Escola e pandemia: proteger a vida para garantir o direito à educação

Escola e pandemia: proteger a vida para garantir o direito à educação
As escolas terão grandes desafios para garantir convivência segura entre os estudantes (Foto: Amanda Perobelli/Reuters)

 

Desde março de 2020, quando as aulas presenciais nas escolas públicas e privadas foram suspensas por conta da pandemia, o ensino remoto tornou-se a realidade de milhões de alunos e alunas da educação básica e superior. Tornou-se, também, a razão da exclusão de outros tantos.

Embora a situação da pandemia no Brasil esteja muito mais grave do que há um ano, o debate sobre a retomada das aulas de forma presencial ou híbrida nunca esteve tão forte. A discussão abrange posições contrárias e favoráveis, em uma polarização que parece alheia à escalada do contágio e das mortes, assim como a realidade estrutural das escolas sobretudo públicas. A polêmica sobre a reabertura das escolas é uma falsa questão, tendo em vista que a garantia do direito à educação depende, em larga medida, do ensino presencial.

Os estudiosos, ativistas da causa e profissionais da área, principalmente as educadoras e educadores, sabem da importância da infraestrutura das escolas para garantir não apenas o direito à educação, mas outros tantos direitos sociais – assim como seus múltiplos significados, em especial para os estudantes das redes públicas. Esses atores sabem, ainda, que qualquer debate sobre o Brasil não pode ser feito de forma simplificada, tendo em vista as desigualdades estruturais do nosso país e as condições adversas das redes e escolas públicas.

O Brasil tem mais de 210 milhões de habitantes, desigualdades históricas abismais e um sistema de educação básica com cerca de 48 milhões de estudantes. Dados do Censo da Educação Básica de 2020 mostram que o país possui quase 180 mil escolas, sendo que 138.487 delas estão na rede pública. Estas, são responsáveis por 80,5% de toda a oferta, além de responderem por 80% das matrículas urbanas e a 98% da educação oferecida no campo. As redes municipais, que possuem as condições mais desfavoráveis, são responsáveis por 60% da matrícula de educação básica pública, 68,1% dos estudantes dos anos iniciais do ensino fundamental e 72,9% da educação infantil.

Cerca de 70% das escolas de educação básica estão localizadas em áreas urbanas. As escolas situadas nas áreas rurais (30%) são responsáveis pelo atendimento de um número superior a cinco milhões de estudantes, sendo que 83% da oferta rural é feita pelas redes municipais.

Sabidamente mais onerosa e com condições de oferta mais complexas, 76% das matrículas da educação do campo estão concentradas no Norte e Nordeste do país, as duas regiões em que o acesso a saneamento básico, principalmente no meio rural, é mais baixo. Do total de estudantes matriculados na educação básica pública na região Norte, 23% estão nas escolas rurais, assim como 20,5% do total de matrículas da região Nordeste.

Compreender a necessidade de medidas de distanciamento social dos coleguinhas e cumprir protocolos de segurança pode se tornar mais difícil para as crianças menores, sobretudo após um ano longe do ambiente escolar. As escolas terão grandes desafios para garantir convivência segura entre os mais de 22 milhões de estudantes entre zero e dez anos de idade – entre eles cerca de oito milhões têm até cinco anos. O desafio não será menor com os quase 20 milhões de estudantes entre 11 e 17 anos, dos quais cerca de 12 milhões têm entre 11 e 14 anos.

Nesse cenário, parece-me que a questão central não é a retomada ou não das aulas presenciais, mas sim se temos as condições para um retorno seguro, que não coloque em risco a saúde e a vida das comunidades escolar e local. Responder a essa questão requer avaliar, no mínimo, elementos essenciais no que se refere a questões sanitárias, pedagógicas e de infraestrutura.

 

Há muitas divergências sobre o
quanto as escolas podem ou não
ser foco de disseminação do
coronavírus. Mas pelo menos no
campo do discurso há uma unani-
midade neste debate: é preciso
garantir as condições para o
cumprimento das recomendações
sanitárias como forma de garantir
saúde e preservar a vida.

