Paranoia sexual
Arte Andreia Freire
Há alguns meses foi publicado nos Estados Unidos um livro tão interessante quanto preocupante: Unwanted advances: sexual paranoia comes to Campus, da professora feminista Laura Kipnis. O livro é uma mistura de ensaio e relato de tribunal; no caso, o tribunal em curso nas universidades americanas, fruto de uma mudança recente numa legislação específica para os campi. Um tribunal que só produz julgamentos de exceção, mantidos na obscuridade porque se revelam insustentáveis sob o escrutínio público. Laura Kipnis compara o que está acontecendo nessas universidades a momentos inglórios da história americana, períodos de delírio coletivo em que perseguições e punições são instauradas por meras delações, os indivíduos perdem direitos fundamentais, as instituições fraquejam e reina uma violência arbitrária e oficialmente sancionada.
O livro nasceu de um caso concreto, que envolveu a própria autora. No começo de 2015, ela publicou, num veículo de sua universidade, Northwestern (onde dá aulas de cinema), um artigo sobre o que ela identificava como uma onda de paranoia sexual nas universidades americanas. A autora criticava uma recente mudança na legislação, que, combinada a certa perspectiva feminista, vinha “infantilizando os estudantes”, subindo o “clima de acusação” e “aumentando largamente o poder dos administradores da universidade sobre nossas vidas”. Explico. Já há várias décadas existe nos Estados Unidos uma legislação chamada Title IX, sob responsabilidade do Departamento de Educação, e originalmente criada para regular questões de igualdade de gênero nas universidades americanas. Em 2011, entretanto, promoveu-se uma mudança na lei, que passou a abranger também problemas de relações sexuais nos campi: desde estupros, passando por qualquer forma de avanços sexuais indesejados, até, como veremos, o mero uso de linguagem sexual.
Concomitante a essa mudança, estabeleceu-se nas universidades uma perspectiva feminista que enfatiza a passividade da mulher, sua fragilidade, sua posição desfavorecida nas relações de poder, e, assim, as consequentes incapacidades de tomar decisões, exposição a manipulações psicológicas e até inabilidade de consentir relações sexuais. Era essa a articulação criticada por Laura Kipnis. A legislação imprecisa e overreaching somada à perspectiva passiva da mulher teria criado um clima de paranoia sexual nas universidades.
Semanas após a publicação do texto, ela recebeu um comunicado da universidade dizendo que duas alunas haviam instaurado um processo contra ela, dentro da legislação Title IX. Vejam bem: um processo contra um artigo. As práticas de no platform (tentar impedir determinadas falas em âmbito universitário) não são novidade. Mas elas se voltam contra falas escancaradamente preconceituosas (os Bolsonaros da vida), contra posições cerceadoras de direitos, contra visões antimodernas, tradicionalistas, desigualitárias. Nesse caso, alunas feministas tentavam censurar ideias de uma professora feminista. Além do processo, houve um protesto no campus contra o artigo. As estudantes marcharam até a reitoria e exigiram uma “condenação pronta e oficial” do texto.
Foi a partir desse episódio que Kipnis tomou contato com o mundo secreto do Title IX. A notificação do processo vinha acompanhada de um ameaçador aviso de confidencialidade, sob pena de expulsão da universidade. À medida que o processo foi se desdobrando, a autora percebeu que estava distante dos termos de um due process; antes estava diante de um julgamento de exceção, em que o acusado não sabe que acusações pesam contra ele até o momento de ser interrogado; não tem direito a ser acompanhado por um advogado; não pode gravar as sessões; em algumas universidades não pode apresentar material (como mensagens de texto etc.) em seu favor; não pode confrontar testemunhas; e não pode falar publicamente sobre o caso. A confidencialidade é, portanto, parte de uma estratégia de intimidação por parte dos acusadores, e de blindagem por parte dos burocratas que o conduzem. Assim, com medo, nenhum professor antes havia tornado público um processo como esse. Pois o livro de Kipnis abre essa caixa de Pandora.
O sentido geral do livro é o de uma denúncia grave. A distorção radical de problemas e princípios instaurou uma dimensão de exceção na vida universitária americana, em que professores e alunos são severamente punidos em julgamentos farsescos, de cartas marcadas. O campus se tornou “uma secreta cornucópia de acusações”. E essas acusações são tratadas como verdades acima de qualquer suspeita, não importando o quanto as evidências concretas atestem sua inconsistência.
Nesse clima, pululam casos como os seguintes. Um estudante de graduação que entrou com uma ação contra uma professora por ela ter dançado “muito provocativamente” numa festa off-campus. Uma professora que levou um processo acusada de ter feito “contato visual suspeito” com duas estudantes de graduação, enquanto sussurrava em seus ouvidos (acontece que isso se deu numa biblioteca). O caso em que um aluno e uma aluna tiveram sexo consensual, mas uma terceira pessoa avistou uma mancha roxa (o popular “chupão”) no pescoço dela e entrou com um processo de abuso sexual, mesmo contra o interesse da aluna (o rapaz, negro, foi suspenso por vários anos e teve sua carreira como atleta encerrada). Etc., etc.
