Escadas e contratempos

Escadas e contratempos

Christian Dunker

A recente exposição de Sergio Fingermann (Partes do Todo, Dan Galeria) tem um único e múltiplo objeto: escadas. Recortes ou partes de escadas, ângulos incompletos que formam sombras e caminhos que nos convidam a completar o conjunto. Às vezes são apenas dois degraus, vistos de uma posição improvável, ou a metade de um contrapiso que vai e outra que vem, sem que tenhamos disponível ao olhar o ponto de junção. Esse pequeno recuo de perspectiva funciona como uma provocação que nos apresenta o caráter trivial de um objeto tão cotidiano quanto uma escada, mas ao modo de uma deformação ou de um desencaixe. Há, então, três elementos fundamentais: a repetição dos degraus com suas cores quase cinzentas, a subtração do ângulo perfeito ou da perspectiva plena e o ponto de vista da totalidade ausente. Como o próprio artista declara, trata-se da possibilidade de experimentar a espera, o estranhamento e a ausência, ou, ainda, a reticência, a solidão e a repetição, em suma a pintura como contratempo, como recuo e detenção diante da temporalidade do olhar.

Enquanto acompanhava a abertura da exposição, apinhada de gente em pleno sábado de manhã, escuto o comentário de uma amiga: “Assim não dá, vi pela internet em casa e aí, sim, tinha a solidão necessária para experimentar a lucidez desta pintura”. De fato, essa tem sido uma característica da experiência estética popularizada. É sempre muita gente, trazendo para o museu o tempo apressado das catracas, dos guarda-volumes, da circulação apressada, da voracidade dos comentários e impressões instantâneas. Tempo que é passatempo. Não se trata de um fenômeno brasileiro (em tempos de ticket cultural) e nem mesmo representa uma novidade desde que Walter Benjamin, em 1936, descreveu a perda da aura da obra de arte na era da reprodutibilidade técnica. O fato aqui é a pertinência da observação. Ter acompanhado o trabalho de Sergio preliminarmente na telinha tornou-se parte de nossa experiência estética, e isso não é, necessariamente, atraso ou acréscimo no processo de decomposição e perda da experiência estética. Talvez seja nossa ilusão retroativa que imagina o espaço público do museu como um lugar sacro, silencioso e envolto no mistério da originalidade insubstituível daquela obra. Singularidade não é originalidade. Nunca se copiou tanto como no Renascimento e grande parte da história das artes plásticas está orientada pelo ideal de repetição e assujeitamento ao já visto, ao cânon, ao modelo do mestre e da escola.

Alguém dirá que a perda é muito grande. Telas imensas, sob iluminação calculada, contra fundos precisos, em uma totalidade orgânica que forma a exposição, sem falar na presença do autor, tudo isso está tão bem representado na tela do computador quanto a experiência de estar no Grand Canyon pode ser reconstituída pelo cartão-postal que recebemos em nossa casa, e que olhamos segurando o pacote de compras com a outra mão, tentando ler o que nosso amigo escreveu, enquanto abrimos a porta de casa… sem tropeçar nos degraus da soleira. Arealidade estética é precária e a precariedade não deveria ser excluída dessa experiência de suspensão do tempo. Essa é a lição que tirei. Ao fim e ao cabo, nunca vemos a escada toda. Ela está lá, podemos até experimentar a ausência e a presença do que não podemos ver, mas temos de aprender a conviver com um mundo que não se apresenta como uma totalidade, apenas fragmentos. Antes uma totalidade em cada fragmento. Há uma escada na solidão suficiente de nossa casa móvel chamada computador e outra escada na galeria dos críticos e amigos. Elas não se juntam e nós estamos justamente aí, entre elas.

Silêncios reticentes
Freud dizia que os artistas abrem o caminho por onde depois seguem os psicanalistas com suas teorias da alma. Poderíamos propor alguns critérios para uma nova definição de adaptação à realidade. Digo isso pensando no processo, atualmente em curso, de renovação dos critérios e quadros que compõem o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. Esse texto atualmente é a referência maior, tanto para a pesquisa psiquiátrica (pelo seu valor de convencionalidade e internacionalização) quanto para a epidemiologia (pela força classificatória), e ainda para o funcionamento de convênios (pela simplificação) e a circulação de pacientes dentro dos dispositivos de saúde mental (orientando procedimentos clínicos e estratégias de tratamento). Sinteticamente, o DSM norte-americano e seu congênere europeu CID-10 são os livros nos quais se encontrará a definição formal, pragmática e operacional do que é doença e do que não é doença em termos de saúde mental. Ali se definem as formas de perda de tempo que uma vida pode produzir, na miséria de seu sofrimento inútil. Livros que traçam de forma clara e distinta a diferença entre o normal e o patológico. São os degraus que podemos ir contando de tal forma para concluir um diagnóstico, reduzindo cada vez mais as zonas cinzentas de incerteza.