 

 

São condições essenciais para a retomada a higienização das mãos com água potável e sabão, o uso de álcool 70%, de equipamentos de proteção individual, a sanitização dos ambientes de forma constante e sistemática, a boa ventilação das salas de aula, prioridade a atividades em áreas abertas, redução de alunos por turma, manutenção do distanciamento social e realização de testagem e rastreamento de casos e contágio.

Diante dessas recomendações e condições mínimas, é imprescindível que, para além das condições de transporte e deslocamento, analisemos as condições das escolas, nos diferentes entes da federação, regiões e redes de ensino do país, e o quanto elas estão aptas a oferecer a proteção essencial.

Segundo dados do relatório Education at a Glance 2020 da OCDE, a média de alunos por turma no Brasil é de 24 estudantes, número maior que nos demais países da Organização, que chega a 21 pessoas por turma. Esses dados sofrem variações por região, área urbana e rural, redes públicas e privada. Nas escolas públicas urbanas, com exceção da região Sul, a média fica acima de 25 alunos por turma, sendo que nas regiões Norte e Nordeste este número sobe para 27 e 26,2 respectivamente. Já no Sudeste e Centro-Oeste, ficam em 25,7 e 25,5. As escolas rurais de todas as regiões apresentam médias abaixo de 20 alunos por turma, mas lembremos que são as áreas com as piores condições de saneamento básico. A reabertura de escolas no contexto da pandemia, de acordo com o relatório, depende da capacidade de manter uma distância segura de um a dois metros, e países com turmas menores podem ter mais facilidade para cumprir as novas diretrizes de distanciamento social.

A priorização de atividades em áreas abertas é um outro elemento importante no desenvolvimento de atividades educativas em tempos de pandemia. A necessária exigência do distanciamento faz com que a escola para a qual as crianças estão retornando se torne um espaço até então desconhecido por elas, com rotinas completamente diferentes e certamente estressantes.

Essa escola para qual as crianças estão voltando não têm mais o sentar junto com o ou a coleguinha. Não é permitido o abraço, andar de mãos dadas, dormir próximos, dividir os brinquedos ou mesmo o lanche. Essa “nova” escola tem distanciamento, cada um no seu quadrado, mesas distanciadas, espaço delimitado e profissionais da educação apreensivos, que precisam controlar cada movimento dentro e fora da sala de aula.

A existência de áreas abertas é importante não só para a diminuição do contágio, mas também por serem espaços em que as crianças terão mais liberdade de movimentação e interação. As áreas livres, como pátios, áreas verdes, parques e quadras esportivas, são ventilados e podem se tornar espaços alternativos para o atendimento de um maior número de estudantes, como também para circulação e alívio do estresse causado pelo controle necessário feito nos ambientes fechados. Esses espaços sempre foram considerados fundamentais para o desenvolvimento dos e das estudantes – e agora, mais do que nunca, são essenciais para a manutenção da saúde física e psíquica da comunidade escolar.

Dados do Censo da Educação Básica de 2020, no entanto, apontam que nas instituições das redes municipais, que são responsáveis pela oferta de 73% das matrículas na educação infantil, apenas 29.9% das escola possuem áreas verdes; 34,2% possuem parque infantil e 67,8% possuem pátio (coberto ou descoberto). No Ensino Fundamental, as escolas municipais respondem a 57% das quase 27 milhões de matrículas. Destas, apenas 16,2% contam com parques infantis, 64,7% com pátio e 31,4% possuem quadras de esporte.

