Ética e situações-limite

Ética e situações-limite

Mesmo quando os valores não representam a vida mais justa, o sujeito pode agir de maneira autêntica

Franklin Leopoldo e Silva

CC/Frederic Leighton
ANTÍGONA: conflito clássico pode chegar à melhor escolha

Os valores que orientam a conduta humana estão estabelecidos em várias esferas: moral, religião, mitos, conhecimento, tradição, política, família etc. Dependendo das circunstâncias, ocorre a predominância de certos critérios, que aparecem, então, como os mais relevantes para a tomada de decisões éticas.

Alguns exemplos são bem conhecidos: antes do advento da razão filosófica na Grécia Antiga, a fonte dos valores era a tradição mítico-religiosa, que oferecia parâmetros de escolha para a verdade e o bem, nas perspectivas individual e coletiva. O exercício livre da racionalidade trouxe a possibilidade de que fosse o intelecto humano a instância de reconhecimento de valores, por via de procedimentos metódicos que assegurassem a distinção entre a mera opinião individual ou de grupos e a universalidade consolidada conceitualmente. Sócrates é o introdutor dessa concepção de ética. Mesmo que o universo da ação não possa ser completamente dominado pela racionalidade teórica, a dimensão prática da razão atua no sentido de oferecer as bases e a latitude das opções possíveis, como é o caso em Aristóteles.

Decisão e autenticidade
O fato de que, desde muito cedo na história do pensamento, a ética tenha sido visada por meio de duas perspectivas – a razão teórica e a razão prática –, bem como a continuidade dessa dupla ótica ao longo da filosofia, indica já uma primeira dificuldade: a distância que vai dos valores em si mesmos à experiência efetiva que deles podemos fazer para discernir entre o bem e o mal não pode ser percorrida diretamente, mas inclui mediações derivadas da complexidade da ação. É nesse sentido que se distingue saber e sabedoria: quando se trata de condutas humanas, em relação às quais temos de escolher a melhor, talvez não seja possível proceder demonstrativamente, e outros elementos, que não partilham da mesma nitidez teórica dos quadros conceituais, devem intervir no processo de decisão.

Isso significa que, no plano da decisão ética, os fatores objetivo e subjetivo não podem ser completamente separados, e que não podemos eleger apenas um deles como fundamento das opções. Se a fonte de valores fosse estritamente subjetiva, a relatividade de critérios impediria qualquer juízo sobre as condutas, e a dimensão intersubjetiva da ética seria simplesmente impossível, com as consequências que facilmente se podem deduzir no plano da vida social.

Se os valores fossem derivados apenas da instância objetiva, a universalidade e a necessidade, consideradas separadamente da experiência efetiva, traduzir-se-iam numa generalidade abstrata e formal, irremediavelmente distante das práticas humanas. Essa dificuldade não pode ser resolvida por um meio-termo estabelecido entre as duas possibilidades, porque os valores devem ser, ao mesmo tempo, dotados de um teor de universalidade que nos incline a adotá-los por sua própria força, e vividos na individualidade singular do sujeito que age. A consciência da ação se manifesta de dois modos: na adesão a valores que me transcendem e na adesão a mim mesmo. À tensão que assim se constitui na ação acompanhada de consciência moral denominamos autenticidade.

Ambiguidade e oposição entre valores objetivamente bons
A questão com que nos defrontamos consiste em que as esferas de valores que citamos no início não se sucedem historicamente como etapas de uma possível evolução, mas convivem como apelos permanentes e respostas possíveis à pergunta ética: o que devo fazer? Não podemos considerar que a dimensão ética da existência corresponda ao esquema histórico-filosófico positivista de passagem pelas fases do imaginário religioso e da idealização metafísica para chegar, finalmente, ao estágio racional ou científico.

A história, quando a acompanhamos sem pressuposições quanto à sua organização e transcurso, mostra-nos uma diversidade de critérios balizando as ações, ainda que as representações teóricas de cada época privilegiem e destaquem algum deles. A pluralidade dessas referências faz com que a procura do valor que deveria orientar a ação muitas vezes apresente ambiguidade ou mesmo relações de oposição, o que coloca o sujeito na posição incômoda ou angustiante em que duas ou mais exigências de compromisso se apresentem e obriguem o próprio sujeito a ter de responsabilizar-se por conferir a uma delas o caráter de imposição absoluta.

