Feminismo Global

Feminismo Global

(Foto: Reuters)

No meio de falanges de odiadores nas redes sociais, nas ruas, em discursos fundamentalistas de ódio ao outro, o discurso sobre o amor ganha um sentido político

É extraordinária a insurgência das mulheres nos EUA e no mundo não apenas contra Donald Trump e seu discurso escandalosamente misógino, sexista e patriarcal, mas contra todo uma série de retrocessos globais. Com a Marcha das Mulheres  que reuniu centenas de milhares de ativistas nos EUA e em pelo menos 20 países, vemos um movimento heterogêneo, uma onda rosa, uma ruidocracia comandada por mulheres que consegue mobilizar da cantora Madonna à pensadora, ativista e ex-Pantera Negra Angela Davis.

Essas mais de 2,5 milhões de pessoas – mulheres, homens, LGBTs migrantes, estudantes, ativistas, profissionais liberais, celebridades, pessoas comuns inconformadas nas ruas do planeta com seus “pussy hat”, chapéus-bocetas, nas cabeças e palavras de ordem e cartazes de protesto – colocam o feminismo, ou melhor, os feminismos, na linha de frente de uma esquerda global, que emerge, como disse Angela Davis no seu discurso na Marcha das Mulheres como uma “poderosa força de mudança que está destinada a impedir que a cultura racista e patriarcal floresça novamente”.

Davis fala em nome de um feminismo “interseccional” ou seja, que busca fazer convergir as demandas de gênero com questões de raça, classe social, com o transfeminismo, o feminismo negro, o feminismo lésbico, as questões que afetam as mulheres indígenas, migrantes, as questões do meio-ambiente e tantas outras questões.

Na sua fala, lembra que os Estados Unidos, como o Brasil, são um país “ancorado na escravidão e no colonialismo, o que significa, para o melhor ou pior, que a própria história dos EUA é uma história de imigração e escravização”. Respondendo diretamente a truculência de Donald Trump em sua campanha, que prometeu separar os EUA do México com um muro, Davis retruca que “espalhar a xenofobia, lançar acusações de assassinato e estupro e construir muros não apaga a história. Nenhum ser humano é ilegal. “

Nesse sentido, Donald Trump e seus ataques às minorias conseguem ser uma espécie de encarnação dos piores pesadelos do que Davis nomeia como “intersecções das opressões”, como a combinação delas coloca grupos inteiros (como no caso das mulheres negras) em situações de maior vulnerabilidade social, e como agem de forma entrecruzada de forma que não é possível hierarquizá-las, pois racismo, capitalismo e sexismo estão em sinergia.

A revolução do amor

Mas há outros componentes decisivos nesse feminismo global emergente em que mesmo uma pop star como Madonna percebe que é necessário uma outra forma de operar o discurso, quando fala de uma “revolução do amor” que se refere a um pensamento da diferença e do comum.

Madonna mandou ser rap na marcha: “Sejam bem-vindos à revolução do amor, à rebelião, à nossa recusa como mulheres de aceitar esta nova era de tirania, em que não apenas as mulheres estão em risco, mas todas as pessoas marginalizadas. A era em que ser unicamente diferente, neste momento, pode ser verdadeiramente considerado um crime. Tivemos que chegar a este momento horrível de escuridão para acordar.”

O amor, para além do seu caráter pop e memético, é um conceito a ser operado no pensamento contemporâneo. No meio de falanges de odiadores nas redes sociais, nas ruas, em discursos fundamentalistas de ódio ao outro, o discurso sobre o amor ganha um sentido político. Mas que amor? Madonna encontra o filósofo Antonio Negri do livro Multidão, que propõe pensar o amor como conceito político. Amor ao comum:

“As pessoas hoje em dia parecem incapazes de entender o amor como um conceito político, mas é precisamente de um conceito de amor que precisamos para apreender o poder constituinte da multidão. (…) O amor tornou-se uma questão estritamente privada. Precisamos de uma concepção mais generosa e irrestrita do amor. Precisamos recuperar a concepção pública e política de amor comum às tradições pré-modernas.

