FASCISMO POTENCIAL

FASCISMO POTENCIAL

Theodor Adorno publicou em 1950 um estudo psicossociológico com a intenção de abordar o que surgia naquela época como um novo tipo subjetivo. Hoje nos acostumados a ele. A característica fundamental do que se chamou de “personalidade autoritária” era a combinação contraditória num mesmo indivíduo entre uma postura racional e idiossincrasias irracionais. Na visão de Adorno, a pessoa marcada por esta personalidade seria um tipo individualista e independente enquanto, ao mesmo tempo, teria uma propensão fortíssima a se submeter à autoridade.

Naquele estudo, o objetivo era entender o que se chamou de tipo discriminatório. Se desejava desvendar os motivos do avanço do ódio ao outro em escala social que teria levado ao nazismo alemão. Preocupava a mesma tendência nos EUA onde estava exilados. O que Adorno e seus colegas de pesquisa chamaram de “fascismo potencial” seria a característica de indivíduos que teriam se mimetizado às tendências antidemocráticas da sociedade. Nesta formulação, o mais problemático seria entender o caráter antidemocrático comum em indivíduos cultos porque se conceberia a priori que a educação levaria a uma compreensão não apenas racional, mas também “razoável” das condições sociais.

De onde viria a necessidade de submissão a um algoz, a um carrasco, a um líder paranóico, a uma tendência autoritária por parte de quem poderia entender estes mecanismos e, por isso mesmo, livrar-se deles?

Essa questão colocada durante os anos da Segunda Guerra Mundial e que explicou o contentamento de grande parte da população brasileira na época da Ditadura Militar, ainda é a nossa. Poderíamos explicar o ódio ao outro na forma do racismo, da homofobia, do machismo, do ódio ao “comunista”, sempre pelo argumento da ignorância. Mas não existe uma ligacão direta entre o conhecimento como mera posse de informações eruditas e o senso ético. Vemos intelectuais fascistas agindo em diversos países, mascarando pela pompa aristocrática do “conservadorismo” o que muitas vezes não passa de ódio ao outro.

Poderíamos usar o estudo de Adorno para medir o nosso potencial fascista, ou seja, nossa chance de submetermo-nos à força de uma tendência política ou moral preponderante apenas porque surge com mais força do que outras. Para entender por que tantos defendem aquilo que os oprime enquanto ao mesmo tempo são opressores. Para entender a vítima que elogia o sistema, que odeia quem, parecendo mais vítima do que ela, denuncia a inverdade na qual ele se sutenta.

 Ódio barato

Há um ódio barato vigente em nossa cultura. Ele é programado em direção aos pobres, aos tachados de loucos, às prostitutas, aos travestis, aos grupos de adolescentes que se vestem de modo inusitado ou pertencem a uma tribo que não a das roupas de marcas sempre aceitas e dos comportamentos estandartizados. Digo “ódio barato” porque é fácil de sentir e dirige-se a quem é marcado como descartável pelo sistema econômico, social e político. Ele se refere à todos aqueles que não se encaixam também no econômico sistema mental de explicações pré-estabelecidas ao qual o fascista serve. Daí que ele se realize com explicações econômicas e defenda-se com um lema também barato, um primor das falsas verdades do senso comum: as coisas são como são e não podem ser diferentes.

Por meio de um último exemplo relativo às ruas das grandes cidades, não será difícil entender como pessoas “de bem”, corretas pagadoras de impostos e obedientes às leis possam ser portadoras desse ódio barato. Ele aparece no mau-humor geral contra motociclistas que trabalham entregando documentos e pizzas nas cidades grandes. Quem critica este tipo de trabalhador montado em seu instrumento de trabalho em geral se serve dele. Não é diferente o ódio crescente aos ciclistas por parte de uma população de “bons cidadãos” que olham o mundo no limite das carcaças de seus carros. Ao ocuparem a rua com outra alternativa do que a prescrita pela Indústria da Cultura Automobilística, os motociclistas e ciclistas denunciam – no lugar de vítimas – a burrice própria do sistema. O fascista, quem só conhece a si mesmo enquanto se confunde com o sistema, sente-se ferido narcisicamente pela necessidade ou pela imaginação dos outros. O modo do outro sobreviver sofrendo ou gozando, provoca raiva. A imaginação dos outros que permite transitar na cidade denuncia a falsidade dos sistema de transporte. Neste ponto, o fascista, descobrindo-se subjetivamente morto em sua mimetização ao sempre-igual, avança em seu ódio e pode nos atropelar.

(22) Comentários

  1. Alguém pague uma taça da bebida preferida dessa senhora a ela por mim, e diga que fomos todos nós, os apreciadores, estudantes, transformadores e ensinadores de lucidez dignificante humanista.
    E um brinde à Marcia ! 😀

  2. Enquanto a antipatia por ciclistas é incompreensível pra mim, acho a por motociclistas mais fácil de entender. Quer dizer, já li mais de uma notícia de motoqueiros atropelando pedestres na calçada, em seus exercícios diários de imaginação e sobrevivência, e isso me causa bastante raiva. Tá certo que as ruas e as leis não foram projetadas para motos, mas enquanto o ciclista tem mais potencial pra vítima, o motoqueiro tem potencial para gerar mais violência, inclusive contra si próprio, desafiando destemidamente não só as leis de trânsito, como as leis da física. Existe um motivo bastante objetivo pra que uma rua tenha um limite de velocidade 50 ou 60 km/h, ou pra que se mantenha uma certa distância lateral de outro veículo. Quanto a questão de todos sermos clientes desse mercado, portanto cúmplices, acho que a maioria das pessoas não se importaria em esperar 10 minutos a mais pela pizza, dado o fato de haver a vida de alguém na linha. Sou otimista demais? Será que vamos ter que exigir das pizzarias um selo de proteção a vida do entregador (e dos que cruzam o seu caminho), tipo ISO 9001? Se isso faz de mim um fascista então preciso parar de andar de carro, isso seria ótimo, mas também teria que mudar de emprego, de bairro, de cidade, talvez de país.