Mas, como sempre, são os casos-padrão que assustam mais (os caricatos são, afinal, supostamente a exceção). E é um deles o centro do livro de Kipnis.
Um professor de filosofia de Northwestern foi acusado por uma aluna de a ter forçado a se embriagar, de a ter agarrado e, em consequência disso, de ser responsável por ela ter se atirado num lago, tentando o suicídio. Seria impossível aqui retomar o exame detalhado que Kipnis faz do caso, revelando sua inconsistência. Alguns dados: a estudante em nenhum momento foi propriamente forçada a beber; apenas alega ter “se sentido” obrigada. Ela acusa o professor de tê-la agarrado no elevador do prédio dele. Ele nega. Mas, como o processo é extremamente desigual, ele não pôde requisitar a prova material das imagens da câmara de segurança, para provar o contrário (nada de due process: é tudo feito para não dar qualquer chance ao acusado). Já no julgamento civil, fora do campus, no qual o acusador também é interrogado, a suposta cena da tentativa de suicídio revelou-se bastante inconsistente: a aluna não lembrava que roupa usava, se o lago estava congelado, e a suposta testemunha que a ajudou a sair do lago nunca apareceu. Entre diversas outras inconsistências.
Enquanto se desenrolava esse caso, outra aluna processou o mesmo professor. Dessa vez, a acusação foi de estupro. Eis o contexto. Professor e aluna (ela era aluna da mesma universidade, mas não dos cursos dele) mantiveram uma relação amorosa durante três meses. A aluna negaria isso, diria que a relação era estritamente de amizade e orientação intelectual. Entretanto há dezenas de mensagens de texto provando o contrário: “Eu te amo”, “Te amo tanto”, “Nós fomos feitos um para o outro”. Certa noite, eles haviam bebido e tiveram uma discussão (porque a aluna tinha um namorado fora da cidade e estava em dúvidas sobre com quem ficar). Ela acusa o professor de a ter estuprado nessa noite, porque acordou na cama dele, sem roupa. Ela não lembra se houve sexo, mas acha que houve, e acha que não consentiu.
Pois bem, o professor foi dormir em um hotel nessa noite por causa da briga. Ele apresentou o recibo do pernoite no hotel. Apresentou também as mensagens dela no dia seguinte, mensagens amorosas, que nada revelam de anormal. E o que faz a juíza do caso? Conclui que houve estupro. Antes de o processo chegar ao fim, o professor pediu demissão, foi morar no México e teve sua carreira universitária encerrada.
Para Kipnis, o que está acontecendo é da ordem de uma profecia autocumprida. Existe um ideário de fundo: “sexo é perigoso, pode traumatizar para sempre”, que acaba produzindo episódios de “abuso sexual”, que de outro modo jamais seriam assim considerados. Coisas absurdas mesmo, desde piadas sexuais, passando pelo mero uso de termos sexuais, até retiradas retrospectivas de consenso. Sim, pois sob essa perspectiva de um feminismo passivo, no contexto de uma sociedade patriarcal, as condições de produção de consenso são ilegítimas, logo o consentimento ao sexo pode ser sempre retirado après coup – e assim todo homem que fez sexo consentido com uma mulher pode de repente descobrir que a estuprou. E ser criminalizado por isso.
Opondo-se a esse estado de coisas, Kipnis propõe uma perspectiva feminista que não perca a agenda da mulher dona de seu desejo, empoderada – em vez de, como um personagem nietzschiano, exercer um poder triste por meio do papel do desempoderamento.
(2) Comentários
Em tantos momentos vi essa postura das regras secretas dos campi muito semelhantes aos sistemáticos recursos ao law fare para incriminar políticos indesejáveis ao atual sistema de sustentação do governo no Brasil, após o golpe. Seria mera coincidência, ou haveria uma origem em comum? Enfim, tempos difíceis e bárbaros, esses nossos. Abraço. Vera Queiroz
Ainda não sou universitária, mas em uma visita a uma universidade, pude perceber como é comum cenas onde existem pessoas se relacionando com outras, sejam com alunos ou até mesmo professores. A reflexão sobre o assunto surge que para haver o estupro a pessoa deve ser forçada a ter relações com o estuprador, o que gera traumas psicológicos que são irreparáveis, mas antes de dizer que houve abuso sobre aquela pessoa devemos entender a situação que foi descrita. A mulher na sociedade apesar de ter havido um progresso ideológico, ainda é comparada ao sexo frágil, essa imagem que foi disseminada ao longo do tempo é fruto da cultura. Algumas delas utilizam essa figura para demonstrar inferioridade ao homem e ganhar vantagem moral na situação, o que também observei nas universidades que mulheres trocam sexo para passar em alguma matéria que tem dificuldade, nesse contexto elas usam seus próprios corpos como um produto e quando é descoberto alegam estupro, embora seja uma prática errada, houve um consenso de ambos os lados. Diferente dos Estados Unidos, o nosso país não poem muito na prática a lei que é inserida na sociedade, é esquecida, e ficando restrita apenas no papel.