Nessa situação de conflito de valores, não é apenas a liberdade subjetiva que está em questão. É no significado e na força intrínseca dos próprios valores que se dá a tensão (porque, do ponto de vista objetivo, eles se impõem igualmente), e o sujeito, ao ter de escolher, não desfruta positivamente de sua liberdade, mas padece a condição dolorosa de ter de efetuar uma escolha na qual, ao abraçar um valor, estará repudiando outro. E esse outro valor repudiado, em outras circunstâncias, seria igualmente respeitado. Ou seja, a diferença entre o bem e o mal, o certo e o errado não é representada de modo claro e definitivo, permanecendo sempre um resíduo de incerteza e obscuridade que, no entanto, não pode impedir ou mesmo postergar a decisão.

A urgência de inventar maneiras para lidar com os valores
Por isso dizemos que, nesses casos, as possibilidades habituais de opção oferecidas pelos valores atingem o limite: o sujeito não pode simplesmente guiar-se por eles, mas tem de inventar uma nova maneira de lidar com eles.

A tragédia de Sófocles Antígona é sempre mencionada como exemplo de conflito. As leis da cidade impedem o sepultamento do inimigo, no caso Polinices, irmão de Antígona. Mas as leis da tradição e os costumes consolidados nos laços familiares impõem a Antígona que transgrida a esfera de valores da pólis. Ora, a tradição é venerável, mas as leis civis são necessárias. Ambas as esferas de valores são justificadas. Ao optar pelo sepultamento clandestino do irmão, sabendo que com isso desobedece à lei da cidade, Antígona não está escolhendo a lei maior: está inventando um critério por via do qual, naquele caso, pode considerar a tradição, a religião e a família como a melhor escolha.

O amor e a piedade superam a política, não em virtude de uma inferioridade intrínseca da lei civil, mas porque, nas circunstâncias singulares da decisão, já não é possível efetuar uma comparação racional entre os valores em jogo. Antígona não diz que todos os inimigos devem ser sepultados; considera apenas a situação-limite em que o inimigo é o seu próprio irmão. Nesse caso, a força da situação singular é suficiente para abalar o alcance geral da lei política.

Situação-limite e insuficiência do valor
A situação-limite configura-se sempre pela insuficiência do valor, mas, repita-se, essa insuficiência não é intrínseca ao próprio valor em si mesmo; ela aparece quando a singularidade dramática da situação em que o sujeito está envolvido o leva a questionar o valor, e a ver que aquilo que o valor representa em termos de bem não coincide com a melhor escolha. Essa, embora relativa a circunstâncias singulares – e impossível de ser universalizada –, ainda assim triunfa sobre a universalidade intrínseca do valor que é desprezado. Isso nos indica que a universalidade de qualquer valor é medida no interior da esfera à qual pertence. Há momentos em que muitas vidas valem o sacrifício de algumas; há momentos em que o sacrifício de uma vida não se justifica pela salvação de muitas. Há aquele que morre pela fé; há aquele que duvida da fé em nome da vida. Não há como decidir a priori. Os valores, indispensáveis à vida ética, são, entretanto, instáveis.

Essa instabilidade não aparece enquanto, na dimensão social da vida, nossas ações se enquadram nas normas de modo mecânico, natural ou funcional. Os hábitos encarregam-se de fazer com que a moralidade social seja vivida segundo uma correspondência às obrigações cujo caráter imperativo não se imponha de modo mais pesado do que a rotina. Se observarmos com atenção o nosso comportamento cotidiano, verificaremos que quase todos os nossos gestos obedecem a alguma norma estabelecida independentemente de nós. Não nos inquietamos com isso, nem sentimos diminuída a nossa liberdade, porque as normas que governam a exterioridade são introjetadas de forma que não as sintamos como separadas de nós. Nesse sentido, a vida subjetiva e a vida social se recobrem, como se houvesse uma harmonia preestabelecida. Tal situação só é perturbada em duas ocasiões: quando as regras ferem explicitamente interesses a que não desejamos renunciar, e quando as leis externas contrapõem-se a valores que estariam arraigados numa dimensão mais profunda da subjetividade.

Começamos a inquietar-nos com as regras de trânsito quando elas atrapalham nossa mobilidade e a presteza com que deveríamos realizar nossos negócios. Mas podemos também nos insurgir contra leis que limitem a liberdade religiosa, política, artística, associativa, que disciplinem nossas opções de trabalho, de estudo etc. Por isso, os governos esforçam-se para reduzir os valores à dimensão dos interesses, para que, assim, nos acomodemos a limitações da liberdade como nos acomodamos às restrições convencionais das mãos de direção e das filas.

CC/Eugène Delacroix

LIBERDADE: no ideal republicano, ela deve guiar o povo, instaurando a justiça

Insurreição e garantia da integridade ética
Quando a diferença entre os limites de ordem sociopragmática estabelecidos por regras convencionais e as restrições que afetam valores mais fundamentais e constitutivos da existência se dilui, a sociedade está pronta para a experiência totalitária. Isso pode acontecer por via de uma acomodação gradual da liberdade a diversos tipos de controle social, e essa transição muitas vezes é sutil e imperceptível na dinâmica da vida coletiva.