  3. Rômulo, devíamos sim exigir das pizzarias a proteção da vida do entregador. Os motociclistas não se arriscam no trânsito porque gostam da adrenalina, mas porque seus patrões exigem tempos de entregas impossíveis. O cara sai do estabelecimento com 5 pizzas para entregar na cidade inteira e tem que fazer isso em meia hora ou não vai receber pela viagem.

    Algumas empresas já tomam a iniciativa de indicar que não cobram o atraso do entregado em seus recibos de entrega, mas mesmo essas ainda precisam de mais escrutínio. Uma vez perguntei ao entregador sobre isso, e ele me contou que apesar de não cobrar pelo atraso, a empresa demitia qualquer um que entregasse atrasado mais que um certo número de vezes.

    Mas estou divagando. O cerne da questão é que como consumidores e beneficiários dos serviços dessas pessoas que são frequentemente discriminadas, devemos sim fazer o que estiver ao nosso alcance para melhorar a situação — e isso costuma exigir uma preocupação ativa e direta com essas pessoas.

  4. Excelente texto, o problema da convivência com o diferente e com o supostamente mais fraco é muito difícil numa sociedade que se diz democrática e humanista como a nossa brasileira, mas o que ocorre é que vejo aqui mesmo em Copacabana alguns nostálgicos da ditadura, ainda que tenha passado tantos anos e tenhamos avançado nas questões sociais. Eles usam argumentos grotescos que disfarçam um mal resolvido ódio burguês ao que é uma condição essencial do fenômeno humano da alteridade. A ideia de relações sociais fundada na intersubjetividade é um caminho para a filosofia romper a redoma da individualidade extrema, o egoísmo, que dela se alimenta, uma vez que é o fundo de todo preconceito, deve ser combatido com leis que punam o ódio ao outro, estamos progredindo sim, mas não se realizará um humanismo profundo se não houver uma mudança na mente destas pessoas que vivem apenas em torno de si mesmas, e que são indiferentes ao que é humano, indiferentes às necessidades e à vida do outro. Temos sérias dificuldades de lidar com o radicalmente diferente de nós, devemos partir de leis humanizadoras até que a mentalidade mude de fato, para que isto não seja apenas mais uma utopia do “mundo ideal”.

  5. estes pequenos fascismos cotidianos sao retroalimentados com e pelas metropolis. nao cabe mais gente nos onibus, nos lotes, entre as cercas eletricas, mas sempre ha mais um jeito de se achatar o espaço por dentro dos monoblocos. percebo que tambem uso do serviço dessa sparta politica, da peleja do desejo, assim como reconheço que o espaço hoje ja nao necessita da materia para possibilitar produzir (aqui somos exemplo disso). se a ideia pode ser propor, sugiro que desumanizemos para humanizar: espalhemos esses milhoes de corpos pelo pais

  6. Pois é, a educação formal não necessariamente leva às pessoas ao caminho do bom senso. Falta aquela coisa que não tem escola para ensinar: a sabedoria do “ser humano”.

  7. Excelente texto! Interessante, pouco antes de abrir este blog, discutíamos aqui no trabalho, a postura de cada um frente aos preconceitos, pasme, ninguém aqui é preconceituoso! Ou bem somos todos seres exemplares ou grandes mentirosos kkkkkkkkkkk. Adorno explica!

  8. Tem razão, Marcus. Pessoalmente, a minha solução é fazer minhas próprias pizzas e entregas, e de modo geral tento ser mais autossuficiente. Pizza em casa pra mim é luxo que acontece uma vez na vida e outra na morte, usei o exemplo em favor do argumento mesmo. Mas ainda sinto dificuldade de simpatizar com motociclistas, e olha que penso seriamente em me tornar um deles… deve ser um reflexo emocional de 10 anos dirigindo nas ruas de Belo Horizonte, presenciando e vivenciando cenas de violência, de fechadas e buzinadas a xingamentos e batidas. Óbvio que a responsabilidade não é só de um grupo, mas suponho que se os motociclistas usassem a união que manifestam na hora da briga de trânsito (basta um se envolver que aparecem dez pra defender e atacar o outro lado, sem ao menos terem presenciado o fato) de maneira mais política, conseguiriam resolver pelo menos uma parte do problema.

  9. Muito bem elaborada e adjetivada na questão do ódio fascista. Contudo acredito que esses comportamentos preconceituósos, derivam da carência de elevar suas próprias auto estimas. Demonstrações claras de pobreza.

  10. Alguém já sentiu na pele a ação do Ministério Público Todo Poderoso?
    – Estamos todos abaixo dos caprichos dos promotores que agem com força policial, e podem, inclusive, te interditar e te jogar num asilo incomunicável.

  11. Não houve desvio, apenas foi desenvolvida uma das questões puntuais abordadas no artigo. Implicitamente, a autora chama de fascistas pessoas que reclamam do comportamento dos motociclistas. Acho justo, e até nhecessário, um direito de resposta. A saber: não tenho carro nem moto, uso apenas transporte público.

  12. Na verdade, conviver com o outro é muito difícil. Isso exige uma compreensão bem vasta de cada particularidade, de cada sentimento íntimo. E convenhamos, ninguém está muito interessado em conhecer de fato os pensamentos de cada um. A vida passa rápido e a maioria nunca entenderá o seu real valor. Muitos só se preocupam com seu próprio eu. É quase impossível se colocar no lugar do outro.

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