(…) Precisamos recuperar hoje esse sentido material e político do amor, um amor forte como a morte. Isto não significa que não possamos amar nossa mulher, nossa mãe e nosso filho. Significa apenas que nosso amor não termina aí, que o amor serve de base para nossos projetos políticos em comum e para a construção de uma nova sociedade. Sem esse amor, não somos nada.”

Negri propõe constituir uma nova sociedade que radicalize o amor, que é uma força econômica sem medida, é o puro excesso, é incomensurável, por isso vence a morte e opera a revolução, pensar o amor ao comum, no comum de formas de vida, afetos, conhecimento, bens, imagens, como um princípio de organização política.

As mulheres com seus cartazes “Ame os odiadores” fazem uma apologia a um comum amoroso capaz de nos tirar de uma retroalimentação vingativa e ressentida.  “Votei pelo amor, não pelo ódio” diz outro cartaz.

A Marcha das Mulheres que ofuscou a posse do Presidente dos Estados Unidos, tomou posse da capital do país, Washington, e se alastrou pelas rua e timelines do mundo. Um feito global com uma força simbólica gigante ao juntar todas as minorias que, paradoxalmente, juntas, são uma maioria que não pode ser ignorada.

(Foto: Shannon Stapleton/Reuters)
(Foto: Shannon Stapleton/Reuters)

Devir Mulher

Esse devir-mulher de todas as minorias pode ser facilmente entendido quando lembramos que o conceito proposto por Gilles Deleuze e Félix Guattari dos devires, das transformações radicais, e abertura para as diferenças e para o outro, só se efetivam por um devir minoritário. Nesse sentido, os pensadores do devir entendem que a mulher é certamente um desses pontos de partida.  Ainda mais que as mulheres são “minorias” que estão em maior número.   “Todos os devires começam e passam pelo devir-mulher. É a chave dos outros devires”, escrevem em Mil Platôs. Deleuze e Guattari afirmam que não se entra em devir sem passar pelo devir mulher.

Explicam porque o homem, entendido como um modelo majoritário, não entra em devir porque é um modelo fixo e abstrato, vazio, que procura modelar e territorializar todas as outras forças que o circundam. Esse modelo dominante é homem, branco, adulto, racional, heterossexual, ocidental. Por isso percebemos essas figuras como Donald Trump ou Michel Temer e seu necrogoverno de homens-padrões, que professam e encarnam o patriarcalismo e forças retrógradas, como algo eminentemente ameaçador.

Diz Deleuze no seu Abecedário: “O homem macho, adulto, não tem devir. Pode devir mulher e vira minoria. A esquerda é o conjunto dos processos de devir minoritário. Eu afirmo: a maioria é ninguém e a minoria é todo mundo. Ser de esquerda é isso: saber que a minoria é todo mundo e que é aí que acontece o fenômeno do devir.”

A Marcha das Mulheres foi essa expressão e potência de um devir-minoritário do mundo. Pois o devir-mulher para Deleuze e Guattari não é evidentemente exclusivo das mulheres. É uma potência de afecção, potência de criar vida que existe em todos os corpos, independentemente do seu gênero masculino ou feminino.  A mulher, afirmam, é a primeira a desterritorializar o homem e fazer fugir suas formas binárias e hierárquicas.

É a mesma onda rosa que Angela Davis descreveu, homens e mulheres contra a forma repressiva do Estado: “Esta é uma Marcha das Mullheres e esta marcha representa a promessa do feminismo contra os poderes perniciosos da violência do Estado. E o feminismo inclusivo e intersetorial que convoca todos nós a juntar-se à resistência ao racismo, à islamofobia, ao anti-semitismo, à misoginia, à exploração capitalista.”

A transformação do trabalho

Há outro aspecto que faz da Marcha das Mulheres algo extraordinário do tabuleiro global. O futuro do trabalho é mulher e existe um devir-mulher do trabalho no capitalismo cognitivo ou pós-fordista, com efeitos ambíguos.

