Foucault no Brasil

Foucault no Brasil
O filósofo francês Michel Foucault (Foto Martine Franck/ Latinsrock)

 

“Provavelmente terá sido apenas no Brasil e na Tunísia que eu encontrei, entre os estudantes, tanta seriedade e tanta paixão, paixões tão sérias e, o que me encanta mais do que tudo, a avidez absoluta de saber”, disse Michel
Foucault sobre um dos aspectos de sua rica e tumultuada experiência de viajante, professor e intelectual engajado em plena ditadura militar brasileira, cuja truculência não conseguia interditar a “contraconduta” (conceito cunhado mais tarde pelo filósofo) que, naquela época, era o próprio amor ao saber em plena idade das trevas para o país, de ignorância, repressão e extermínio como políticas de Estado.

Michel Foucault esteve no Brasil por cinco vezes – 1965, 1973, 1974, 1975 e 1976 –, ao menos “oficialmente”: há quem diga que fez outras visitas, “incógnito”. As visitas a São Paulo foram em 1965 e 1975.

Seu primeiro desembarque entre nós foi em outubro de 1965, com destino à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (FFCL-USP). A USP não lhe deveria ser inteiramente desconhecida, visto que, desde a criação (1934), fora alimentada por “missões francesas” de professores, entre os quais Claude Lévi-Strauss, Roger Bastide e Fernand Braudel. A Faculdade de Filosofia ainda ficava em um prédio da rua Maria Antônia, antes de ser transferida para a atual Cidade Universitária. “A vinda dele”, explica Victor Knoll, professor de Filosofia da USP, “foi promovida por Gérard Lebrun, que fora aluno de Foucault e depois passou a manter uma relação bastante próxima com ele. Lebrun já estava entre nós – no Departamento de Filosofia da USP – desde 1960, graças ao programa que o governo francês mantinha com o Departamento de Filosofia desde a fundação da Faculdade de Filosofia em 1934.

Na “Cronologia” que precede Dits et écrits – reunião, em quatro volumes, de entrevistas, cursos e outras manifestações de Foucault, diferentes de livros –, Daniel Defert (companheiro de Foucault por muitos anos e organizador da coletânea) esclarece que, “convidado à faculdade de filosofia de São Paulo pelo filósofo Gérard Lebrun (…) ele [Foucault] se junta aos filósofos Giannotti, Ruy Fausto, ao crítico Roberto Schwartz, à poetisa Lupe Cotrim Garaude e à psicanalista Betty Milan: ele lhes dá as primícias de alguns capítulos de As palavras e as coisas. A turnê de conferências prevista é interrompida pelos golpes de força que, de uma semana para outra, fortalecem a posse dos marechais e que, em breve, irão caçar seus amigos de suas funções ou exilá-los”. Cerca de um ano e meio antes da vinda do filósofo, ocorrera o golpe militar de 1964.

 

E outubro de 1965 é o momento
da decretação, por Castello Branco,
do Ato Institucional número 2, que
dissolve os partidos políticos e
estabelece eleições indiretas para a
sucessão presidencial.

 

 

Michel Foucault, que aporta no Brasil dos militares para discutir o que apelida seu “livro sobre os signos”, é então visto por vários intelectuais como um “sublime modernista” que espera da literatura a ruptura com a ordem do presente – o que poderia aproximá-lo dos debates em circulação na FFCL em meados dos anos 1960. O célebre Seminário Marx reunira, entre 1958 e os primeiros anos da década de 1960, um grupo significativo de professores e estudantes uspianos.

Uma das poucas referências de que dispomos a respeito das conferências na FFCL-USP em 1965 é o livro de Paulo Eduardo Arantes, Um departamento francês de ultramar. O próprio título do livro, vale frisar, remete a Foucault, como se observa em entrevista concedida à Folha de São Paulo:

“Folha – Segundo consta, Um departamento francês de ultramar é uma citação de Michel Foucault acerca dos seus colegas brasileiros da rua Maria Antônia – mas não havia aí uma óbvia ironia?

Arantes – Trata-se de fato de uma tirada atribuída a Foucault quando passou por aqui em 65 e fomos apresentados à Ideologia Francesa em pessoa, para surpresa nossa, filha natural do dia a dia das certezas de empréstimo de que sempre vivêramos. Todo mundo costumava citar com legítima satisfação uma observação de Goldschmidt, segundo a qual já éramos de fato um departamento de Filosofia tão bom quanto qualquer outro similar francês de província; ainda estávamos esperando a promoção para Paris quando Foucault completou a deixa, por certo elogian-
do, mas com leve intenção escarninha, pois Departamento de Ultramar também poderia ser alguma ilha do Caribe, e nós sabíamos muito bem (mas ele não) que por lá andava a existencialista Chiquita Bacana”.

