“O trabalho liberta”: o apelo à economia em detrimento da vida

“O trabalho liberta”: o apelo à economia em detrimento da vida
Bolsonaro vai a Taguatinga (DF) e cria aglomeração neste domingo (29) (Foto: Reprodução)

 

Até dezembro do ano passado a humanidade caminhava para o aprofundamento da transferência da crise econômica de 2008 para os trabalhadores, bem como para a destruição dos espaços multilaterais de organização da economia e da sociedade – erguidos com o pós-guerra -,  para a utilização de sanções e embargos unilaterais como forma de gestão do mundo pela sua maior potência e, por fim, para a ruína, no plano nacional, do pacto constitucional de 1988.

O golpe de 2016 e a posterior e consequente vitória de Bolsonaro representam os marcos iniciais da tentativa de implosão do acerto de 1988. As consequências são o desmonte dos programas sociais – muitos dos quais estabelecidos desde FHC – e do próprio organograma de estrutura de funcionamento estatal, além de métodos autoritários de governança e de relação com outros poderes e o desrespeito às leis e aos poderes estabelecidos.

Essa nova forma de gerir o Estado foi sustentada com apoio das elites econômicas nacionais, muitas delas em razão do programa econômico, outras, no entanto, inclusive com total afinamento ao chamado discurso do ódio. Assim, a elite brasileira apoiou e articulou a implosão do pacto social de 1988 em todo o seu conteúdo, e também naquilo que ela tem de mais abjeto: o estabelecimento da necropolítica como ação central de governo.

Para essa elite, não fazia diferença se o consórcio que elegeu Bolsonaro defendesse abertamente o extermínio de adversários políticos como método, pregasse a tortura como política estatal, subvertesse qualquer hierarquia – fosse ela legal ou estrutural -, atacasse o corpo da mulher, do índio, do negro e do pobre, desde que o seu braço econômico asfixiasse os trabalhadores com as reformas econômicas e destruísse o pouco anteparo mínimo legal e social de que dispunham.

O ataque à política como forma de resolução de conflitos e busca de consensos começou um pouco antes e se aprofundou com a Operação Lava-Lato: Bolsonaro não apenas foi beneficiário direto desse ataque como o fez avançar – primeiro trabalhando com as chamadas bancadas temáticas, depois pregando abertamente contra o Congresso, erigindo-o como inimigo a ser destruído.

Da mesma forma, o direito e o Poder Judiciário. A instrumentalização de ambos por setores autoritários contou com o beneplácito dos grandes meios de comunicação e das elites financeiras, deixando Bolsonaro – que canalizou anseios forjados por uma “limpeza” ética na política – como beneficiário. Mesmo com toda essa instrumentalização, inclusive nas cortes superiores e no Supremo Tribunal, o envolvimento do presidente e de sua família em claras ações de corrupção e a tentativa de se colocar freios em arroubos autoritários do Executivo, fez com que Bolsonaro passasse a pregar abertamente o fim da Suprema Corte.

O direito, ainda que instrumentalizado pelo autoritarismo, termina por ser um entrave ao projeto de poder autoritário, não apenas pelas leis e a Constituição, como pela perda de controle em sua produção, uma vez que se tornou inimigo direto do processo legislativo.

O projeto econômico, menina dos olhos das elites nacionais, começou, antes mesmo da crise da pandemia, dar sinais de completo fracasso.

Até dezembro, era esse o rumo que as coisas tomavam. Uma elite complacente e tolerante com o autoritário projeto de poder em curso, ainda que com pequenas crises e tensionamentos. Eis que o mundo, desde dezembro, entrou na maior crise sanitária e econômica em 100 anos. Essa crise alterou e vem alterando o cenário mundial, com impactos graves no plano nacional.

A crise econômica e sanitária pode representar no Brasil a ruína do consórcio bolsonarista ou a sua reprogramação para termos ainda mais autoritários. É justamente esse embate que está no centro do mais recente enfrentamento entre Bolsonaro, governadores e parte da mídia. Na mesa, a vida de milhões de brasileiros.

O projeto de poder materializado na figura do presidente tem repulsa a qualquer regulação ou controle. Deste modo, o direito ou as recomendações sanitárias sofrem o ataque incessante do poder autoritário pelo simples fato de impor limites. Bolsonaro tinha duas possibilidades à sua frente. A primeira, dar uma guinada no projeto econômico, flertar com matrizes keynesianas e liderar um amplo processo de gestão da crise, com o apoio de governadores e da própria mídia. Ampliaria sua base de apoio, com o custo de sepultar seus principais apoiadores empresariais e deixar um pouco de lado suas frações mais ideologizadas, tendo um cenário de longos anos de crise econômica para enfrentar.

A outra opção, a escolhida, implicava em não aceitar qualquer regulação de ordem sanitária e da ciência, atacar governadores, grupos de comunicação e quem se colocasse à sua frente; manter uma cruel política econômica, animar suas bases mais fascistizadas e criar um inimigo pra jogar a responsabilidade do fracasso econômico da sua proposta que, antes mesmo da pandemia, já se apresentava como inexorável. Milhares de vidas humanas são o grave custo dessa opção. Não houve nem sequer hesitação.

Com isso, o projeto de poder bolsonarista investe agora não mais contra a vida de inimigos políticos, mulheres, negros, índios e pobres, mas contra a vida de todos, indiscriminadamente. “Infelizmente algumas mortes terão, paciência, acontece, e vamos tocar o barco”, sintetizou o presidente. O apelo ao emprego e à economia em detrimento da  vida não é novo na história, nazistas e fascistas souberam como manipular corações e mentes ao custo de milhões de vidas humanas.

O apoio de parte das elites econômicas à proposta de extermínio de vidas humanas – o darwinismo social, como bem lembrou o jurista Silvio de Almeida em entrevista ao site Tutameia – não advém de um possível desarranjo de saúde mental de Bolsonaro, mas antes de tudo é um cálculo frio e racional que visa a consolidação do seu poder, sem as amarras do pacto de 1988. “O trabalho liberta”: não é essa placa que dava as boas-vindas nos campos de concentração do regime nazista?

O Brasil e o mundo não serão mais os mesmos após a pandemia, nós também não. Nem alguns governadores e intelectuais liberais. Já Bolsonaro continua sendo o mesmo que queria explodir bombas nos quartéis de seus companheiros e que foi expulso do Exército; que pregava e prega a morte das populações indígenas, que preferia ver o filho morto a homossexual, que estimula a distribuição de armas e o aumento das mortes no trânsito, o assassinato da população mais pobre, a destruição da natureza e o estupro de mulheres.

O despertar e o choque que ele tem causado em setores que antes o apoiavam advém menos de uma certa conversão ética-filosófica a caminho de Damasco e mais de um instinto de preservação da própria vida. E isso diz muito sobre o tamanho do precipício em que nos encontramos.

Patrick Mariano é advogado criminalista, mestre em direito pela UnB e integrante da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares – RENAP


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