Privado: Filosofia – Marcia Tiburi

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Para comemorar os 30 anos do monstro que nos faz pensar no futuro

Alien, o filme de Ridley Scott, completa 30 anos de estreia. O filme de 1979, que ganhou em 1980 o Oscar de efeitos visuais, é uma obra-prima do cinema de ficção científica, tanto quanto uma obra fundamental da história das artes visuais. Criado pelo artista suíço H.R. Giger, Alien é não apenas uma grande obra do ponto de vista do desenho virtuo-sista de seu criador, nem apenas do design complexo que mistura corpo e máquina, mas uma verdadeira teo-ria explicativa da condição humana e da cultura no estágio em que a experimentamos hoje. Alien é uma das mais poderosas imagens da nossa era tecnológica e pós-humana, que se coloca como amplo questionamento sobre nosso corpo humano em seu devir-máquina. Alien é uma metáfora da cultura tanto quanto do cinema, assim como do lugar daquilo que chamávamos há pouco tempo de subjetividade. A capacidade de ainda nos impressionarmos tanto com essa imagem não é sinal apenas da competência do artista e do cineasta, mas também de que ainda podemos ter esperança na condição humana.

O enredo do filme é conhecido: a nave Nostromo volta para o planeta Terra, mas é obrigada a parar no meio do caminho para investigar uma forma de vida de um planeta inóspito. O clima geral do filme é de frieza sutil entre os personagens e seus deveres. A curiosidade e a obediência à lei não são separadas da ingenuidade e da má-fé na caracterização daqueles indivíduos que ali representam a sociedade humana para a qual a investigação do espaço é também obra e projeto do capital. Misto de heroísmo e miséria, de força e fraqueza, o mais banal do comportamento humano é ofertado pelo diretor com o grau zero da romantização.

Um computador chamado Mãe informa tudo o que os tripulantes devem saber sobre a nave, a viagem e as ordens a seguir para voltarem à Terra. No desenrolar da história, a tenente Ripley, personagem de Sigourney Weaver, descobre que o sistema se importa mais com a captura da estranha vida que poderá ser estudada do que com a sobrevivência dos tripulantes. É um dos raros momentos em que o filme, encenando a data de 2037, lembra a condição moral do humano. O que o filme deixa ver é que, no futuro, seres humanos obedecem a regras – perderam sua autonomia – e essa é a sua única garantia, à medida que a interioridade foi aniquilada. Essa falta de interioridade se objetiva em sistema. Diante do monstro, cada um dos personagens particulares vale tanto quanto diante do sistema. Sistema e monstro são análogos. Tanto quanto o sistema, o monstro – cuja forma de vida é tão perfeita quanto sua hostilidade, segundo as palavras do androide Ash, que age sem interioridade e também sem respeito a regras – agredirá até a morte os seus perseguidores, tendo como diferença em relação aos outros sete passageiros que, como ele, desejam apenas salvar a si mesmos as características físicas, um sangue ácido e muito mais força. Em relação ao sistema de computador, a diferença é que o monstro age na ausência de cinismo própria da máquina. Enquanto o sistema é programado para deixar os tripulantes morrer por interesse, sem deixar seus propósitos claros aos ameaçados, o monstro, paradoxalmente, é pelo menos honesto e mata seus algozes no contexto de um embate corporal em que vence quem é mais forte e não revela suas regras.

Monstro humano

O monstro é o verdadeiro herói do filme, pois apenas ele foi, de fato, atacado em seu habitat e precisa se defender. É claro que essa leitura só pode ser compreendida do ponto de vista de certo desvio. Assim é que, para entender o que é o Alien como “ente”, nos ajuda saber o que é um monstro. Aristóteles foi o primeiro estudioso da condição desses seres de natureza híbrida e resolveu a questão da monstruosidade pondo em tensão forma e matéria que não entrariam em acordo no instante em que a natureza forja a vida. Para Aristóteles, o monstro não seria antinatural e nosso Alien também não é. Gilbert Lascault, no começo dos anos 1970, criou o conceito de “forma M” para tentar explicar as mutações, as formas extraordinárias que, para além da natureza, são criadas pela arte lembrando a possibilidade de que sejam imitações da natureza. Tais formas M teriam como função fazer-nos pensar pelo desvio, ao perturbarem nossos hábitos mentais. Monstros, nesse caso, podem ser pensados como dispositivos filosóficos que desacomodam a percepção. Por isso, crianças tendem a gostar deles enquanto ainda não foram prejudicadas pela educação acomodadora carente de filosofia. Alien é um monstro para adultos, mas tem o mesmo sentido.