Nas situações-limite, quando, de alguma forma, nos assustamos ou nos surpreendemos com o que teríamos de fazer, a sensibilidade que os hábitos e a rotina amorteceram por vezes se exalta. Percebemos que o que devemos fazer, no sentido ético da relação entre o dever e a liberdade, não coincide com o que nos é imposto, ainda que na forma impessoal da lei e da norma. O sujeito insurge-se, e essa contestação pode ultrapassar a subjetividade individual, expandindo-se na forma de um protesto contra a inadequação social e política da lei. Essa atitude legitima-se, porém, quando se percebe que a legalidade é usada para a imposição da arbitrariedade.

A permanência dessa tensão latente é garantia da integridade ética do indivíduo e da democracia real na sociedade.

(8) Comentários

  1. nessas instabilidades em q vivemos, nossas ações obedecem a normas já estabelecidade, uma vez introjetadas essas normas nao suprem nossas necessidades, nem sempre nos inquieta, nem diminui nossa liberdade, por outro lado se essas regras externas não existem, a situação fica pertubadora e nos deparamos com a inadequaçao q nos é imposto, com o q achamos ser “eticamente correto”

  2. Caro José Expedito, salve!

    Também pudera. Até compreender a essência do artigo, devo ter lido umas 17 vezes.

    Consegui compreendê-lo quando associei o filme “O Resgate do Soldado Ryan”. Em cada aula minhas angústias estão a diminuir.

    Bração e boa $orte,
    Quemel

  3. SóH….
    Fumar muitos baseados para intender tudo isso…
    esse negocio de criar um contrapeso para a liberdade
    é uma coisa fútil e complexa assim como a nossa tal democracia
    ao mesmo tempo
    há campos que se você for parar para pensar a fundo
    você desiste de ser um humano na.
    ENFIM: Na minha opinião Totalmente inútil.

  4. Em uma situação onde há conflito de valores, relativo ao sujeito, e ele ter de escolher entre dois valores, no qual abraçando um ele estará repudiando o outro, valor esse que outrora seria literalmente aceito, o sentimento de liberdade acaba sufocando o indivíduo numa decisão altamente dolorosa. Mas por outro lado se observamos nossa vida cotidiana veremos que a maioria dos nossos atos se submetem uma regra já estabelecida independentemente de nós.

  5. O livro de Barbara Freitag, Itinerários de Antígona, a questão da moralidade é muito esclarecedor sobre os vários pontos de vista da ação,principalmente da Antígona,
    A autora passa a tragédia pra vários filósofos, sociologos e psicólogos e termina com Habermas com sua Ética Discursiva.
    Excelente o livro. Tenho o meu há mais de 20 anos e é uma preciosidade. Infelizmente está esgotado faz tempo e é da ed Papírus, Tentei outra vez e não consegui. Uma pena.
    Na revista Tempo Brasileiro , 98: Jurgen Habermas: 60 anos, na p. 79 tem O conflito moral visto num banquete oferecido a habermas. Aí estão presentes os filósofos, psicólogos, sociólogos, habermas e vão discutindo o tema da Antígona, Muiito legal.
    Bom, era isso.
    Boa noite
    Elena Muller

  6. “Antígona” de Sófocles não opõe tão somente as leis da tradição religiosa às leis civis; mas os costumes ou as leis da tradição a um decreto de Creonte que estigmatizara Polinices como inimigo da “pólis”!
    Isso dá margem a algumas outras considerações éticas sobre a legitimidade da, em termos atuais, desobediência civil.
    Assim, a situação limite não se configura “sempre pela insuficiência do valor”, mas também, como o autor admite, afinal, quando o legal confronta o valor superior, a saber: o justo ou o legítimo!
    A “hybris” ou a ação desmedida de Creonte, se mostra nestes versos do diálogo com o seu filho, Hémon, noivo de Antígona:
    Creonte: Não foi crime acaso o que ela fez?
    Hémon: O que o povo diz em Tebas é que não.
    Creonte: E é a cidade que há de ditar as minhas leis?
    Hémon: Vês? Estás falando como uma criança.
    Creonte: Devo governar pela opinião dos outros?
    Hémon: Não há Estado algum que pertença a um só homem.
    Creonte: A cidade, então, não é de quem governa?
    Hémon: Talvez, se esse rei governasse um deserto.
    (Versos 732-739, trad. Guilherme de Almeida)

  7. Tudo isto me parece um paradoxo muito complexo onde só os espertos conseguem se dar bem…

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