Equador em ruínas e a imposição de um Estado policial
O presidente do Equador Lenín Moreno (Foto: Reprodução/Twitter Lenín Moreno)
No dia 10 de outubro do ano passado, no contexto das mobilizações populares que sacudiram o Equador contra a implantação das medidas ultraliberais do atual governo, a ministra de governo María Paula Romo anunciou, em rede social, o que seria um grave ataque à segurança do Estado. Na oportunidade, informou a prisão de 19 pessoas “perigosas”, a maioria venezuelana, que teriam informações sobre a movimentação do presidente e do vice.
Passados três meses da prisão anunciada pela ministra Romo, o juiz Miguel Narváez declarou a inocência de todos os acusados, afirmando que eles eram motoristas de aplicativo e que, longe de representarem qualquer risco à “segurança do Estado”, estavam apenas com os carros estacionados em um posto de gasolina em frente à sala de autoridades do Aeroporto Internacional de Mariscal Sucre quando o estado de exceção, determinado pelo governo, suspendia os direitos de livre associação.
Os trabalhadores jogavam cartas esperando por chamadas de viagens de usuários no momento em que o avião presidencial com o vice-presidente pousava. Policiais cercaram os trabalhadores, fizeram todos colocar as mãos contra a parede e os mantiveram durante três horas de joelhos enquanto falavam à imprensa que se tratava de um grupo terrorista perigoso, o que veio a ser reforçado com a postagem da ministra. Dos 19 presos, 15 conseguiram a liberdade no dia seguinte à prisão, outros quatros foram acusados de organização criminosa e tiveram que esperar até a sentença absolutória do dia 14 de janeiro.
Estima-se que durante a paralisação do final do ano passado contra as reformas neoliberais, 312 pessoas foram presas ou processadas, muitas delas integrantes de organizações sociais como a CONAIE (indígenas), por crime de terrorismo. Com o passar dos dias e uma análise mais detida das provas, as acusações foram mudando – ou mesmo, como no caso dos motoristas de Uber, terminaram não acatadas pelo Judiciário por absoluta ausência de provas.
Esses fatos dão um triste contorno de um Equador em ruínas. Desde a traição de Lenín Moreno ao projeto da Revolução Cidadã que se concretizou em forma de golpe de Estado, o que se viu foi a destruição de uma série de mecanismos e órgãos estatais de participação popular e de democratização do poder. Além disso, o aumento no preço dos combustíveis, o ataque a direitos trabalhistas e previdenciários e a entrega dos recursos naturais para o capital estrangeiro contribuíram para o mote da grande mobilização popular ocorrida no ano passado.
De democrático, participativo e inclusivo – país, tirou 1,3 milhão da pobreza em oito anos -, o Equador caminhou nos últimos anos para um Estado policial que mente, mata, prende e persegue os seus cidadãos. O caso dos motoristas de aplicativo venezuelanos é apenas um das centenas de casos que não ensejaram nenhum pronunciamento ou pedido de desculpas por parte das autoridades.
A constituição do Estado policial no Equador inicia com a decisão unilateral (por assalto) de levar adiante um programa de ajuste neoliberal que foi derrotado nas urnas em 2017. Desta forma, sem legitimidade democrática, esse golpe dado em milhões de eleitores equatorianos deu um passo inequívoco para um Estado policial para manter relações entre Estado e sociedade pelo viés coercitivo, notadamente contra aqueles que opõem resistência às essas imposições estruturais econômicas e politicas.
O caso Ola Bini
O reconhecido ativista de privacidade online Ola Bini, em processo com grau de surrealismo semelhante ao dos 19 motoristas de aplicativo presos por ordem da ministra do governo, permaneceu 72 dias no cárcere no início de 2019 sob a acusação de que, em uma mirabolante conspiração que envolveria russos, teria invadido e impactado sistemas computacionais do país.
Essas acusações nunca se comprovaram, mas mesmo assim o processo continuou e haverá audiência de preparação do juízo no próximo dia 17. Até lá, o ativista continua proibido de deixar o país e exercer livremente seu trabalho, que é mundialmente reconhecido. Importante dizer que essa prisão ocorreu justamente no momento em que o presidente Lenín Moreno enfrentava um escândalo rumoroso de corrupção.
A acusação inicial contra Ola (desestabilizar o governo de Moreno) já não é mais a mesma do momento da sua prisão, ocorrida em 11 de abril do ano passado. Pasmem, Ola Bini é acusado de ter adentrado um sistema informático de forma não consentida em 2015! O Tribunal de Pichincha reconheceu que a juíza que conduziu o caso praticou ilegalidades de tal monta que deveria ser afastada e substituída. Mais de 100 organizações de direitos humanos e de privacidade na internet do mundo todo acompanham detidamente o caso, assim como organismos internacionais como a OEA e a ONU que já cobraram explicações ao governo de Moreno e se manifestaram por diversas oportunidades.
