Ética, religião e globalização

Ética, religião e globalização

Leia a seguir um depoimento do Frei Carlos Josaphat sobre os desafios colocados para a consciência religiosa pelo movimento de globalização que se expande desde os Descobrimentos até nossos dias

Frei Carlos Josaphat

Uma ética da libertação: esta talvez seja a expressão que resume o percurso teológico, filosófico e político de Frei Carlos Josaphat Pinto de Oliveira, um dominicano nascido em 1922 na cidade mineira de Abaeté. Autor de livros sobre Santo Tomás de Aquino e sobre o missionário espanhol Bartolomeu de Las Casas, Frei Josaphat sempre estendeu uma ponte entre a reflexão filosófica e a ação social – o que acabou lhe causando problemas políticos que culminaram em sua saída do Brasil às vésperas do golpe militar de 64: “Aqueles que esboçavam o golpe exerceram uma ação sobre a Igreja para que alguns padres saíssem do país; eu saí por indicação de meus superiores, que manifestavam a vontade da Santa Sé, e fiquei exilado até o começo de 1993”, contou Frei Josaphat em depoimento à CULT do qual transcrevemos um trecho nestas páginas.

A distância geográfica não impediu, todavia, que ele fosse um interlocutor direto de religiosos ligados à Teologia da Libertação, como os brasileiros Frei Betto e Leonardo Boff ou o argentino Enrique Dussell. O reconhecimento do papel de Frei Josaphat na formulação de uma ética social cristã está materializado no livro Utopia urgente – Escritos em homenagem a Frei Carlos Josaphat nos seus 80 anos (Educ/Editora Casa Amarela – tel. 11/3819-0130), edição comemorativa de seu aniversário que traz ensaios sobre diferentes temas, escritos em homenagem a Frei Josaphat por intelectuais e religiosos como Ecléa e Alfredo Bosi, Pedro Casaldáliga, Antonio Candido, Waldecy Tenório e Franklin Leopoldo e Silva. 

A globalização é um grande desafio para a religião. A contribuição que eu procuro dar hoje consiste em convidar todas as religiões a se empenharem na busca de um caminho para a humanidade, isto é, de uma ética mundial e de uma espiritualidade de promoção do ser humano e elevação daqueles que estão em condição de inferioridade. Nesse sentido, eu proponho que lancemos um olhar sobre a história, vendo no decorrer dos séculos o desdobrar daquilo que chamamos hoje de globalização. Quando olhamos para a época dos Descobrimentos, por exemplo, vemos que a humanidade teve a possibilidade de encontrar ali, no convívio entre diferentes povos, uma fraternidade humana, um desenvolvimento da humanidade que levasse em conta os valores, as culturas, a religião e as formas de viver, por exemplo, dos povos indígenas. Naquele momento poderia ter ocorrido o começo de uma globalização ética, onde houvesse não apenas uma convivência harmoniosa entre indivíduos, mas entre grupos, classes, tribos, etnias, nações, povos.

Havia alguns pioneiros que entreviram essa possibilidade, como é o caso, entre os missionários, de Bartolomeu de Las Casas. Em meu livro Las Casas. Todos os direitos para todos (Edições Loyola), eu procuro destacar o caráter profético (no sentido religioso e sociológico) de Las Casas: ele anteviu a possibilidade de que todos os povos indígenas tivessem voz (entrando em diálogo com os europeus e não cedendo as riquezas da América) e de que não houvesse nenhuma organização colonial sem o consentimento dessas populações. Nesse sentido, esta seria uma espécie de grande confederação americana associada aos povos europeus – algo que procuramos hoje quando falamos, por exemplo, em abater as fronteiras. O que vemos na história, porém, é que a globalização cresce sob a forma da colonização. Em 1885, houve um congresso em Berlim que dividiu a África entre ingleses, alemães, belgas, holandeses, franceses, espanhóis e italianos como se os europeus fossem os senhores do mundo. Ou seja, houve uma globalização que foi um prolongamento da primeira colonização em ondas de colonialismo que submeteram e usurparam outros povos, organizando a economia do mundo sem levar em conta a necessidade de um desenvolvimento autônomo das diferentes regiões, fazendo com que a desigualdade brutal e radical fosse o fundamento da organização do mundo.

Ao mesmo tempo, porém, nós vemos grandes pensadores na linha de Las Casas e Francisco de Vitoria – um professor de Escola de Salamanca, na Espanha, que lançou os fundamentos do direito internacional no século XVI. No momento do Descobrimento, portanto, há a colonização, mas há também o surgimento da consciência humana que olha para a frente e prevê essa possibilidade de uma comunidade de nações, de uma fraternidade entre os povos. Assim como há vagas de colonização, há vagas do pensamento filosófico e sobretudo religioso no sentido de propor uma ética mundial. Um exemplo é o filósofo Immanuel Kant (1724-1804) – conhecido como o homem da ética pessoal, dos imperativos categóricos, da ética vinda da razão prática – que publica em 1795 um livro muito interessante, A paz perpétua, que é uma análise da história na perspectiva de uma ética das nações. Kant propõe que nunca se recorra à guerra para resolver os problemas, mas sim ao entendimento fundado em princípios éticos e em uma filosofia autêntica – ou seja, uma filosofia livre, que não esteja ligada a uma ideologia ou a qualquer forma do poder econômico, religioso etc.

Dentro dessas tentativas de estabelecer uma base de entendimento entre os povos, a grande aquisição é sem dúvida a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, de 1948, para a elaboração da qual houve uma consulta, orientada pelo filósofo Jacques Maritain, a grandes líderes espirituais da humanidade (Gandhi era um deles) sobre a possibilidade de se elaborar um código ético e jurídico baseado na prioridade que devemos dar ao bem comum. A possibilidade dessa ética mundial, de que a ONU deu provas, abre um grande caminho para as religiões. As religiões deveriam ter como prioridade essa perspectiva de que Deus é verdadeiro se for Deus de todos; o Deus uno é o Deus universal, o Deus de todos os homens, de todas as mulheres, de todas as nações. A religião tem a vocação de promover essa ética mundial e essa ética mundial será a melhor preparação para que as religiões possam se realizar. Nesse sentido, eu situo a missão da religião hoje como uma exigência da humanidade, uma urgência: a globalização vai acelerar cada vez mais as possibilidades técnicas de dominação; portanto, a religião está intimada a exercer sua missão de estabelecer uma compreensão fraterna e laços de  solidariedade entre toda a humanidade. A religião é antes de tudo uma forma de viver de tal maneira que o culto e a doutrina que professamos ajude o ser humano  a viver como imagem e semelhança de Deus. Há uma afinidade entre a qualidade do comportamento da pessoa no plano ético com a elevação da religião, a elevação a Deus – reconhecido como realização plena de todos os valores humanos que se encontram na unidade e na perfeição.

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