Epidemia do desencanto
Estudos recentes da Organização Mundial da Saúde (OMS) indicam que, em 2030, a depressão será a principal causa de incapacitação, à frente inclusive das doenças cardiovasculares. Atualmente, estima-se que 121 milhões de pessoas sofram da doença, segundo a OMS. As estatísticas são alarmantes e apontam para um problema de saúde pública. Enfrentá-lo, porém, é desafiador dada a complexidade conceitual e, por que não dizer, a banalização e a falta de esclarecimento acerca da depressão. Diversas são as hipóteses que buscam explicá-la: desde causas estritamente biológicas até fatores psicossociais.
Histórico de complexidades
O estudo dos desencantos e males da mente perpassa a história da humanidade. Da Antiguidade ao século 21, muitas são as designações e os embates conceituais. Segundo a teoria de Hipócrates (460-370 a.C.), a vida humana era regida por quatro humores: a bílis negra, a amarela, o sangue e a pituíta. Do desequilíbrio dessas quatro substâncias advinham as doenças, entre elas a melancolia. Uma vez alterada a quantidade da bílis negra, o indivíduo era acometido pelo quadro melancólico, cujos sintomas eram o medo e a tristeza. Aristóteles (384-322 a.C.), por sua vez, em seu tratado sobre a melancolia, acreditava ser esta uma característica natural do homem, associando-a inclusive ao ethos de artistas e pensadores.
Nos séculos subsequentes, passando pela Idade Média e pela Renascença, as visões patológica e romântica foram preponderantes. A teoria de Hipócrates só foi posta em xeque no classicismo, quando a causalidade da melancolia não mais se referia às substâncias, mas sim às qualidades do homem, ou seja, dirigida a fatores como amargura, solidão e tristeza. Na segunda metade do século 18, coube ao médico francês Philippe Pinel (1745-1826) a primeira tentativa médica de explicação do fenômeno. A análise de Pinel detinha-se, sobretudo, no estudo dos sintomas.
Posteriormente, no século 19, o termo melancolia perdeu força. O psiquiatria Emil Kraepelin (1856-1926) direcionou seus estudos para o que chamou de psicose maníaco-depressiva, caracterizada por quadros de acessos maníacos e depressivos. A partir desse período, a psiquiatria passou a usar preferencialmente a palavra depressão em substituição à melancolia. Contemporâneo de Kraepelin, o neurologista George Beard (1839-1883) cunhou o termo neurastenia, que considerava ser “a doença da modernidade”. Condições de vida extenuantes advindas do crescente desenvolvimento industrial resultavam em um cansaço generalizado, representado na figura do operariado. A visão de Beard opunha-se àquela essencialmente ligada a fatores orgânicos, pois, segundo ele, fatores sociais eram considerados fontes de adoecimento. No fim do século 19, Freud (1856-1939) estudou o assunto sob a luz da psicanálise. Nas cartas trocadas com o amigo Wilhelm Fliess, Freud faz menção a 12 termos relacionados à angústia e ao sofrimento, entre eles depressão, depressão melancólica, melancolia e melancolia cíclica. Nota-se, portanto, uma dificuldade em cunhar um único termo para designar um quadro tão plural. O viés adotado por Freud centrava-se, sobretudo, na fonte social do sofrimento. Visão diametralmente oposta era a do psicólogo e médico francês Pierre Janet (1859-1947), a qual enfatizava o aspecto orgânico e inato da depressão. Tais linhas de pensamento passaram a nortear os estudos posteriores: de um lado a psicanálise, que se atém ao estudo etiológico dos casos, de outro a psiquiatria, sob o ponto de vista biológico da doença mental.
Definição, um desafio
Em face desse histórico complexo, definir a depressão é uma tarefa árdua. Permanece o binômio psiquiatria e psicanálise, ainda que eventualmente haja alguns pontos de encontro. Para o psiquiatra Ricardo Moreno, coordenador do Programa de Transtornos Afetivos do Instituto de Psiquiatria da USP (IPQ), “depressão é uma doença que tem como base uma disfunção química do cérebro, ou seja, os sistemas de neurotransmissão são comprometidos. São vários sinais e sintomas que caracterizam o quadro clínico, como tristeza, angústia, melancolia e diminuição do prazer”. Outro fator apontado pelo psiquiatra é a herança genética. Ricardo Moreno afirma que “40% dos pacientes com depressão têm fator genético envolvido”. Os fatores sociais não são considerados causas, mas sim desencadeadores: “Sabe-se que os indivíduos com vulnerabilidade genética, quando submetidos a estresse, físico ou psicológico, podem ou não desenvolver a doença”, explica. Opinião semelhante tem Valentim Gentil, professor titular do Departamento de Psiquiatria da USP: “Não adianta ficar procurando qual é a situação ambiental, a frustração, a perda, porque o que aparece é uma síndrome clássica. Devem existir perdas, fatores de estresse que precipitam, mas, uma vez precipitados, não vai ser tirar esses fatores precipitantes que vai resolver o problema.”