As arbitrariedades do processo instaurado contra o ativista ajudam a compor a lista de processos judiciais que denunciam a face autoritária e policialesca de governos conservadores na América latina. A receita é parecida: instrumentalização de órgãos de investigação acobertada por um conluio com grandes conglomerados de mídia, golpe de Estado, uso contumaz da mentira e violenta repressão. Em troca dessa blindagem, é servido o prato da retirada de direitos e de derrubada de qualquer regulação para a exploração do capital.
Válida, neste ponto, a precisa lição Raul Zaffaroni que, muito antes de se rebatizar com o nome de lawfare fenômenos sociais e políticos há muito revelados pelas teorias críticas de criminologia e da ciência penal, já lecionada sobre o inimigo no direito penal.
Escreveu o mestre em O inimigo no direito penal (Revan/ICC, 2007):“Em outras palavras, a história do exercício real do poder punitivo demonstra que aqueles que exerceram o poder foram os que sempre individualizaram o inimigo, fazendo isso da forma que melhor conviesse ou fosse mais funcional – ou acreditaram que era conforme seus interesses em cada caso, e aplicaram esta etiqueta a quem os enfrentava ou incomodava, real, imaginária ou potencialmente.”
A perseguição a adversários políticos
A advogada e prefeita de Pichiincha, Paola Pabón, foi outra vítima do Estado policial equatoriano e ficou 72 dias presa preventivamente, acusada de estimular protestos. A sua soltura pelo Judiciário foi criticada pelo governo Moreno. Como resposta, o governo recebeu uma dura manifestação da associação de magistrados do Equador que disse não admitir qualquer interferência política em sua autonomia.
No último dia 20, Pabón se manifestou sobre a sua soltura e o processo de repressão pelo qual passa o país. Vale ouvi-la:
“Como resultado de las jornadas de octubre hubo persecución política en el país y esto es algo que varios organismos, no solamente quienes nos hemos sentido afectados, han reconocido”, indicó la política ecuatoriana. “Se nos otorgó una medida cautelar de la CIDH precisamente porque se hacía un reconocimiento a que había un hostigamiento político”, agregó.
“El detonante es octubre pero nosotros estamos viviendo en Ecuador una sistemática persecución política desde hace más de dos año y medio”, subrayó la dirigente. “No solamente se ha utilizado el linchamiento mediático a través de las grandes cadenas de televisión sino lo más grave que es la judicialización de la política para descartar una tendencia ideológica política que nosotros representamos”, sostuvo Pabón.
O que será do país?
Nesta semana que passou, o presidente equatoriano gastou oito minutos em cadeia nacional atacando o movimento indígena. Daqui a um ano haverá eleições e o desespero de personagens liliputianos como Moreno e Romo vem do fato de estarem como zumbis no poder. Desmoralizados e sem perspectiva de continuidade, apostam na perseguição a adversários políticos (inimigos) e reprimem a população mais pobre que ousa reivindicar mudanças. Sem respaldo popular, mas com apoio no grande capital, nos principais meios massivos de comunicação e nas Forças Armadas, exercem o poder pela violência, mentira e repressão.
Para completar o caldo, nunca os equatorianos estiveram tão descrentes na política. Os números de eleitores que manifestam o desejo de anular o voto é cada vez mais crescente e assume proporções preocupantes. Rafael Correa, outro que foi vítima da escalada policialesca do atual governo, lidera as pesquisas, mas está exilado e com ordem de prisão decretada. Rejeitado pelas ruas e pelas mobilizações populares, o governo de Moreno já demonstrou que não tem qualquer apreço limite ou resquício de respeito pelas regras democráticas e uma repetição do que ocorreu na Bolívia não se mostra tão absurdo.
O Equador, país que já deu ao mundo a grandeza de um Oswaldo Guayasamín e, nos últimos anos, lições de como aprofundar a democracia e possibilitar a participação popular nos espaços de decisão do Estado, hoje se tornou um triste exemplo de como a América Latina e central, com exceção de poucos países, é um terreno ocupado por governos autoritários que se sustentam com base nas balas e no cassetete. Oxalá as mobilizações populares e a indignação do povo equatoriano consigam estancar essa guinada autoritária. Até lá, infelizmente, há um tortuoso e dramático caminho a ser percorrido.
Patrick Mariano é advogado criminalista, mestre em direito pela UnB e integrante da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares – RENAP
Rodrigo Iturriza é mestre em Sociologia Política e militante em organizações sociais, estudantis e políticas