O hoje professor de filosofia da USP, então aluno da FFLC, Renato Janine Ribeiro não crê que houvesse intenção pejorativa na expressão de Foucault: “Não faria parte da delicadeza, da maneira como ele foi recebido”; tratar-
-se-ia antes de um reconhecimento do nível intelectual de seus interlocutores: por exemplo, “ele se impressionou muito com o Antonio Candido”, diz Janine.

Para Vladimir Safatle (USP), Foucault “queria dizer que era um departamento que seguia a tradição da historiografia universitária francesa, e seguia de uma maneira bastante correta, mas que também não tinha grande voo próprio, era muito dependente dessa cartografia de pensamento marcada pela missão universitária francesa, que tinha muitas monografias, dissertações sobre autores da história da filosofia e coisas dessa natureza. Como ele era um filósofo muito a parte em relação ao modo como se fazia filosofia nas universidade francesas da época – porque você percebe que ele é alguém que tem pouquíssimos textos de historiador da filosofia, não tem nenhuma monografia sobre um autor ou nada parecido –, como ele tava totalmente à parte, uma colocação dessa natureza era muito mais crítica” do que propriamente elogiosa, completa o professor Safatle.

Colega de Janine no departamento de Filosofia da USP, o professor José Arthur Giannotti resume sua impressão sobre Foucault nos seguintes termos: “Era encantador, com um enorme senso do espetáculo. Ele e [Gérard] Lebrun formavam uma dupla espetacular, ambos jogaram com suas vidas além da prudência”.

 

Foucault voltará à França ainda
em outubro de 1965. Somente
regressará ao Brasil, já então
inegavelmente famoso, oito anos
após a primeira visita.

 

 

Oferece em 1973 um ciclo de palestras no Rio de Janeiro, por iniciativa de
Affonso Romano de Sant’Anna, diretor do Departamento de Letras e Artes da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), publicadas no livro A Verdade e as Formas Jurídicas. Em 1974, o convite parte do Instituto de Medicina Social da atual Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e, em outubro de 1975, Foucault retorna à Universidade de São Paulo.

Pouco antes desta nova visita, a mais marcante, Foucault estivera em Madri, com Yves Montand, Régis Debray, Costa-Gravas, Jean Lacouture, o padre Ladouze e Claude Mauriac, para protestar contra a condenação à morte, por
um tribunal de exceção, de onze militantes anti-franquistas. Seriam as últimas execuções praticadas pelo governo fascista do General Franco, que morre em novembro daquele ano. Mas aqui o ciclo autoritário estava longe do fim, como atestado pelo episódio emblemático do assassinato do jornalista Vladimir Herzog nos porões da ditadura, naquele mês de outubro em que Foucault dava seu curso na USP. À revista brasileira Versus, em entrevista naquele mesmo ano, ele diz:

“O que tentei explicar em minha aula na USP foi que, desde o fim do nazismo e do stalinismo, o problema do funcionamento do poder no interior das sociedades capitalistas e socialistas está colocado. E quando menciono funcionamento do poder não me refiro apenas ao problema do aparelho do Estado, da classe dirigente, das castas hegemônicas… Mas a toda essa série de poderes cada vez mais tênues, microscópicos, que são exercidos sobre os indivíduos em seus comportamentos cotidianos e até em seus próprios corpos. Vivemos imersos em uma teia política de poder – e é esse poder que está em questão. Acho que desde o fim do nazismo e do stalinismo, todo mundo se coloca esse problema. É o grande problema contemporâneo. (…) Certamente o problema dos poderes, e do funcionamento dos poderes no interior da sociedade, é o problema da nossa geração”.

No dia 27, após o funeral de “Vlado”, como o jornalista era conhecido, irrompe uma greve na universidade; Foucault suspende seu curso de imediato. Segundo Heliana Conde, professora do departamento de psicologia social da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), Foucault “lê um texto sobre o assassinato do jornalista, logo transformado em panfleto pelos estudantes”. E será um dos oito mil participantes das exéquias de Herzog, na histórica cerimônia conduzida pelo então arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, em 31 de outubro. O filósofo diria mais tarde a esse respeito: “(…) a comunidade judaica não ousou fazer exéquias solenes. E foi o arcebispo de São Paulo que promoveu, na catedral metropolitana, uma cerimônia, aliás ecumênica, em memória do jornalista: o evento atraiu milhares de pessoas à igreja, à praça etc. O cardeal, de vestes vermelhas, presidia a cerimônia: caminhou diante dos fiéis e os saudou exclamando ‘Shalom, shalom’. A praça estava cercada por policiais armados e na igreja havia diversos policiais à paisana. A polícia recuou: não podia fazer nada contra isso”.

À época, Foucault convocou a imprensa internacional para distribuir uma declaração na qual dizia que não ensinava em países onde jornalistas eram torturados e mortos nas prisões. Porém acedeu em proferir uma palestra,
a convite dos estudantes vinculados ao Centro acadêmico de ciências humanas (CACH) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).