Avessa à visão biológica, Maria Silvia Bolguese – psicanalista e membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae – acredita que “interessa ao psicanalista compreender a reação depressiva como reveladora de um mal-estar do sujeito diante da vida, das condições internas e externas para estruturar e viabilizar a sua vida”. A exemplo de Maria Silvia, Plínio Montagna, presidente da Associação Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é crítico em relação à postura psiquiátrica: “De maneira geral, a psiquiatria puramente biológica trata o ser humano como se não tivesse subjetividade, uma história, um tecido de vivências que influenciam seu lugar no mundo”.
O quadro brasileiro
Segundo a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), a depressão já acomete cerca de 9% dos brasileiros. Desinformação e falta de políticas preventivas por parte dos órgãos públicos de saúde ajudam a alavancar as estatísticas. “Quando há um problema que afeta tanta gente, causa tanto sofrimento, tanta incapacitação e tanto prejuízo, espera-se que haja programas de esclarecimento. Assim como há campanhas de prevenção de DSTs, gripe e tantas outras coisas, deveria ter para a depressão. Eu nunca vi o Ministério da Saúde fazer nada nessa área”, critica Valentim Gentil. Uma vez que a doença apresenta um conjunto de sintomas, tais como tristeza, perda da libido e desesperança, há quem acredite estar deprimido por sentir algum desses sintomas, o que pode levar o indivíduo a tomar medicamentos desnecessariamente.
A falta de prevenção secundária é outro fator criticado. Esse tipo de prevenção caracteriza-se pelo diagnóstico da doença em sua fase inicial, de modo que impeça que ela tenha uma evolução crônica. “No Brasil não se fazem programas de prevenção secundária. Aqui, 60% das depressões são recorrentes. O indivíduo tem 90% de chance de ter novos episódios ao longo da vida e esses episódios podem ser prevenidos”, comenta Ricardo Moreno.
A rede de cuidados primários deveria dar conta dos problemas de depressão e de transtornos ansiosos, mas não é isso que acontece. Consultas rápidas e mal pagas resultam em diagnósticos imprecisos. “Nós damos mais de 500 consultas por dia no Hospital das Clínicas recebendo 10 reais por cada uma para dar todo o atendimento mais a medicação. O modo como o SUS lida com a depressão deve ser repensado. O que precisa ser feito para diminuir o sofrimento dessas pessoas é uma consulta psiquiátrica especializada”, afirma Valentim Gentil.
No que se refere à assistência psicanalítica, o sistema público de saúde também revela sua fragilidade, como aponta Plínio Montagna. “Em alguns hospitais do Brasil, já existem serviços de psicologia com orientação psicanalítica cobertos pelo Estado.” A situação, contudo, é distinta daquela de países mais desenvolvidos. “Na Alemanha, por exemplo, a população tem direito ao tratamento psicanalítico por vários anos.”
Por fim, a crítica à formação básica do médico. Para Valentim Gentil, “as faculdades de medicina tendem a ver a psiquiatria como aquela dos problemas psiquiátricos tradicionais, as esquizofrenias, a psicose, os manicômios. Não é isso que precisamos para dar conta da demanda da população. Os estudantes de medicina teriam de aprender a lidar com os transtornos mentais comuns, para os quais não é necessário um psiquiatra, mas um bom clínico geral”.
