Estado Milícia
Bolsonaro acena para apoiadores na rampa do Palácio do Planalto (Foto: Alan Santos/PR)
“Família. Filho da Puta. Puta que o Pariu. Filho de uma égua. Deus. Cacete. Foder. Fodido. Pátria. Putaria. Porra. Merda. Livre Mercado. Puta. Bosta. Estrume. Caralho. Brasil”.
Essa é apenas a forma que embala o conteúdo – muito mais abjeto que qualquer palavrão usado pelo presidente Jair Bolsonaro e seus ministros – do vídeo da reunião ministerial de 22 de abril de 2020.
O que é dito ali é pedagógico de outra questão: a dimensão sistematicamente descontrolada e contraditória do projeto neoliberal. Ou seja, Bolsonaro e seus ministros explicitam o que de mais monstruoso o neoliberalismo criou.
A começar pela relação entre violência, capitalismo ultraliberal e necropolítica. O liberalismo deu um bug e produziu uma versão distópica de si mesmo, colocando em crise os pactos éticos ocidentais, certo humanismo e as noções de justiça social. Sua face extremada aparece principalmente em países não centrais ou emergentes como Brasil.
É o que a teórica mexicana Sayak Valencia (Tijuana, 1980) chama de “capitalismo gore”, de sujeitos “endriagos”, monstruosos, descritos por Michel Foucault como aqueles que exercem poder nas sociedades e regimes de soberania. Sujeitos que tomam para si a tarefa de gerir a vida e a morte de seus súditos ou comandados.
O vídeo da reunião ministerial de Bolsonaro é o filme de um Brasil doente, uma espécie de “História da vergonha” escrita, filmada e registrada em tempo real.
A decisão do ministro Celso de Mello, decano do Supremo Tribunal Federal (STF), de abrir o sigilo do vídeo, traz algo ao mesmo tempo já visto e jamais visto.
O que é dito naquela reunião é muito mais grave que as alegadas interferências do presidente na Polícia Federal (PF), denúncia feita pelo ex-ministro da Justiça e ex-herói bolsonarista Sergio Moro, que ao atirar no presidente acertou o governo todo.
O que podemos assistir com uma lente de aumento que dói nos olhos é o modus operandi do governo, apresentado em suas entranhas, sem margem para dúvidas ou interpretações.
No “capitalismo gore”, segundo Valencia, a violência é utilizada, ao mesmo tempo, como tecnologia de controle e instrumento político. Demonstrações de poder e modus operandi.
Cães de aluguel e sujeitos “endriagos”
Tudo o que já sabíamos, sim! Mas também tudo o que precisamos saber, de forma escancarada e didática. Uma pedagogia obscena de “como funciona”, como se decide e como se opera o rebaixamento da democracia, que passa a funcionar sob um comando com viés autoritário, autocentrado e clientelista.
O vídeo parece um roteiro do filme Cães de aluguel (1992), de Quentin Tarantino. Uma reunião que mostra o acerto de contas brutal, alucinatório e insano de uma gangue arregimentada para proteger o chefe do clã, Jair Bolsonaro – bem como sua família, seus amigos, parceiros e aliados – custe o que custar.
Os sujeitos “endriagos” – essa figura de linguagem usada por Sayak Valencia em Capitalismo gore (Melusina, 2010) – são esses seres ultraviolentos, demolidores e distópicos que surgem em zonas de fronteiras, de transição, entre o capitalismo fordista e outros regimes emergentes. A figura do endriago encarna o sujeito colonialista e sem limite, que toma para si esse lugar do abjeto e do inimigo declarado. Bolsonaro incorpora esse personagem como ninguém: aquele que ama ser odiado e infundir o terror.
O capitão e os capatazes
Paranoico e narcísico, Bolsonaro rivaliza com seus próprios ministros, sentindo-se ameaçado pelos “melhores” ou pelos que têm autonomia: “Eu já falei: perde o ministério quem for elogiado pela Folha ou pelo Globo. Pelo Antagonista. O presidente leva porrada, mas o ministro é elogiado (…) Eu que escalei o time”, se autocelebra.
As falas exigem comportamentos mais agressivos na defesa cega do “chefe” e seu governo: “Tira a cabeça da toca, porra! Não é pra ficar dentro da toca o tempo todo não!”. Uma mensagem para o próprio Sergio Moro, entocado e ausente da cena política até romper com Bolsonaro.
O que vemos no vídeo é a figura quase sempre catatônica de Bolsonaro, o chefe que não lidera – nem orienta, mas ameaça –, com toda a sua masculinidade patriarcal, tóxica e despótica que vem de um Brasil boçal de senhores e seus capatazes.
A masculinidade violenta do presidente da República é base para a construção do nacional, da pátria e do patriarcado, já que as construções de gênero no contexto brasileiro estão intimamente relacionadas com a construção do Estado, como analisa Sayak Valencia.
