Fé cristã e autonomia da Razão

Fé cristã e autonomia da Razão

Leia abaixo entrevista que o abade primaz dos beneditinos, D. Notker Wolf OSB (teólogo alemão que vive em Roma), concedeu à CULT em São Paulo, onde participou de encontro internacional de religiosos no Colégio Santo Américo.

CULT – Qual é a importância das relações entre fé e filosofia no cristianismo?
D. Notker Wolf –
A base cristã das relações entre fé e filosofia é a encarnação do Verbo Divino em nosso mundo. Deus vem ao nosso encontro para nos salvar. E por isso vem também ao encontro de nossa Razão com sua luz, para fazer-nos compreender a nossa situação no mundo, a nossa dignidade, a nossa fraqueza causada pelo pecado, nosso destino.

CULT – Por que o cristianismo é a única religião que se tornou uma teologia, uma filosofia da religião que podemos aprender, discutir e estudar mesmo se não formos religiosos?
N.W. –
A fé cristã leva a sério a autonomia da Razão porque esta foi criada pelo próprio Deus. Os filósofos pré-socráticos já insistiam na autonomia da Razão humana em relação às tradições religiosas, convertendo as teogonias em uma verdadeira cosmogonia. Assim como na filosofia grega já havia uma tensão entre filosofia e fé popular, a história cristã manteve certo antagonismo entre racionalismo e fé. Não se pode separar a razão da fé nem vice-versa; porém, a razão tem, como qualquer ser criado, uma certa autonomia para se desenvolver. Para não cair no fideísmo ou no fundamentalismo, ela sustenta uma função crítica. As verdades religiosas, mesmo que não possam se resolver em enunciados puramente racionais, devem ser plausíveis. Não se conhece tal função em outras religiões, em que vale a tradição. No Islã, seria um sacrilégio estudar o Alcorão com os instrumentos da crítica literária. Na Idade Média, a situação era diferente para alguns filósofos muçulmanos, porque eles estavam sob o influxo dos filósofos gregos; hoje, em grande parte prevalece a pura tradição. No budismo e no hinduísmo também conta somente a tradição religiosa. Onde a razão não tem seu valor próprio não se pode nem desenvolver uma filosofia no sentido próprio nem uma teologia. No cristianismo, é o homem raciocinante que encontra uma visão mais ampla da fé, uma fé vista sob o ângulo das questões do homem em relação a si mesmo e à Revelação.

CULT – Como explicar, de um ponto de vista filosófico, a hegemonia cultural da cristandade no mundo ocidental?
N.W. –
A filosofia medieval preparou o caminho da modernidade e das ciências ao buscar métodos que levassem a um conhecimento sistemático das coisas, por meio do experimento e do método indutivo. Mesmo que, depois, as ciências tenham se voltado contra a religião, elas tiveram início na religião, pois esta, por meio da fé na criação, permitiu um estudo autônomo do mundo. O cristianismo também é a única cultura que permitiu um desenvolvimento no campo da arte, pois leva a sério o fator tempo, a historicidade do desenvolvimento humano. No Islã, a arte permaneceu a mesma em Meca, Granada, Jacarta e em toda a África. Mesmo no budismo não se vê um desenvolvimento: não se pode a priori distinguir um templo moderno de um templo antigo. O cristianismo conheceu uma longa história da arte – arte romana, carolíngia, românica, gótica, renascentista, barroca etc. O cristianismo diz sim à temporalidade da história humana, conhece o tempo que se desenvolve até a culminação em Jesus Cristo e o desenvolvimento ulterior até o seu retorno.

CULT – Qual é o papel do discurso religioso em nossos dias?
N.W. –
O discurso religioso de hoje quer atrelar o homem, suas culturas e suas sociedades a Deus novamente. A democracia vive de princípios que ela mesma não pode se atribuir; recoloca o homem na realidade do mundo como criação. A natureza tem um valor particular porque é criação de Deus. O homem deve ser visto como administrador, não como explorador. O próprio deve ser visto como ser criado por Deus. Isto dá a cada indivíduo um valor, uma dignidade que ninguém tem o direito de dominar ou mesmo oprimir.

CULT – O pensamento religioso pode ser uma forma de “resistência” à alienação/reificação do homem? A idéia da trascendência – mesmo sendo um conceito dependente da fé – pode ajudar também aqueles que não crêem a escapar do racionalismo e do materialismo?
N.W. –
A religião resiste a qualquer forma de supressão do indivíduo. Ninguém tem o direito de dispor de um outro homem, pois este foi criado por Deus e tem uma relação particular com Deus – é, por assim dizer, “propriedade” de Deus. Sob este ponto de vista, o cristianismo é a base dos princípios democráticos de liberdade, igualdade e fraternidade. Será difícil encontrar outras bases que possam ratificar a democracia de modo tão persuasivo. Por isso o cristianismo resiste a toda forma de absolutismo, ainda que este modo de entendê-lo tenha tido um longo desenvolvimento dentro do próprio cristianismo. Todos os sistemas político-sociais que quiseram eliminar a religião – como o racionalismo da Revolução Francesa, o misticismo nazista e o materialismo comunista – destruíram o homem. O materialismo e o consumismo modernos, o capitalismo cru, reduz o homem a uma de suas necessidades e absolutiza o dinheiro e o consumo. O respeito à dignidade do homem individual e à convivência não pode prescindir de uma antropologia que respeita as raízes transcendentais do homem. O homem é chamado por uma liberdade que supera as necessidades cotidianas. Só nessa liberdade e em um destino eterno ele encontrará um sentido para sua vida.

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