Signos que se repetem regularmente em três grupos principais: as desordens (disorder), os transtornos e as síndromes. Especula-se que na renovação prometida para 2011 novos comportamentos serão incluídos: a birra, a agressividade característica do “risco de psicose”, as disfunções hormonais femininas periódicas, novos tipos de oscilações de humor, de inconstância de afetos, de contradição de pensamentos, de dispersão da atenção, de infância sem desperdício. A pergunta que fica no ar é se algum dia realmente veremos a escada inteira, de forma que saibamos, em cada momento, qual é exatamente aquela escalada de loucura que estamos subindo… ou descendo. Saber onde vai dar nossa escada. Saber se não estamos perdendo tempo. Transtorno é exatamente isso, o tropeço no degrau. Desordem também já diz a que vem: “fora de ordem”, o degrau que falta na série ou que está a mais na escadaria. Síndrome é um pouco mais complexo, coleção incontável e inconstante de pequenos eventos, ou seja, partes fora de ordem ou lugar. Perturbações do uso do tempo.

Nenhuma relação entre arte e loucura, nem entre felicidade libertária do artista e camisa de força da normalidade. Passamos da época na qual a boa vontade estética nos livraria do peso da realidade. Há uma paixão pelo real cujo subproduto é a confiança de que a totalidade se forma pela soma das partes, sejam elas maiores ou menores que o todo. Ora, o que a pintura contemporânea tem nos apresentado é uma espécie cada vez mais decidida de reserva, de respeito ou de reticência diante do real. O real como experiência precária e fragmento envolve perspectiva, deformação e repetição. Não se o alcança à baciada nem por atacado. Talvez ele precise mesmo de uma propedêutica reduzida, ao modo de uma solidão preliminar. Além de tudo, há outro problema que é o de dizer. O real não se diz, ele simplesmente acontece, eventualmente se escreve.

Espero que o novo DSM forme uma bonita coleção de cartões-postais, mas torço, sobretudo, para que ele não se esqueça das escadas de Sergio Fingermann, com seus essenciais blocos que não podem ser vistos, com seus silêncios reticentes, com seus matizes. Afinal, antigamente diziam-se quadros, não telas clínicas. Espero que nosso novo catálogo dos sofrimentos leve a sério a ideia de que, tanto nos transtornos quanto nas desordens, e ainda nas síndromes, existe uma parte reservada de contratempo. De resistência ao tempo máquina, de detenção diante do tempo funcional do trabalho e da produção, um contratempo que é este que nos faz dar uma volta e retomar nossas próprias escadas com um pouco menos de confiança e certeza.

(1) Comentário

  1. “Espero que nosso novo catálogo dos sofrimentos leve a sério a ideia de que, tanto nos transtornos quanto nas desordens, e ainda nas síndromes, existe uma parte reservada de contratempo. De resistência ao tempo máquina, de detenção diante do tempo funcional do trabalho e da produção, um contratempo que é este que nos faz dar uma volta e retomar nossas próprias escadas com um pouco menos de confiança e certeza.”
    Parece-me que, depois que descobrimos que “viver” se fez mera formula de se vender bem ou mal, desencantamo-nos, matamos ao Deus, matamos ao diabo e finalmente a Arte, e só falta matarmos por fim a Loucura; lugares atemporais. Quando assisti ao filme Origem, tive primeiro a eterna esperança ao desespero, na forma discutível de André Comte-Sponville – se discutível é saudável – e depois, sem mais encontrar tais símbolos-lugares do “contratempo” – já que não importa o que se faça perdemos tempo, porque atualmente sequer lembramos do criar como residência da “imortalidade” -, voltei ao meu tempo para perder sem estranhamentos; pos venda de si mesmo.
    Ou seja, “escadas”, ilusões para qualquer carência de sentido ou o Nada porque é natural o humano insatisfeito.
    Mas a tecnologia, em seu sentido sempre ‘compaixonante’, está atenta para não nos abandonar neste deserto dos símbolos, para quem não se voltar ao Natural, promete sempre mais e mais um próximo degrau.
    O supra sumo dessa ironia cabe aos robots com síndromes sentimentais.

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