Filho de Brinquedo – Crônica

Filho de Brinquedo – Crônica

Minha crônica, publicada no site http://www.vidabreve.com/uncategorized/filho-de-brinquedo. Aos leitores deste blog

Ilustração: Rafa Camargo

Uma mulher de certa idade, parecia uma avó, esperava na calçada com um carrinho de criança vazio. Um carro prateado de adulto daqueles caros, poderosos e cafonas parou meio que de repente. Uma moça jovem desceu do lado do passageiro e, apressada, abriu a porta de trás de onde tirou uma criança pequena segurando-a com as duas mãos pelo tórax como se faz também com bonecos. Depositou rapidamente a criança no carrinho sem olhar direito para a avó que permaneceu calada enquanto a criança chorava. Talvez a moça não tivesse tempo de consolá-la, estava visivelmente ansiosa, afinal, filhos dão muito trabalho para pessoas que já tem trabalho demais e, naquele caso, precisavam, por algum motivo, sair correndo. A pressa talvez fosse para pegar o horário do banco e pagar a prestação do grande carro usado para transportar a “família”.

Vamos manter a palavra “família” entre aspas, porque não sabemos muito bem o que ela significa nesse contexto.

A avó talvez fosse parte da “família”. Talvez a “família” seja só um teatro que precisa de pais, avós e crianças. Talvez seja um teatro de marionetes e aí não precisamos mais aspas. A avó, a propósito, parecia uma boneca velha que saiu andando com a criança que, como ela, também parecia uma boneca num carrinho que era, afinal, de bonecas. A mãe e o pai (não o vimos, mas ele dirigia o carro) talvez estivessem cansados de brincar, ou precisassem naquele momento brincar de outra coisa, por exemplo, de carrão de luxo que transporta a família (sem aspas).

Quem viu a cena fica pensando nessas coisas. Mas a vida seguiu e a cena mudou. Aos poucos, o choro do menino deu lugar aos sons do cotidiano, conversas, músicas, buzinas, sirenes. Poderia ser um set de filmagem, todo montado e sonorizado, mas era só a cidade e a monotonia da qual os transeuntes humanos são vítimas e produtores. Mulheres grávidas andavam pela rua. A mania de gravidez talvez se explique para acabar em nove meses com a monotonia. Uma delas, quase parindo, tomava sorvete subindo a ladeira a arrastar os pés inchados, outra comprava frutas no verdureiro a segurar a barriga igualmente em ponto de irrupção. Na porta de um edifício uma mulher igualmente grávida tentava convencer um menininho chorando a ir ao xópim passear. Outra, com a barriga ainda pequena, levava pela mão o filho de uns dez anos atravessando em silêncio a rua fora da faixa de segurança.

Esperando o semáforo abrir uma moça conversava animada com a amiga. Dizia-lhe:

— Quero muito ter filhos, sabe? Sou louca pra decorar um quarto infantil. Acho lindos os papéis de parede hoje em dia. Fico espantada com a criatividade dos designers de móveis infantis. E as roupas de cama, as mantas, os lençóis bordados, não são maravilhosos? Em Miami você compra carrinhos por um terço do preço daqui. Eu vou comprar um carrinho branco! Adoro branco!

— Eu não sou dessa onda, não.

— Mas como? Eu fico louca quando vejo as roupinhas nas vitrines do xópim! Criança também tem que andar na moda.

— As pessoas andam tratando as crianças como brinquedo, você não acha?

— Que exagerada! As pessoas trabalham tanto! Os filhos custam muito caro. Mas eu vou ficar em casa cuidando do meu filho. Meu marido vai dar conta de tudo.

— Eu realmente não curto essa ideia.

— Imagina! Hoje em dia se você fizer a conta, desde a gravidez até a faculdade, um filho custa milhares de dólares. O preço de uma casa de alto padrão.

— Entendo. Então é pior do que brinquedo. É mercadoria mesmo. Mercadoria que você paga a prestações.

— Ficou louca? Você está muito radical, amiga! Relaxa! Eu quero ter filhos como todo mundo, senão quem vai cuidar de mim quando eu ficar velha?

— Quem disse que seu filho vai cuidar de você quando você for velha?

Atravessaram a rua. Um carro prateado passou o sinal vermelho e matou uma das duas.

Como isso é uma crônica, parte dela é verdade, parte é só pra fazer pensar na vida. Ao leitor, cabe escolher qual das duas morre e assim, produzir algum sentido na banalidade crônica do cotidiano.

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