Bolsonaro não age e nem fala como chefe de Estado, como mandatário que recebe poderes para praticar atos jurídicos ou administrar interesses dos brasileiros. Fala como capitão para subordinados em um quartel, tendo como horizonte o seu próprio mandato, a sua sobrevivência política e a dos seus.
Ministros são tratados como “recrutas” que pagam missões: “Se a missão for absurda, o ministro fala “ó, tchau, tô fora”, tá certo? Ou vai e fica puto, mas vai, pô!”. A lógica é a do mando.
No vídeo ou fora dele, o que vemos é um Bolsonaro em campanha permanente para a eleição de 2022. Nenhum outro tema o mobiliza a não ser a luta política e sua autopreservação: “Então é isso que eu apelo a vocês, pô. Essa preocupação. Acordem para a política e se exponham, afinal de contas o governo é um só. E se eu cair, cai todo mundo.”
A pandemia rompe a narrativa
A pandemia da Covid-19 e as mortes em série no Brasil não o interessam. O que se fala sobre o assunto é para desqualificar as medidas tomadas por governadores e prefeitos no enfrentamento ao vírus.
Em um momento no qual o país ruma para o pico de mortes – tendo passado de 23 mil no dia 25 de maio e com a curva crescendo de forma assustadora –, Bolsonaro reforça as narrativas negacionistas, o discurso anticientífico e tudo o que negue a tragicidade dos dados da pandemia no Brasil.
Não há empatia, não há urgência, não se demanda estratégias no campo da saúde. Toda a argumentação de Bolsonaro é um cálculo de disputa narrativa para sustentar sua aposta em uma “gripezinha”, abraçando negacionismos, fake news e teorias conspiratórias.
Um erro monumental que as milhares de covas coletivas, enterros sem velórios, pacientes entubados e os que morrem sem leito e sem atendimento vêm reafirmar.
Bolsonaro, acuado e desmentido por especialistas, ataca com cura milagrosa por cloroquina e negação da realidade. Mas a realidade da pandemia quebra o seu discurso.
A tímida intervenção do ex-ministro da Saúde, Nelson Teich, na reunião ministerial, foi para alertar que não haverá retomada econômica e nem segurança para sair do isolamento social se as mortes e a pandemia não forem controladas. “Saúde é fundamental”, disse. Foi demitido poucas semanas depois.
O vírus tem “ideologia”, acredita Bolsonaro
Para Bolsonaro, a letalidade do vírus não é um fato que atinge bilhões em todo o planeta. É uma “ideologia”, uma espécie de bioterrorismo chinês, mas que no Brasil seria direcionado por governadores e prefeitos contra ele. Nos grupos bolsonaristas de Whatsapp, negacionistas alimentam essa versão paranoide, injetando fake news diárias e infectando o corpo social.
“Que os caras querem é a nossa hemorroida! É a nossa liberdade! Isso é uma verdade. O que esses caras fizeram com o vírus, esse bosta desse governador de São Paulo, esse estrume do Rio de Janeiro, entre outros, é exatamente isso. Aproveitaram o vírus, tá um bosta de um prefeito lá de Manaus agora, abrindo covas coletivas. Um bosta. Que quem não conhece a história dele, procure conhecer (…) a ideologia dele e o que ele prega. (…) Tá aproveitando agora, um clima desse, pra levar o terror no Brasil. Né?”
O isolamento social é uma “ditadura”
Os sujeitos despóticos desse capitalismo gore utilizam práticas violentas para acenar com o cumprimento de demandas imediatistas diante da possibilidade de assegurar qualquer horizonte de futuro.
Contra “o terror” do vírus, Bolsonaro afirma que vai armar a população para que lute contra o isolamento social, uma medida tomada em todos os países e a única capaz de achatar a curva de contaminações e diminuir o ritmo das mortes.
O presidente da República diz que vai armar o povo contra os governadores e prefeitos que defendem suas populações, contra a “ditadura” de medidas de saúde testadas no mundo inteiro. Uma inversão patética em que Bolsonaro se torna o defensor da “liberdade” dos que colocam em risco a saúde de todos.
“O que esses filha de uma égua quer, ô Weintraub, é a nossa liberdade. (…) O povo tá dentro de casa. Por isso que eu quero, ministro da Justiça e ministro da Defesa, que o povo se arme! Que é a garantia que não vai ter um filho da puta aparecer pra impor uma ditadura aqui! Que é fácil impor uma ditadura! Facílimo! Um bosta de um prefeito faz um bosta de um decreto, algema, e deixa todo mundo dentro de casa. Se tivesse armado, ia pra rua. (…) Por que que eu tô armando o povo? Porque eu não quero uma ditadura!”
