Espetáculo, percepção e sensação
Teatro Oficina (Foto: Bob Sousa)
A paisagem, à volta de mim, era de uma grandeza e de uma nobreza irresistíveis.
Decerto alguma coisa dela naquele momento se transmitiu à minha alma.
Charles Baudelaire
A leitura de dois importantes títulos de teoria crítica convida à reflexão a respeito de como o teatro contemporâneo tem lidado com as categorias da percepção e da sensação, que levam inevitavelmente ao problema da subjetividade. Em Suspensões da percepção: atenção, espetáculo e cultura moderna, Jonathan Crary, professor de arte moderna e teoria da arte na Universidade de Columbia, trata das alterações significativas no regime de percepção criado pela sociedade industrial do século 19 cujos impactos se estendem aos dias de hoje. Já em Sociedade excitada: filosofia da sensação, Christoph Türcke, professor de filosofia na Hochschulefür Grafikund Buchkunst, em Leipzig, recupera a história do conceito de sensação para analisar como o mundo moderno tem caminhado a passos largos rumo à instauração de uma sociedade cada vez mais excitada, capaz de transformar todo e qualquer evento em um feixe de estímulos espetaculares e sensacionais.
Detendo-se sobre o fenômeno da urbanização acelerada vivido no Ottocento como uma conquista do capitalismo industrial, Crary estuda o problema da atenção e da subjetividade modernas a partir da relação que se dá entre percepção, sensibilidade, pesquisa científica e experiência estética. As ideias apresentadas pelo autor podem sair da esfera do século de Baudelaire e ser examinadas à luz dos dias atuais, nos quais a cultura do espetáculo tem caráter marcadamente disciplinador. “O que importa para o poder institucional, desde o final do século 19”, afirma o autor, “é apenas que a percepção funcione de tal modo a garantir que um sujeito seja produtivo, controlável e previsível, que seja adaptável e capaz de integrar-se socialmente”.
Türcke analisa o processo de estetização espetacular vivido pelo capitalismo contemporâneo como sua “pele” e não propriamente como seu “envoltório”. Afirma o autor que é chegado o momento de se falar de uma sociedade da sensação, advertindo que “quando a palavra passou do latim para as línguas nacionais europeias, representava bem genericamente a primazia fisiológica do sentimento ou da percepção – sem nenhuma conotação espetacular. E o que é mais notável é que, justamente a alta pressão noticiosa do presente, que quase automaticamente associa ‘sensação’ a ‘causar uma sensação’, não apenas se sobrepõe ao sentido fisiológico antigo de sensação, mas também o movimenta de uma nova maneira. Ou seja, se tudo o que não está em condições de causar uma sensação tende a desaparecer sob o fluxo de informações, praticamente não sendo mais percebido, então isso quer dizer, inversamente, que o rumo vai na direção de que apenas o que causa uma sensação é percebido”.
Na esfera da produção teatral concebida hoje em escala industrial nos grandes centros urbanos (podemos sem dúvida alguma falar, no caso da cidade de São Paulo, de uma “linha de montagem” tanto de musicais apresentados segundo modelos importados como de comédias baseadas na exacerbação da histrionice de seus atores, tratados quase sempre, em virtude dessa mera exaltação histriônica, como grandes intérpretes), boa parte dos espetáculos não tem outra função senão a de disciplinar a atenção do espectador, submetendo-o a um estado de contemplação ou de fascinação por meio dos quais os produtos culturais contemporâneos procuram desconectar os sujeitos de sua interioridade significativa, oferecendo-lhes em troca uma rede de sinais firmada somente nas malhas da comunicação fática e do consumo. Algo como, “faço parte de um mundo espetaculoso e sensacional, logo sou”.
Por se tratar de uma arte primária, baseada na presença viva de um ator que estabelece com o espectador uma relação de mútuo convívio, o teatro pode nadar contra a corrente das dóceis percepções ou das sensações excitadas a que estão alternadamente submetidas as massas na cultura moderna. Reagindo a uma sociedade que de modo vertiginoso atualiza seu arsenal técnico e cria sub-repticiamente uma rede complexa de mecanismos tecno institucionais que parecem tão inevitáveis quanto inofensivos, o teatro pode proporcionar aquilo que podemos chamar de “o artesanato do espírito”, desdobrado seja nos fenômenos de consciência, seja na subjetividade emancipadora.