Entrevista | As mutações que o teatro provoca
A atriz e diretora Camila Mota (Foto: Bob Sousa)
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Fotos de Bob Sousa
No domingo dia 16 de julho, a Cult foi ao Teatro Oficina conversar com Camila Mota, responsável pela direção de Mutação de apoteose, espetáculo que estava em cartaz quando a companhia foi surpreendida pela morte de José Celso Martinez Corrêa. Motivada pela metáfora central do espetáculo, a conversa girou em torno das transformações que virão daqui por diante, seja pela ausência do artista que esteve há 65 anos à frente do grupo, seja pela presença de demandas que os novos tempos estão infletindo em todas as áreas. Com o teatro não sendo diferente. Participaram também da entrevista a poeta e multiartista Cafira Zoé e a artista e arquiteta cênica Marília Piraju.
Qual é a gênese do espetáculo Mutação de apoteose? Como se deu seu percurso na direção?
Camila Mota – Mutação de apoteose nasceu de um convite da Fernanda Diamante, que foi curadora da FLIP em 2019. A Feira naquele ano homenageava Euclides da Cunha, e ela me chamou para dirigir o espetáculo de abertura. A Fernanda havia trabalhado com a gente fazendo o programa de Os sertões, no último ano. Então, ela me chamou pra dirigir e aí eu comecei a fazer um trabalho com a Cafira, a Marília e a Sylvia Prado, primeiro para entender o que seria esse espetáculo. A gente começou a pensar num roteiro e teve muita clareza sobre o que seria importante na criação do trabalho, pra que pudesse entender qual seria o novo ponto de vista dessa obra ali em 2019, doze anos depois da última apresentação de Os sertões.
Então, de cara a gente entendeu que não ia privilegiar a perspectiva narrativa. A gente estava muito mais interessado em ver o que no livro estava presente naquele momento. A gente entendeu assim: vamos escolher um repertório e criar cenas a partir disso, a partir de uns troncos que seriam muito importantes. O que tem n’Os sertões que precisa ser falado ainda hoje? Por que o livro precisa ser lido? Por exemplo, é uma reportagem sobre um crime de Estado. Então, quais cenas da terra, do homem e da luta estariam nesse roteiro? Queríamos falar das insurreições. Vegetais, minerais, animais e humanas também. Era importante. Estávamos em 2019. A terra acabou virando o capítulo principal do espetáculo de alguma maneira, porque em 2019 já havia uma outra concepção sobre a terra. Era muito mais forte a percepção da emergência climática. Ali na FLIP a gente não entrou tanto na discussão sobre as raças. Então, ali foi feito aquele espetáculo…
Cafira Zoé – Que foi um embrião deste de agora…
Camila – Lá havia uma limitação dada pela FLIP de nós usarmos somente 20 pessoas da companhia. Os outros 40 integrantes (ao todo, participaram 60 pessoas) eram da região. A gente trabalhou com adolescentes de Paraty e foi muito emocionante, porque eles eram secundaristas e tinham passado…
Cafira – … pela tragédia de um amigo assassinado, porque Paraty tem uma barra pesada nesse sentido. Então, eles tinham muito subtexto pra trazer e junto com eles a gente fez um trabalho com um coro de crianças guaranis.
Camila – Era uma questão que a gente sempre ouvia falar. “Ah, ficam lá os indígenas pedindo esmola e as pessoas ali na FLIP.” Então, a gente decidiu: “Vamos colocá-los em cena e arrumar um cachê para eles”. Em se tratando da terra, era preciso a perspectiva indígena. O Ailton Krenak participou da mesa com o Zé Celso. Foi maravilhoso porque havia 1400 pessoas assistindo e foi muito quente. Então, o Zé ficou botando pilha: “Tem que fazer no teatro”. Aí veio a pandemia. Quando os teatros voltaram a funcionar, o Oficina abriu com Paranoia – o Marcelo [Drummond] fazendo sozinho. Depois, veio O bailado do deus morto, que tem um coro pequeno. Então, a primeira “mutação de apoteose” que a companhia teve foi a abertura da quinta dentição da Universidade Antropófaga, que levou a gente a intuir que era importante começar a praticar muitas direções nesse espaço. Começou com uma leitura no dia 16 de agosto, aniversário do teatro, e foi um processo longo, com muito tempo de ensaio. A gente ensaiava toda semana. Pegava uma música e trabalhava as possibilidades dela no contexto do livro. E lia muitas outras coisas contemporâneas que dialogavam com o Euclides.
