias? O que estaria em contraposição às questões identitárias? As questões universais? E sobre o que versam essas supostas questões universais? Os problemas envolvendo homens brancos cis héteros?

  7. Quando leio esse termo belicoso atrelado as lutas de minorias para mim no mínimo soa como leviano ! Vc foi muito infeliz nessa materia acredito que uma retratação cabe pq se não vamos acreditar na matéria tendenciosa ! Ainda mais depois de um agradecimento explícito da Cláudia marquês que comunga da transfobia levada na peça gisberta

  8. Que pena Revista CULT. Pisaram na bola com a matéria acerca do movimento trans de BH. Trata de um ponto de vista tão raso e equivocado em relação ao movimento que acontece em Belo Horizonte acerca da representatividade trans nas artes. É uma escrita de alguém que não sabe do que está dizendo, honestamente. Mimimi cisgênero de liberdade nas artes e ponto. Usa-se a palavra liberdade em prol de um discurso daqueles que ja tem todos os privilégios e ponto, não há mais o que refletir sobre liberdade. Dizer que o movimento trans teve um discurso Belicoso me soa tão embranquecido, parece que vem até de alguém que não sabe o que é de fato viver sob a mira de um fuzil, ou de um armamento militar. Além de um discurso equivocado, retira dessa luta tão necessária e dura a legitimidade em prol de um discurso de amor (mesmo que a autora não diga isso explicitamente em seu texto) , que honestamente não diz nada a respeito do amor, desculpe-me os amantes, mas amor dócil, que fala manso, que abaixa a cabeça e vive pedindo licenças e desculpas tá mais próximo pra mim de um conto de fadas, de um mundo Poliana do que da vida real. Estamos vivendo tempos em que precisamos ser firmes e isso também é amor, amor que se desentende, que briga, que lança papo reto, que discorda e concorda, que vive pequenas guerras. Amor sem romantismos.

  9. “Não será a arte, ou somente ela, que dará conta de reparar injustiças históricas, é preciso criar espaços de diálogos, de formação política, de alteridade. Não basta a questão identitária para garantir equidade e respeito.”

    A arte não vai resolver todo o débito histórico mesmo não, mas se a arte, enquanto categoria vanguardista que sempre ta adiantada em relação ao pensamento do rosto da sociedade, faz mea culpa em relação a dar o primeiro passo e botar essas pessoas trans no palco, ganha dinheiro ao falar das trans e representá-las no palco, mas ignora as demandas das mesmas por emprego naquele palco, para que ouçam suas demandas, e dizem que elas têm que ser simpáticas porque eles são aliados? Paciência, viu? Militância de telão hoje é mercadoria que vende, mas repartir o bolo da representatividade gente cis não quer de fato não.

  10. Lamentavelmente a braquitude cis seguindo a mesma cartilha fracassada de hegemonia. vou lançar a rexitég vergonha de ser cis

  11. Ao longo dos tempos a arte , especialmente o teatro ,foi um “instrumento de luta social e política. Hoje apresenta-se não somente como um espaço de luta, mas também de mercado de trabalho.
    Diante da atual realidade brasileira ,de crise de valores ,de mudança e de transformação a empatia se apresenta como elemento que deve estar presente em nosso cotidiano e que a luta não é de um determinado segmento, e sim de um povo, de uma nação e de todos nós seremos humanos

  12. “Todo mundo chama de violento a um rio turbulento, mas ninguém se lembra de chamar de violentas as margens que o aprisionam.” ― Bertolt Brecht

  13. Vamos nos complicar com o movimento dos assassinos, dos corruptos, dos gays, das lésbicas e assim perderemos a beleza de ver um ator criar no palco com seus conceitos e liberdades que a Arte nos proporciona… se um ator trans fosse colocado no papel dele perderíamos também a força de ver uma transformação e teríamos um ‘quase’ espelho do real.
    A arte teatral é um mundo de potencialidade transgressora.

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