Além disso, a existência de água potável nas escolas é condição imprescindível para um retorno seguro. A partir dos dados sobre acesso a saneamento básico no Brasil, a Unicef classificou a condição do país como alarmante. Segundo dados do Programa Conjunto de Monitoramento da OMS e da UNICEF para Saneamento e Higiene (JMP), 15 milhões de pessoas que vivem em áreas urbanas, no Brasil, não têm acesso à água gerenciada de forma segura. Dos que vivem em áreas rurais, 25 milhões têm acesso apenas ao nível básico desses serviços, sendo que 2,3 milhões usam fontes de água não seguras para consumo humano e higiene pessoal e doméstica.

Metade da população brasileira, cerca de 100 milhões de pessoas, não possui acesso ao esgotamento sanitário seguro. Desse total, 21,6 milhões usam instalações sanitárias não adequadas e 2,3 milhões defecam a céu aberto. As regiões Norte e Nordeste são as mais afetadas, assim como os segmentos de baixa renda nas aldeias indígenas e nas periferias urbanas, assentamentos informais e favelas. São também essas localidades que possuem acesso mais limitado a serviços de saúde.

 

As estimativas do JMP são de
que 39% das escolas no Brasil
não dispõem de estruturas
básicas para lavagem das mãos,
situação que se agrava de acordo
com as regiões.

 

 

A diferença também atinge as redes públicas e privadas de ensino, já que esta possui mais que o dobro da cobertura das escolas públicas para esses serviços.

Os dados apontam que apenas 19% das escolas públicas do Estado do Amazonas, por exemplo, têm acesso a abastecimento de água. Em alguns estados do Norte, menos de 10% das escolas têm acesso a serviços públicos de esgotamento. Apenas 9%, 6% e 5% das escolas públicas dos Estados do Acre, Rondônia e Amapá, respectivamente, têm acesso à rede pública de esgoto.

Os dados do Censo Escolar de 2019  mostram que há no país 10 mil escolas públicas sem água potável, segundo matéria do jornal O Globo. Essas escolas eram responsáveis pelo atendimento de cerca de 2 milhões de estudantes. Ainda de acordo com os dados, as escolas das redes municipais estavam em piores condições, pois só 65% possuíam água encanada, enquanto 84% das escolas estaduais tinham o mesmo serviço. Nas redes municipais e estaduais, 18% e 14% das instituições, respectivamente, funcionavam com água proveniente de poços artesianos, de cacimba (13% e 5%) e de rio (6% e 2%).  Nesse contexto, 3% das escolas municipais e 1% das estaduais não tinham qualquer acesso a água.

A Fiocruz afirma que a testagem é, do ponto de vista epidemiológico, uma das ferramentas mais importantes para conter, desacelerar e reduzir a propagação da Covid-19. O Brasil, no entanto, apresenta baixo índice de testagem, com média de 11,3 testes do tipo RT-PCR para detectar a Covid-19 a cada 100 mil habitantes, o que contribui para o avanço da doença, o aumento de casos graves e de óbitos.

Assim, a retomada das aulas presenciais não pode ser uma decisão tomada a partir da opinião de A ou B, mas da garantia de que as escolas reabertas, com a presença dos estudantes e seus profissionais, sejam espaço de preservação da vida, e não de ameaça a ela. Os dados apresentados apontam a complexidade, as desigualdades, disparidades e ausência de condições nas escolas públicas do país.

Retomar as aulas presenciais requer um planejamento intersetorial, transparente e democrático, levando em consideração as múltiplas realidades, com a apresentação das garantias necessárias para a segurança de todos os envolvidos.

Não é possível simplificar o debate, trazer argumentos de outros países e comparar realidades incomparáveis. Sim, a escola é essencial e a retomada das aulas presenciais é imprescindível para a garantia do direito à educação, mas só é capaz de aprender quem está vivo e saudável. Para além da retórica, reabrir as escolas requer medidas para proteção da vida por meio de investimento para melhoria das condições sanitárias, insumos pedagógicos, testagem e controle da pandemia, além de vacinação para imunização da maioria da população.

Catarina de Almeida Santos é doutora em educação pela USP, pós-doutora pela Unicamp, professora Adjunta da Faculdade de Educação da UnB, dirigente da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.


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