Era Meu Esse Rosto – primeiro capítulo

Era Meu Esse Rosto – primeiro capítulo

Como amanhã (11/06) tem lançamento do Era Meu Esse Rosto no Rio no POP e dia 28/06 tem lançamento em SP no Espaço Revista Cult, decidi publicar aqui o primeiro capítulo do livro para meus leitores queridos.

ERA MEU ESSE ROSTO

O retrato não me responde,

Ele me fita e se contempla

Nos meus olhos empoeirados.

E no cristal se multiplicam

Os parentes mortos e vivos.

Já não distingo os que se foram

Dos que restaram.

Percebo apenas a estranha ideia de família

Viajando através da carne.

Carlos Drummond de Andrade

Porque a primeira morte não é igual à última.

Julián Ana

1.

Depois de tantos anos estou no mesmo lugar. À minha frente a janela fechada impede a luz do sol filtrada pelo galhario das árvores. Um crucifixo de prata pendura-se a dois pregos por um cordão verde metálico ao lado de um pote branco sobre a guia de onde cai um fio comprido de planta carregado de folhas miúdas iguais a pele de rã. Um saco plástico na maçaneta de madeira guarda detalhes da abundante sujeira ao redor. A parede azul sobre a de pinho que nunca recebeu tinta cobre a superfície amortecida dos fatos.

Prova de fé deste lugar morto é a intangibilidade do espaço a arrastar as horas em panos de chão cinzentos, como as paredes internas hoje derrubadas, como as pilastras a segurar o que resta da casa. Meu avô contava que a madeira viera de Flores da Cunha quando Nova Trento, e era de lei, da que não se deixa carcomer. Intocável é o desenho das sombras suspensas nos muros solitários.

A cena enrijecida seca-me o corpo, imprime-se em mim achatando-me os braços, as mãos, o tórax e inteiramente todo o meu corpo até tornar-me a superfície que contemplo. Firmo os pés no vão entre o antes e o depois a controlar a fratura exposta deste nada na espessura de mil velas apagadas. Contemplo e registro. Ao lado, minha avó sobre o direito do corpo evitando apertar o coração respira sem forças de mover-se. Um colchão de molas sob um de penas são tempos entrecruzados dando um balanço maternal à cama. Pondero e descanso. Ou desisto nos braços do que um dia foi, do que seria, escutando o que rezamos antes de dormir. A voz é pano de seda a esvoaçar pelo quarto azul.

Cortina.

Escondo o que não sei de cor. A verdade não é mais que o movimento das sombras à procura de subterfúgios, o tom chiaroscuro destes anos acumulados uns sobre os outros e que vêm pesar como a insecável mancha de tinta, espessa como um soldado de chumbo em queda prestes a fissurar os ossos de um rosto. Será meu esse rosto.

Não será meu esse rosto.

Meu avô tonto da razão compreensiva das coisas cancela o descompasso com a vida sem esperar que eu venha vê-lo.

Nonno, me espera.

Não. Deixa que entrem as galinhas.

Permanece no asfalto o barulho dos carros na velocidade das coisas que não existem mais.

(Florescem os lírios na primavera. Minha tia sussurra ao meu ouvido, fui eu quem os plantou, e as rosas e o arbusto de azaleias brancas, olha. Ninguém imagina quem faria isso. Colhemos as flores, compondo um ramalhete desbotado, ninguém nos vê. Tenta esconder a emoção que a visão da vida provoca em sua alma de sal, contudo sei que também é feita da matéria úmida que a tudo vivifica e por isso se impressiona com a tex- tura sedosa das pétalas, papel japonês na superfície brilhosa de seus olhos tigrados atentos à confusão dos caules e o excesso de folhas. Se é um tigre ou um peixe é coisa que nunca pude decidir.

Pomos a oferenda diante da gaveta onde meu avô está enterrado. Não há letras sobre o muro revestido de concreto. Aqui fora o mundo é apenas um mau jeito de viver. E ali, onde ele jaz, não somos nós. Não deve ser fácil viver assim, é o pensamento que me surge como uma folha de papel vegetal onde eu poderia desenhar um sino a curvar-se nesta hora em que a escala da vida perde a tonalidade, pois que mortos não sentem mais nada, obriga-me a concluir a razão que desde cedo me domina provocando-me sonhos monstruosos, enquanto minha tia tem uma verdade bem mais simples que desliza como a lagarta concentrada em devorar sinais de esperança existentes nas folhas

Falta a fotografia.

Uma chuva fina umedece as lajes, o sol esmaecido cintila sobre as pedras como um pedaço de pano abandonado. Que tempo, é o tempo, o tempo. Tempo. A palavra se repete ensinando-me a não mentir.

Perdido entre as sepulturas, descubro a sucessão de datas que impede o descanso dos mortos.)

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