Além do Emanuele Coccia, o que mais vocês leram?
Camila – Abdias do Nascimento, Dénètem Touam Bona, Donna Haraway…
De quem é a dramaturgia?
Cafira – Eu faço a dramaturgia, mas ela é uma dramaturgia de devoração. Porque ela vem da própria encenação de Os sertões. Então, é uma dramaturgia cosmofágica, que come outras dramaturgias, mas eu faço as ligações. No segundo ato há coisas inéditas…
Feitas para essa versão?
Cafira – Feitas pra esse momento da vida que acabou de fazer sentido com essa versão. A música do rio Bexiga é da Marília, do núcleo que ela dirigiu. Então, é uma dramaturgia de encruzilhada, ou uma dramaturgia movediça. Ela come e dá de comer, sem tabu nenhum, porque é a linguagem desse lugar. O Oficina sempre comeu, o teatro é um sambaqui. As dramaturgias do Zé já eram sambaquis, agora não seria diferente.
Camila – Mutação de apoteose tem uma entrada importante da Cacilda [Becker], que é uma entidade. Ela e o Zé colocam o teatro num lugar de extrema grandeza, de importância que vai além do teatro como arte, como tecnologia política, como maneira de existir mesmo, de criar possibilidades concretas. Então, a Cacilda foi entrando. Quando a gente entendeu que o Marcelo talvez não fizesse o Euclides da Cunha em razão da temporada de Esperando Godot, a gente falou “Ah, então a Cacilda vai ser o duplo do Euclides”.
O título do espetáculo é uma frase do Euclides…
Cafira – Sim. Euclides vai descrever a mutação que as plantas sofrem depois de um grande período de seca. Primeiro, ele fala da planta árida. Quando ela se transforma, ele afirma: “É uma mutação de apoteose”.
Camila – É a mesma mutação que o teatro provoca. Tem hora que você está seco e outras que, de repente, está vivo outra vez. É um legado do Zé essa busca pela vida, tanto que no Oficina vários personagens que morrem ressuscitam. Porque o teatro é uma tecnologia de invenção de vida. Como as plantas, o teatro também produz mutações de apoteose, e a Cacilda entrou muito forte e transformou a dramaturgia.
Marília Piraju – Esse espetáculo, criado a partir de uma peça de repertório, carrega em si uma espécie de lupa pra contracenar com o momento, porque, por exemplo, Os sertões, quando foi montado pela primeira vez, era muito concreto colocar a luta em cena, porque a questão do entorno do Silvio Santos, como o litígio ali com a persona Silvio Santos, estava mais forte do que nunca. Em 2019, quando foi pra FLIP, foi colocada em cena a questão direta dos Guarani, que estavam sofrendo, de alguma maneira, o elitismo daquele lugar, daquele território. Então, Mutação de apoteose funciona como um site específico pra ler e interpretar o próprio território. Aí quando a gente vem pra cá, a Camila não escolhe nem a luta, nem o massacre, nem a força bandeirante do Estado naquele momento. Ela escolhe justamente a mutação, quer dizer, a resposta com imaginação a todo aquele massacre. Com a reabertura da Universidade Antropófaga, que reuniu cem pessoas, a gente tinha um bioma humano tão cheio de vida pra contracenar e pra dar soluções pra aquele momento pós-pandemia. Então, a única possibilidade seria a gente fazer a Mutação de apoteose naquele momento. Era colocar tudo que tinha de possibilidade de criação, de produção de primavera, vivendo a ressaca do governo Bolsonaro, e como resposta a toda essa política de morte do governo Bolsonaro. A peça é uma explosão disso.
Cafira – A cooperação é a grande tecnologia. Acho que a peça é sobre o próprio teatro como uma ferramenta ligada à cooperação, o que a gente chama de contracenação. Na perspectiva da biologia e da cosmopolítica, que foi amputada nesses anos do governo Bolsonaro. A peça também fala da incidência do cultivo do ódio como algoritmo que rende dinheiro, engajamento… O teatro é cooperação, é simbiose, né?
Aí a vida foi uma dramaturga muito irônica e pregou uma peça no Oficina, levando Zé Celso embora. Como é que Mutação de apoteose incorpora isso a partir de agora?