Milícia política: povo + exército contra as instituições
Uma narrativa que já circula em grupos bolsonaristas de Whatsapp vem sendo testada pelo presidente da República. É a proposta de um Estado Milícia ou uma “intervenção militar democrática” com um povo armado em sua defesa. Partindo do princípio de que “o poder emana do povo”, essa narrativa denuncia como ilegítimos e corruptos o Congresso, o STF e os demais poderes e mediadores da República, que devem ser eliminados para “sanear a democracia”. Falam do Brasil como “um território tomado” que precisa de povo e armas para sustentar o Estado. A narrativa, disseminada por meio de vídeos didáticos, desqualifica todas as instituições em nome de um poder “direto” do povo, de um “povo soberano”.
Diante da “implosão das bases da civilização ocidental”, os ideólogos da extrema-direita pregam – contra o “marxismo cultural que dominou as artes, a cultura, as universidades” – que esses inimigos e espaços devem ser “destruídos” e “tomados”. A Constituição de 1988 é considerada “socialista” e uma “intervenção militar com Bolsonaro” é vista como a forma mais rápida para “limpar” as instituições (com o Congresso e o STF no topo).
Mas “não é ditadura”, dizem. Apenas os “bandidos” seriam julgados pelo Supremo Tribunal Militar (STM) de forma “sumária e técnica”, com novas eleições para o legislativo e novas vagas para o STF. A proposta é “corrigir a Constituição de 1988” sobre temas como aborto, prisão em segunda instância, desarmamento civil etc. A narrativa se alastra para pedir “a legítima intervenção militar com Bolsonaro na porta dos quartéis”.
O Estado Milícia introduz mudanças a partir da mobilização de setores legais e ilegais, mas fundamentalmente pela construção de um exército bolsonarista de grupos paramilitares, milícias urbanas, eleitores armados em carreatas e protestos em frente a quartéis e ao Palácio do Planalto. Também seria formado por empresas de segurança privada, pela mobilização de igrejas, privatização de exércitos etc.
Justificar as mortes com comorbidades
Outra narrativa que Bolsonaro tem repetido na mídia – e que impõe que seja adotada – é a de que só estão morrendo de Covid-19 pessoas com comorbidades. E dá uma ordem: “Então vamos alertar a quem de direito, ao respectivo ministério, pode botar Covid-19, mas bota também que tinha fibrose (…) Tinha um montão de coisa lá, pra exatamente não levar o medo à população.”
Bolsonaro defende ainda que a contaminação se dá “em casa”, logo, é preciso suspender o isolamento social. São inversões perversas que apenas uma máquina política e de fake news sustenta, despejando tais narrativas no esgoto público de redes, sites e blogs, e também na boca de seus ministros. Um sistema de desinformação estatal que funciona por disparos e uso de bots, uma infopandemia com poder de contágio.
Delírio de onipotência
A reunião ministerial explicita a forma bolsonarista de operar, de construir narrativas para uma realidade paralela e alucinatória, atravessada por bravatas de prisões, punições, demissões, ameaças judiciais e por certo delírio de onipotência de um grupo que se vê acima das leis, do Congresso, da Justiça, do STF; acima de prefeitos e governadores, do próprio ministério da Saúde e acima de fatos.
Ouvimos do ministro Weintraub a explicitação do desprezo pelas instituições ao pedir para “colocar os vagabundos todos na cadeia, começando pelo STF”. As bravatas são o tom dos ministros que mimetizam o comportamento caricatural do “chefe”, que não exige e nem demanda mais eficiência ou soluções e estratégias para questões urgentes como o enfrentamento da pandemia e a morte assustadora e trágica de brasileiros.
Todos os poderes são ameaçados e desqualificados em nome de uma forma de governo que se resume a “uma canetada do presidente”. Uma canetada com “parecer”, pois nas palavras do ministro do Turismo, Ricardo Salles, “sem parecer também não tem caneta, porque dar uma canetada sem parecer é cana”.
Ou seja, o governo Bolsonaro quer gerir o Brasil passando por cima de todos os poderes e buscando “pareceres” que justifiquem suas ações mais hediondas.
O cheiro do povo
Não se trata do Brasil, a pandemia é um assunto lateral, só se fala dela para negá-la. Não se fala de brasileiros, mas do “povo” que Bolsonaro quer armar para defendê-lo, povo que esbraveja nas aglomerações em frente ao Palácio do Planalto pedindo ditadura.
A base zumbi que Bolsonaro afaga dizendo que quer “sentir o cheiro do povo” nas ruas. O povo que sai em carreatas ou aglomerações para afrontar as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), o povo que agride agentes de saúde e propaga a cura milagrosa por cloroquina.