Tratamentos
Ancorada essencialmente no viés sintomático, a psiquiatria reconhece como tratamentos eficazes os antidepressivos, as terapias cognitiva e interpessoal e, para casos mais graves, a eletroconvulsioterapia. A psicanálise, por sua vez, ao voltar-se para a subjetividade, defende o uso da análise como substrato psíquico para o enfrentamento dos conflitos individuais. “Um percurso de análise pode levá-lo a desenvolver recursos psíquicos para enfrentar seus conflitos. O depressivo em análise pode sair do vazio psíquico ao se encorajar a formular algumas fantasias, coisa que ele sempre negligenciou, e com base nelas construir sentidos para a sua vida”, explica Maria Rita Kehl. É admitido o uso de antidepressivos, porém, com restrições: “Os estados depressivos graves e persistentes, que inviabilizam a vida por muito mais tempo, dificilmente podem ser explicados diretamente pelos sujeitos. Nesses casos, um período de medicação é importante, para que o sujeito se coloque, inclusive, em condições de se tratar”, comenta Maria Silvia Bolguese.
O uso indevido de medicamentos é algo a ser discutido. A precariedade da fiscalização, o interesse de indústrias farmacêuticas e a desinformação formam uma tríade perigosa. “Os antidepressivos são eficazes, porém são vendidos indiscriminadamente. Primeiro, porque falta fiscalização; segundo, porque a indústria farmacêutica ganha muito dinheiro com isso”, argumenta Ricardo Moreno. Segundo dados da Anvisa, de 2004 a 2008, o faturamento da indústria farmacêutica com a venda de antidepressivos prescritos aumentou 65% no Brasil. Somente em 2008, o faturamento correspondeu a 842 milhões de reais.
O uso crescente e indevido de antidepressivos reflete, segundo o psiquiatra Luiz Alberto Hetem, um sintoma da sociedade contemporânea: “Está havendo em nossa sociedade uma medicalização do sofrimento. As pessoas não aceitam mais ficar tristes, ter dor, passar por momentos de angústia. Toma-se remédio para combater emoções normais”.
Aspecto polêmico no tratamento da depressão é o uso da eletroconvulsioterapia, o popular eletrochoque. Criada na década de 1930 pelo neurologista italiano Ugo Cerletti, a técnica “permanece como o tratamento mais eficaz para a depressão”, segundo o Manual de Prevenção do Suicídio realizado pelo Ministério da Saúde em parceria com a União Pan-Americana da Saúde e a Unicamp. O mesmo manual indica que a técnica é indicada “para os casos mais graves, principalmente quando há sintomas psicóticos ou estupor depressivo”. Diferentemente dos tempos em que os pacientes eram submetidos a altas voltagens, hoje a corrente é reduzida e, para que haja segurança na aplicação, é necessário que seja feita em um centro cirúrgico com a presença de um psiquiatra e um anestesista. No Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas em São Paulo, em média 80 pessoas por semana são submetidas à eletroconvulsioterapia. “As pessoas vêm de manhã para o Hospital das Clínicas, tomam anestesia, fazem eletroconvulsioterapia e voltam para casa após tomar o café da manhã. Ninguém diz essas barbaridades que a gente ouve falar, pois correspondem a uma época em que isso era feito de outra forma”, comenta Valentim Gentil.
Na contramão dos defensores do eletrochoque, psicanalistas refutam a prática. “Mesmo que se argumente que a eletroconvulsioterapia se vale de correntes mínimas, apenas com o fim de estimulação das regiões cerebrais, não se pode deixar de criticar essa prática, fundada que é em princípios claramente violentos contra a subjetividade”, argumenta Maria Silvia Bolguese. Christian Dunker é favorável à aplicação da técnica somente em casos de catatonia, ou seja, quando o paciente não responde a nenhum medicamento e há paralisação do contato com o outro. Feita essa ressalva, o psicanalista é enfático: “É simplesmente inadmissível o uso ‘popular’ e ‘barato’ para contornar a falta de outros recursos ou a inépcia diagnóstica e a falta de empenho terapêutico. É assustador verificar o retorno dessa técnica sem que se tenha desenvolvido qualquer teoria significativamente consistente sobre seu meio de ação, sobre as razões de sua eficácia ou suas consequências iatrogênicas (permanentes em termos de lesões cerebrais e funções psicológicas associadas)”.
Em O Mal-Estar na Civilização (1929), Freud chamava atenção para a limitação humana em desfrutar a felicidade, o que o levou a caracterizá-la como “fenômeno episódico”. A despeito dos valiosos avanços no tratamento e diagnóstico das múltiplas formas de depressão, o mundo contemporâneo parece viver sob o signo da normalização. Aspectos intrinsicamente humanos tornam-se passíveis de controle. A ânsia pela felicidade plena, dada sua inviabilidade, gera, paradoxalmente, um abismo de desencantos.
Essa reportagem contou com a colaboração de Julia Alquéres