Privado: Filosofia – Márcia Tiburi

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A vida nua da jovem mulher vestida de rosa pink

O caráter complexo do ataque sofrido pela estudante Geyse Arruda na Uniban no último mês de outubro assinala o estágio bárbaro em que se encontra nossa convivência social. Pelo menos três formas de violência aparecem no evento para tornar Geyse uma vítima total.

Em primeiro lugar, a humilhação sofrida pela estudante de 20 anos é bullying, ritual de violência de jovens em situação escolar que decidem atacar emocional ou fisicamente um outro eleito por sua diferença, qualquer que seja ela. Em segundo lugar, podemos falar de um estupro imaginário. Em terceiro lugar, é a ancestral violência que a mulher como caça sofre primeiro com o olhar, depois as mãos, até chegar às imagens técnicas (da máquina fotográfica ao YouTube) que caçadores modernos usam tão bem. A violência contra mulheres neste estágio tecnológico da história vem revelar o status da mera vida, da vida abandonada capturada pelo espetáculo em nossa cultura.

No caso do elemento bullying, trata-se de violência de um grupo contra um indivíduo indefeso. Houve sobre a pessoa de Geyse a projeção de um afeto. Quem é eleito para ser linchado carrega algo do grupo que deveria permanecer oculto ao grupo e que, tendo aparecido, precisa ser extirpado pelo grupo sem consideração dos custos. O irracional que irrompe carrega uma verdade insuportável. Geyse foi quem a acionou, por meio da encenação de seu corpo desejável e desejante. Combinada a isso, a diferença que Geyse trouxe à tona mostra, na contramão, o que é comum a todos: nas vantagens físicas que outros não tinham, aparece a inveja comum. No comportamento sensualizado, aparece a hipocrisia igualmente comum de sexualidades perturbadas que a atacam. Inveja-se aquilo que não se pode ser, ou o que se gostaria de ser. Inveja e ódio são afetos políticos que se manifestam em comum.

Diante disso é que o estupro imaginário vem ser a vingança. Atacar a estudante com a palavra “puta” dita em coro foi como trazer à cena o hostil falo imaginário do estuprador que até mulheres, no caso, puderam usar. Falar é um jeito de fazer o que nem se imaginaria fazer. Assim como há um gozo (uma realização profunda) no amor, há também no ódio. Assim como há gozo no corpo, há na fala, que é parte do corpo. A fala expande-se pelos meios de comunicação e nas conversas cotidianas. Fora do campus onde ocorreu o fato, muitas pessoas continuam odiando Geyse com o fácil recurso da fala afirmando em seus discursos que “ela conseguiu o que queria”. Devemos perguntar, caso desejemos acabar com esse gesto violento: “que sei eu do desejo de Geyse?”. Se levo em conta que a única coisa segura é que, por meio de um discurso que imputa o desejo de outro, manifesto a verdade oculta do meu próprio desejo, todos deveríamos nos calar envergonhados.

Esses dois elementos podem ser revertidos em um debate ético. Tanto o bullying quanto o estupro imaginário podem e devem ser eliminados da cultura pela educação, que deveria promover a ética como respeito absoluto ao outro no sentido de respeito a seus direitos. No entanto, sem uma análise das reais motivações que estão por trás da violência, não há muita chance de evitar, de uma vez para sempre, esse ódio que tem orientado e, assim, destruído a chance de nossa vida política de expressão democrática, a vida da convivência com diferenças e singularidades.

O vestido rosa da ninfa

O terceiro aspecto da questão ajuda a compreender o evento odioso que envolveu Geyse Arruda. Theodor Adorno escreveu, em Educação Após Auschwitz, que todos os nossos esforços como educadores deveriam se dar na direção de que Auschwitz não se repita. A repetição não cessa, pois, como disse o mesmo autor, o proscrito desperta o desejo de proscrever. Geyse não foi atacada apenas por incorporar a estética da sensualidade e ter, por meio dela, se portado como uma “menina má”, provocando seus ingênuos coleguinhas na instituição escolar defensora de “moral e bons costumes”. Não foi de modo algum a sensualidade fora de lugar o que provocou o gesto coletivo. A sensualidade constantemente perturba a cena cotidiana de uns e não a de outros. O incômodo é subjetivo. É, no entanto, o elo estreito entre sexualidade e poder acobertado em nossa cultura o que está em jogo.

Na condição de mulher de uma classe social desprotegida, Geyse não estava autorizada a se portar como uma “mulher poderosa”. Em suas roupas baratas, filha de pessoas simples, estudante de uma universidade para uma classe social menos favorecida, o corpo de Geyse não foi aceito – por essa mesma classe – como corpo-poder porque havia nele um poder capaz de competir com o poder instituído, um poder não autorizado. Não foi só o poder-macho que se sentiu abalado. Até porque certamente os estupradores imaginários mostraram quem manda. Em nosso Brasil, a sexualidade de uma mulher ou de um homem só é terrível à medida que não é bancada por um poder econômico ou político. Geyse ousou praticar algo na contramão da ordem do “quem ela pensa que é?”.