 

O filósofo discorreu sobre a
questão da sexualidade e da
repressão sexual e polemizou
com Engels, para irritação
dos marxistas.

 

 

Como aponta a professora de História na Unicamp Margareth Rago, “a imprensa tentou explorar um conflito latente entre Foucault e os intelectuais marxistas nesse momento, em São Paulo. Em uma entrevista ao Jornal da Tarde, porém, o filósofo, em uma atitude de grande respeito à intelectualidade brasileira, foi taxativo: ‘Eu não critico quem não tem direito à defesa’, disse, referindo-se aos intelectuais marxistas que não teriam condições de responder às suas críticas em virtude da repressão política instaurada no país”.

Parece inegável que houve certo desencontro entre o que Foucault tinha a contar e o que sua plateia esperava ouvir. Uma distância que talvez fique mais flagrante se comparada com o entusiasmo imediato por Foucault
da parte dos estudantes e intelectuais no Rio de Janeiro, cidade onde ele também esteve naquele período, que lhe agradou sobremaneira pela beleza, informalidade e calor humano, e onde foi acompanhado de perto por nomes
como Roberto Machado, professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e um dos principais divulgadores de Foucault no país.

A respeito desta desigualdade de recepções, Vladimir Safatle observa que o conflito é sensível em especial junto ao público uspiano, mas que “se você pegar a PUC de São Paulo, ela tem uma influência foucaultiana muito forte. Mas isso [a relativa lentidão de recepção às idéias do pensador] diz respeito não só ao Foucault, mas diz respeito a recepção do pensamento francês contemporâneo no Brasil principalmente nos anos 70 e 80. O pensamento contemporâneo francês (Deleuze, Foucault, Derrida) foi recebido principalmente em departamentos não só de filosofia. Alguns dos grandes primeiros leitores de Foucault são ligados à psicologia, Jurandir Freire Costa, por exemplo. Então isso acontece com todos eles, é um pouco engraçado porque isso repete um pouco o modelo que aconteceu nos EUA, em que eles entraram via estudos literários, principalmente. No Brasil, os departamentos de filosofia demoraram, salvo raras exceções, demoraram pra assimilar é bem provável que uma das grandes responsabilidades por esse processo tenha sido de fato o Departamento de filosofia da USP. Por quê? Porque a gente fazia filosofia de uma maneira muito diferente do que eles estavam fazendo naquele momento, mesmo a pauta das questões eram outras, eram totalmente diferentes. Qual era a pauta de Foucault naquele momento? Eram estruturas institucionais e a sexualidade. Nós do Departamento de filosofia da USP, a gente estava trabalhando outro tipo de problema, primeiro a história tradicional da filosofia e segundo a tradição marxista mas, diga-se de passagem, uma tradição marxista muito diferente da tradição marxista que era hegemônica na França, porque era uma tradição marxista hegeliana, que não existia mais na França, então a questão era muito simples, nós tínhamos um conjuntos de questões e problemas que animavam o Departamento de filosofia da USP que fazia com que então fosse menos aberto a esse tipo de interlocução com esses autores. De fato demorou. Tem curso sobre Derrida que aconteceu há três anos atrás no departamento. Pela primeira vez. Então tem todas essas caracterizações. Durante um bom tempo, de fato, eles foram vistos como pensadores pós-modernos, ou seja, que era uma maneira muito equivocada de você colocar em uma espécie de vala comum sem analisá-los em sua densidade filosófica”.

Quanto à passagem de Foucault pela Unicamp, Margareth Rago nos oferece o relato de seu colega de universidade, o professor de Filosofia Luiz Orlandi, que realizou a tradução simultânea. Ele lembra o ambiente animado, das pessoas sentadas no chão de cimento em volta de Foucault que sentava, por sua vez, sobre uma mesinha na quadra de futebol de salão do CACH. “Foucault dizia muitas coisas sem que seu rosto perdesse o ar de exuberante alegria e o humor de sua cortante inteligência. Não me era fácil acompanhar sua fluência discursiva, de modo que eu me sentia livre para incluir algumas improvisações, mas sempre no sentido buscado pelas suas frases. Em um certo momento, por exemplo, quando ele fez a crítica das sínteses totalizadoras, pude dizer a ele que minha tradução buscou especificar a crítica das sínteses reacionárias. Ele concordou, sorrindo e dizendo: ‘é isso mesmo, somos contra as sínteses reacionárias, mas sem que entrássemos em mais detalhes’. Em um certo momento, uma das alunas, Sílvia do Patteo, me substitui na árdua tarefa de traduzir a variação discursiva desse inesquecível pensador. Esse encontro foi uma delícia”.

Caio Liudvik é doutor em filosofia pela USP, autor de Sartre e o Pensamento Mítico (Loyola) e tradutor de As Moscas (Nova Fronteira) , de Jean-Paul Sartre


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