Esse tal de cacaso

Esse tal de cacaso

Armando Freitas Filho relembra Cacaso. Texto e desenho inéditos do poeta mineiro

 

Nunca fui amigo de Cacaso. Conhecia-o de debates sobre poesia, convidados que éramos por Heloisa Buarque de Hollanda (nossa Helô do coração) para bater boca com os alunos na antiga Faculdade de Letras, da Avenida Chile, no Rio, e, invariavelmente, as posições eram opostas, ou, pelo menos, diferentes. Talvez por isto mesmo, ele foi, desde o começo dos anos de 1970 até a sua morte, com quem mais discuti, em público, sobre os caminhos e descaminhos da poesia brasileira. Me lembro que em uma das últimas vezes, na PUC, a convite de Celia Pedrosa, ele me disse: “Armando, precisamos combinar outros pegas, pois estes já estão ficando manjados.” Apesar de todas as discordâncias, jamais fomos ásperos um com o outro. Creio que a mineirice dele e minha carioquice foram antídotos poderosos contra a zanga sem perdão. Depois, como brigar, se freqüentávamos a mesma praia, tínhamos um monte de amigos (e amigas também) comuns?

Além disso, o que pode ter colaborado para que as desavenças não azedassem foi que, no fundo, nossa militância era, por natureza, bem tolerante com o adversário, em nenhum momento percebido como inimigo, já que nossas pendências poéticas não se caracterizavam, digamos, como pregações fundamentalistas, mas sim, como uma simples, se bem que importante, questão de opinião. Mais: nem em mim nem nele, embora sua ambição teórica fosse maior que a minha, existia a pretensão de que só valia o que estava escrito pela nossa mão. Em suma: discutir assim era bom e, falo por mim, abria os olhos para duvidar das nossas certezas, o que, sem exagero, é saudável.

A morte precoce dele e de alguns companheiros de geração (Ana Cristina, Tite de Lemos, Torquato Neto, Guilherme Mandaro, Waly Salomão, Sebastião Uchoa Leite) é tristeza constante e irreparável. A presença de Cacaso – com a barba por fazer, antecipando o look atual, a bolsa de couro a tiracolo, as sandálias, usadas com meias grossas – é inesquecível. De fato, nunca fui seu amigo: imagina se fosse.

Armando Freitas Filho
é poeta, crítico e ensaísta. Autor de Duplo Cego (Nova Fronteira, 1997) e Fio Terra
(Nova Fronteira, 2000), entre outras obras.

O poeta Antonio Carlos Ferreira de Brito nasceu na cidade de Uberaba (MG), em 1944, e morreu aos 43 anos no Rio de Janeiro. Cacaso, como é chamado, participou de movimentos estudantis contra o regime militar e é considerado o tutor da “poesia marginal” brasileira, tendência que contestava os poetas concretos e buscava apenas falar de poesia e fazer poemas.

As principais publicações de Cacaso foram A Palavra Cerzida (1967), Grupo escolar (1974), Beijo na boca (1975), Segunda classe (1975), Na corda bamba (1978) e Mar de mineiro (1982).

O texto inédito publicado nesse dossiê é de 1981 e foi cedido pelo filho de Cacaso, Pedro Landim. Faz parte dos Cadernos/Diários do poeta e foi escrito durante as visitas que Cacaso fez ao pai em sua fazenda em Mato Grosso do Sul.

Prosa Poética Inédito de Cacaso

Tenho uma amiga que lê Nietzsche como se bebesse chope. Ambos, penso eu, saem na urina. O Carlos José bebe um tal vinho que tem por aqui, como se lesse a Sagrada Escritura. São sutilezas da ilusão e do pragmatismo. O dia clareou menos frio, o sol está bem quente, estou melhor da garganta. E aqui no pomar os passarinhos dão um concerto, se não me engano, em si bemol. Ao mesmo tempo maior e menor. Uma peça que não foi ensaiada e jamais será repetida. Portanto, presto muita atenção. Há momentos de profundo silêncio, em que o esquadrão avançado cede lugar a um eco remotíssimo, algum passarinho que cantou ontem, e só agora chega por aqui uma lembrança do canto, vaga, inacessível. Um canto de passarinho como o brilho da estrela cadente. Uma reminiscência. Súbito a estridência próxima toma vulto; os periquitos abrem uma discussão e tomam o partido da controvérsia; um bando de pássaros pretos comemora algo lá deles a que não tive acesso; e sabiás, e bem-te-vis, e um galo rouco desafinado, tucanos, maritacas, anúns, tizius. Pedro passou por aqui agora pra mostrar o ovo que achou. Ele descobriu um ninho de galinha onde diariamente acha um ovo. Faz exploração pelo pomar, pelos arredores. Joga laranja nos patos. Há quem prefira comer o pato com laranja. Mas o que seria do amarelo se todos gostassem do rosa-choque? Quando vejo um passarinho e não sei como se chama mesmo ouvindo o seu canto, sinto que algo me frustra. Sinto uma necessidade, não sei se natural ou antinatural, de ligar o nome à pessoa. Passou um por aqui agora, num vôo rasante, de cima pra baixo, enviesado e já preparando o pouso, de tamanho mais pra pequeno, todo azul, mas de muitos azuis, sendo as asas mais escuras que o peito, um primor de graça e senso de medidas. Mas como chamá-lo? Como é o nome dele? Há pessoas que conhecem os nomes dos passarinhos, sem nunca os terem visto. Outros convivem com os passarinhos sem nunca se indagar se foram ou não batizados. Eu estou no caso intermédio, e certamente o mais triste: sei o nome de muito passarinho que jamais vi, vi muito passarinho que não sei o nome. Novamente a teoria binária emergindo por trás das coisas. Sei, por exemplo, que existe um passarinho que atende pelo vulgo de João Pires. Ora, eu teria muito prazer em conhecê-lo pessoalmente.

– “João Pires, às suas ordens”
–“Antônio Carlos, para servi-lo…”
20.07.81

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