A criação de Giger é obra de arte, no melhor sentido da imagem que nos faz pensar. Misturando o orgânico com a máquina, Giger chama atenção para um mundo em que a referência humana foi perdida, mas, de modo muito mais grave, entramos em uma guerra desde sempre perdida em função do caráter desproporcional do corpo em relação à máquina. O que o filme mostra é que a aliança humana com a máquina que substitui nossa interioridade um dia nos devorará desde dentro de nós mesmos.

A Odisseia do nosso tempo

É certo que, se buscarmos a perspectiva da outra espécie, se tentarmos pensar do ponto de vista do Alien, ele será tão heroico quanto os personagens humanos que desejam caçá-lo. Acostumados que estamos a pensar do ponto de vista da espécie, negamos o outro. O outro, no entanto, é o que sempre retorna. Dentro da espécie agimos do mesmo modo: negamos o outro, tão particular quanto cada um de nós, e o egoísmo acaba por revelar-se nossa prática mais atual, ao mesmo tempo arquiprimitiva. O filme, no entanto, vem abalar essa polarização à medida que o monstro é o que, estando fora de nós, vem se gestar dentro de nós. É o estranho inquietante sobre o qual falou Freud e que se gera dentro de nossos lares, de nossa nave humana; é o que encontramos no meio do caminho na viagem de retorno à casa, que é a grande figura ocidental da subjetividade. Alien é, por isso, a maior obra de nosso tempo, tal como o foi a Odisseia na Antiguidade.

O filme não moraliza o Alien, não busca qualquer humanização do monstro para forçar empatia. Mesmo assim, certa simpatia pelo monstro que surgiu em nossa cultura deve ter motivos. Talvez ela venha do fato de que os outros sete personagens, expondo-se em sua fragilidade humana, se tornem inconscientemente antipáticos a uma cultura que não quer reconhecer a si mesma. Uma cultura que perdeu toda a relação com a vida como algo a ser preservado para além da procriação e que, no entanto, vem saber o que ela significa pelo encontro com o monstro que procria tanto quanto nós. É a valorização da vida – e da luta sem limites por ela – o que o monstro faz lembrar. O monstro não é diferente do humano, apenas sua exteriorização é uma espécie de projeção negativa. A imagem mais pura do nosso medo da morte violenta.

O filme mostra a vida humana em sua fragilidade – o que é o sangue que a simboliza, perto do ácido procriativo do monstro? –, mas, sobretudo, em seu esvaziamento exposto naquela interioridade da qual estamos alienados e que é reencontrada como forma monstruosa. Como algo que virá nos devorar, desaparecerá com nossos corpos e os devolverá hibridizados com o ser que nasce dentro de nosso corpo oco, e tão mais frágil quanto mais oco, e dele se serve como um hospedeiro.

Em momento algum os opositores de Alien, todos carentes de interioridade, de angústia e de conflito, e mergulhados tão somente no medo e em seus próprios interesses, conseguem ser mais interessantes do que o monstro em torno do qual gira todo o enredo. Pelo menos o monstro ainda nos desperta o desejo de conhecer, de saber, de entender o que se passa para além de nosso umbigo. Sem linguagem, o monstro chama atenção desmedidamente em relação aos personagens humanos porque é dono de um poder de destruição jamais imaginado, assim como chamou a atenção do sistema por sua “perfeição”. Mas, além disso, Alien, como imagem do futuro, é também uma mensagem a ser ouvida, mesmo que, como dizia o slogan de lançamento do filme em 1979, “seu grito não será ouvido no espaço”. Para quem gosta do filme, o monstro como interioridade reencontrada talvez nos faça perder o sono para sempre.

marciatiburi@revistacult.com.br

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