A tragédia é uma oportunidade
Os ministros de Bolsonaro também veem oportunidades políticas na tragédia do coronavírus. Ricardo Salles fala em “aproveitar a oportunidade” de uma imprensa ocupada com a Covid para passar a “boiada”, todas as leis que reduzem a proteção ao meio ambiente e contemplam grileiros, desmatadores e madeireiros.
A ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves, propõe usar os direitos humanos para prender governadores e prefeitos que controlam o isolamento social. E afirma que “a maior violação de direitos humanos da história do Brasil nos últimos trinta anos está acontecendo neste momento”.
Que violações? Damares fala de idosos e mulheres “algemados”, de pastores pagando multa por abrir templos, contrariar o isolamento social e colocar a população em risco. “Governadores e prefeitos responderão processos e nós vamos pedir inclusive a prisão de governadores e prefeitos.”
Um complô global
A ministra também funciona no modo delirante do presidente da República. Conta que foi a Roraima e à Amazônia investigar denúncias: “E por que nós fomos lá, presidente? Porque nós recebemos a notícia que haveria contaminação criminosa em Roraima e Amazônia, de propósito, em índios, pra dizimar aldeias e povos inteiro pra colocar nas costas do presidente Bolsonaro”.
Arma na cabeça: a economia ou a vida?
A reunião ministerial revelada pelo vídeo foi convocada para debater um Plano Pró-Brasil – ou um “Plano Marshall” bolsonarista para a economia – sob a coordenação do general Braga Netto, chefe da Casa Civil. O plano é detonado pelo ministro Paulo Guedes por ser parecido demais com o que Lula e Dilma propuseram com o Plano de Aceleração do Crescimento (PAC): o Estado intervir para recuperar a economia, investindo recursos públicos em obras e infraestrutura.
No Plano Marshall original, os Estados Unidos financiaram a reconstrução de países aliados após a crise econômica da Segunda Guerra Mundial. Quem investiria no Brasil de Bolsonaro, um governo desqualificado internacionalmente?
Paulo Guedes e o ministério da Economia seguem apostando no pacote de reformas e na atração de investidores privados. Uma “saída” neoliberal ainda mais perversa para uma crise que coloca todo o sistema privatista em xeque e aponta para outros mundos e possibilidades.
O vírus e o social
O Brasil sofrerá com a crise na saúde, social, humanitária e econômica durante e pós-pandemia, uma crise cuja gravidade ainda não estimamos. Crise que já pode ser vista nas ruas, na mídia, nos relatos de acirramento da vulnerabilidade, da desigualdade com o sofrimento de milhões de brasileiros.
Ao mesmo tempo vemos emergir redes de solidariedade nas favelas, nas periferias, no campo cultural, entre os fazedores e batalhadores dos territórios, redes de artistas do mainstream e de empresários. Uma percepção de que não há saídas individuais.
O coronavírus derrubou o discurso do empreendedorismo sem lastro em políticas públicas. Cai por terra a ideia de que somos empreendedores de nós mesmos. Não sobrevivemos isolados e o cenário de crise e de urgências na pandemia expõe as fraturas. O vírus escancara a necessidade dos Estados, de bens comuns, nossa co-dependência e sobrevivência em rede.
Novos sujeitos políticos
A pandemia fez emergir novos sujeitos políticos. Como os agentes de saúde, as enfermeiras e médicos, vimos ganhar visibilidade o trabalho de entregadores, atendentes, uberizados, autônomos que se organizam e emergem como força política em busca de direitos.
Teremos que pensar na virtualização da vida e no trabalho remoto como novo campo de incertezas e vulnerabilidade, mas também como potência.
Parodiando Bolsonaro – que assume que vai sim interferir “onde for preciso” para não “foder a minha família toda, de sacanagem, ou amigos meu” –, por que não podemos também interferir onde for preciso, respeitando a democracia, para não sucumbirmos a um governo que nos leva para a morte individual e em sociedade?
O Estado Milícia é a confissão de que o Estado oficial – desidratado e desmontado – não consegue mais dar conta do estado de bem estar social, e que começa a trabalhar com as máfias corporativas e empresariais, organizações no limite da legalidade que professam os valores das relações familiares e da lealdade acima do bem comum. Reivindicam e tomam posse de um Estado artificialmente falido e induzido ao colapso. O que o Estado não dá, o mercado, as corporações, o ultraliberalismo promete e provê, criando um contra-Estado ou um Estado alternativo e de exceção.
O vídeo revelado só reforça a convicção que a saída para o Brasil é a negação de todo esse ideário bolsonarista, paranoico-delirante, ultraliberal em sua forma obscena, porn, perversa, explícita. Um hiperindividualismo tóxico que fracassou. Esse governo é um dos seus efeitos colaterais. Está tudo aí explícito pra quem quiser ver.
Ivana Bentes é pesquisadora do Programa de Pós Graduação da Escola de Comunicação da UFRJ