Geyse encenou algo não permitido. Algo que, mais do que o desejo, moveu a inveja. Do ponto de vista do desejo, os rapazes, cujo surgimento da sexualidade se dá diante da indústria pornográfica, que gozam clandestinamente com a imagem de uma mulher nua, certamente desejariam Geyse como objeto sexual. Do ponto de vista da inveja, a coisa é diferente. Todos – homens e mulheres – que projetaram nela seu ódio odeiam-na, enquanto ela é o que eles almejariam ser, mas não são capazes. Sentem-na, assim, como inimiga e rival que os impede de ocupar a posição narcísica que a sexualidade permite em nossa cultura moralista. Está em cena uma ação, o teatro histérico da sexualidade como teatro do poder.

Entender a rivalidade das moças em relação a Geyse não é difícil. A rivalidade dos rapazes é que é a grande descoberta. E, para entendê-la, devemos ir ao início da questão. O que provocou a manifestação fascista não foi algo abstrato, mas um elemento concreto que funcionou como a gota d’água. Trata-se do grande protagonista, o fetiche em sua forma teológica, revelado na própria cena: o vestido pink. O que os jovens encenaram em massa – e não apenas em hordas, pequenos grupos que atacam travestis e prostitutas – foi a histeria em torno de uma peça de roupa. O desejo pela roupa manifesto como inveja seria evitado se todos a pudessem vestir e encenar o lugar narcísico que Geyse ocupava ao se fazer completamente visível, ninfa ameaçadora, com a mítica peça. Muito mais que os banais cabelos tingidos, ou as pernas à mostra, é o fetiche do vestido pink que despertou a histeria coletiva dos rapazes. O que surge é o desejo transformista – o desejo de encenar uma “mulher” –, que deve ser calado pelo grito de guerra contra a inimiga ameaçadora que veste a roupa desejada. O corpo de Geyse só atrapalha.

Vem à tona a mesma coisa que provoca a humilhação de uma travesti: a autorização para encenar “uma mulher”, que nossa cultura confina a cada dia aos ensaios pornográficos das revistas autorizadas. É um corpo que aparece que vem provocar o corpo histérico dos que precisam se ocultar sexualmente por trás da cena do “macho” comprometido com a moral e os bons costumes. Quem faz cena não suporta a cena de quem rivaliza com a sua.

Vida nua

Tenho a impressão de que foi o livro Homo Sacer, de Giorgio Agamben, publicado no Brasil em 2002 (UFMG), que tornou bastante comum o conceito de vida nua entre os intelectuais brasileiros. Antes dele, os estudiosos de Walter Benjamin já se ocupavam do conceito desde o famoso texto sobre a Crítica da Violência, de 1921, em que Bloss Leben, ou mera vida, vem a ser aquilo que Aristóteles chamou de Zoé, a vida dos animais, das mulheres e dos escravos. A vida sem qualificação pela cultura, com participação restrita na esfera da linguagem que define a vida política, aquela que participa do poder. Um mendigo a vagar pela rua é o emblema máximo desse conceito em Benjamin, que não podia supor as esquinas cheias de crianças abandonadas nas ruas de São Paulo e nas cidades grandes em geral. Antes dos estudiosos brasileiros de Agamben, os leitores da Dialética do Esclarecimento, de Theodor Adorno e Max Horkheimer, já conheciam o tema que é nele comentado. Nos livros de Agamben que li, Adorno não é jamais citado. Mas é Adorno quem melhor expõe nossa relação com o corpo (como corpo vivo e corpo extenso, Leib e Körper) com a expressão “amor-ódio”. Assim como uma criança abandonada é amada por quem sente compaixão, ela é odiada por aquele mesmo que, sentindo compaixão, não faz nada. Certo de que, nesse momento, o ódio venceu o amor, politicamente falando. O ódio é de todos, de ninguém, de cada um. Do mesmo modo, o corpo das mulheres é vítima desse afeto ambíguo, é amado e odiado. Quando nu, traz à tona a vida nua que a cultura gostaria de banir – como o macho encenado gostaria de banir a travesti –, como um dia baniu negros e judeus. Ao mesmo tempo, como é o foco de um desejo, o corpo nu que mostra a vida nua é amado, desde que apareça controlado pela indústria da pornografia, que sabe as melhores posições e cenas nas quais a caça pode ser contemplada sem perigo de se sucumbir a ela. Ainda mais quando é espelho narcísico em que a imagem vista é a imagem que se deseja não apenas ter como sua, mas que deve ser “minha”. A verdade do desejo é sempre a traição de si mesmo.

marciatiburi@revistacult.com.br

(1) Comentário

  1. Show. Você arrasou com esse texto. Na época que aconteceu esse fato, eu tive a mesma impressão que você, só que não sei verbalizar e ter uma análise tão profunda que a sua. Me senti de alma lavada com esse texto. Eu fico chocado como a nossa sociedade ainda é tão machista e neurótica com sua própria sexualidade.

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