Mais uma vez Antonio Negri chama atenção para a expansão de todos os setores que implicam e dependem de qualidades e valores ligados às mulheres e ao feminino. Um capitalismo que depende cada vez mais do caráter comunicacional, afetivo, em rede, cooperativo e relacional. Os serviços ligados  à comunicação, aos cuidados e a vida, os serviços de saúde, o trabalho familiar doméstico, o telemarketing, serviços de acompanhantes, afetividade Tinder, sexo, toda a dissolução entre trabalho/vida com atividades que mobilizam o corpo, a mente, os afetos produzem uma hipervalorização e hiperexploração das mulheres na centralidade das novas economias.

Os trabalhos do cuidado e do cuidar são incomensuráveis e extrapolam qualquer medida monetizante. As condições do trabalho feminino, vulnerável, integral, invisível, flexível, se generalizaram para todo e qualquer trabalho precarizado. A natureza biopolítica do trabalhos das mulheres, na centralidade das novas economias, exige novas formas de luta e resistência.

O que Antonio Negri está dizendo é que o futuro do capitalismo é mulher e que isso demanda novas estratégias femininas e feministas de resistência e criação, não simplesmente as demandas de “equiparação” entre o trabalho feminino e masculino, por exemplo. Uma etapa sem dúvida importante, tendo em vista que ainda ouvimos de uma direita acovardada e amedrontada que as mulheres já foram longe demais na conquista de direitos e se tornam uma ameaça ao sistema patriarcal, masculinista, machista. Mas Negri vai além:

“O feminismo havia exaltado a mulher como um gênero separado ou, de outro modo, como capaz de se equiparar aos homens; em torno destas finalidades havia desdobrado a sua revolução. Agora, à diferença das previsões, a feminilidade está se tornando o elemento decisivo naquele campo que era reservado ao homem: o trabalho produtivo. Longe de se separarem, as qualidades femininas do trabalho atingem todo o território produtivo; longe de alcançarem uma equiparação, as mulheres se tornam hegemônicas na biopolítica pós-moderna. E logo tomarão consciência disso”.

No Brasil, os feminismos de todos os tipos emergem e explodem. Marcha das vadias; Marcha das mulheres, Marcha das margaridas, #MeuPrimeiroAssédio, Think Olga, #AgoraÉqueSãoElas, movimentos históricos e  movimentos de novo tipo. Nas ruas e nas redes. Mulheres que disputam visibilidade e protagonismo, autonomia e liberdade no consumo, na política, na produção de conhecimento, nos bares, nos esportes, sobre seus corpos e vidas.

Sofremos  um golpe misógino no Brasil com o impeachment da primeira presidenta eleita Dilma Roussef, que ativou a preocupação com a baixa representação feminina em todas as esferas de poder e de decisão. Ficou claro que, para mudar a cultura política misógina, será preciso mais do que a Lei de Cotas que estabelece uma proporção mínima e máxima de candidatura por gênero a cada pleito nos partidos, por exemplo.

Ou seja, a Lei de Cotas para as mulheres não é cumprida, porque não bastam medidas de cima para baixo (são um avanço, mas a mudança não acontece por lei nem decreto). Tem-se que mudar a mentalidade de uma sociedade patriarcal, de uma mídia que dá pouca visibilidade às mulheres ou as deixa em um lugar secundário e que reforçam estereótipos sobre “o lugar das mulheres”, seus papéis sociais e toda uma série de preceitos, etiqueta e comportamentos restritivos para as mulheres, narrados e repetidos cotidianamente.

A forma como a mídia e o jornalismo cobrem as ações políticas das mulheres, seu reforço de estereótipos, e o modo como cobriram o processo de impeachment no Brasil ou a eleição de Trump contra Hillary Clinton nos EUA, produziram todo um campo de análise dos discursos que ativa grupos, redes de solidariedade e sororidade entre as mulheres. Uma empatia entre mulheres que ganhou força e visibilidade nas redes sociais e nas ruas e pode se traduzir em um aumento dessa visibilidade de um feminismo global.

As mulheres continuam tendo muito mais obrigações do que direitos. Os homens continuam em pânico com a autonomia das mulheres, com a legalização do aborto, com a regularização da prostituição como profissão, com a equiparação salarial, com o fato de estarem perdendo o domínio sobre os nossos corpos. Existem causas que valem uma vida toda. As lutas das mulheres passam por aceitar muitas diferenças, inclusive entre os feminismos para se tornarem um dos maiores campos da resistência global.

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