Cafira – Primeiramente ele não se foi. Desde que o mundo surgiu, é a mesma vida, é o mesmo sopro de vida que está passando por todas as pessoas, bichos e plantas. É o mesmo sopro de vida. E quando pessoas, plantas, minerais se decompõem, vão se juntar a esse grande sopro de vida de novo. A gente está respirando plantas que morreram em nós mesmos, a gente está respirando e vivendo a partir das várias eras geológicas de pessoas e de bichos e de plantas que morreram e que estão vivendo no ar, que viraram fotossíntese. Você vira matéria, matéria viva que vai virar matéria vida, vai ser decomposto e vai voltar. É um retorno, não no sentido pequeno burguês de legado e sim de “ligato”. Sendo Eros e sendo Exu, o Zé faz esse” ligato”.
Camila – Ainda bem que a gente estava em cartaz com essa peça. Se não tivesse nada em cartaz, seria uma hecatombe. A gente soube do acidente na terça-feira e já não dormiu direito de terça pra quarta porque soube que tinha dado uma piorada no estado dele. Na quinta de manhã o Zé morreu. Na sexta, a gente falou: “Vamos fazer o espetáculo”. Acho que, se não tivesse nada em cartaz, ia ser um pouco mais complexo. “Agora, o que vai ser sem Zé Celso?” O que aconteceu foi: “Olha o que tá acontecendo sem Zé Celso”. Isso vai ser importante pra todos os trabalhos e pras peças que vão entrar em cartaz em agosto: Rasga coração e O bailado do deus morto.
Cafira – As pessoas entenderam o que foi feito até aqui pelo Zé e por todo o corpo coletivo que ele orquestrou. Não é um teatro que se acaba, senão não seria o Teatro Oficina, não seria Zé Celso.
Na quarta-feira antes de o Zé Celso morrer, eu estive na leitura de algumas cenas de A queda do céu que ele promoveu no Sesc Pompeia e, ao final do encontro, ele disse que se incomodava quando as pessoas associavam o Oficina sempre a ele. Lembrando disso agora, parece meio premonitório ele ter dito: “O Oficina não sou eu, o Oficina é o Marcelo, a Camila, o Roderick… O Oficina sempre foi um grupo”.
Camila – É interessante ouvir isso porque a escala de Mutação de apoteose pressupõe mutirão, simbiose. Tem um princípio de terreiro: você saúda os mais velhos e os mais novos.
Você dirige a peça com o mesmo rigor com o qual o Zé trabalhava. A composição dos quadros tem uma alegria irrefreável, mas também um rigor. É possível aprisionar Dioniso em cena?
Camila – Catherine [Hirsch], essa grande parceira do Zé e de todos nós, sempre me falou que o transe dionisíaco não é inconsciente, pelo contrário, ele é o transe da hiperconsciência, da consciência do concreto, do aqui agora, uma consciência da sua inconsciência. É sempre muito importante que todo mundo saiba o que está fazendo. Eu e a Sylvia Prado, por exemplo, quando entramos no Oficina, aprendemos com a preparadora corporal Cris Cibilis as técnicas de transe que tinham sido praticadas em Gracias, Señor, do qual ela participou integrando o coro.
O Oficina está saindo da esfera das dicções do feminino e entrando na área das inflexões do feminino?
Cafira – Pra começar eu sou uma pessoa não binária…
Camila – É. Somos duas mulheres e uma pessoa não binária.
Cafira – A gente chama de o feminismo dos povos mulher, porque, se tem povos LGBT, povos pretos, povos indígenas, tem povos mulher, que são vastos, as mulheres trans, as mulheres que são brancas, as mulheres pretas, as mulheres que são LGBTs… Então, são povos, não é? Bacantes já era uma peça feminista.
Camila – O conteúdo do Oficina é antipatriarcal.
Cafira – O rei da vela é antipatriarcal…
Camila – Em Mutação de apoteose tem homem, tem mulher, tem não homem, tem não binário, tem tudo misturado…
Marília – O Zé muitas vezes também saía da personagem do diretor, que capitaliza tudo, que dirige tudo.
Cafira – Em Bacantes ele falava: “Passo o meu bastão”. Ela falava isso literalmente.
Camila – Euclides da Cunha, por exemplo, morreu de patriarcado. Ele morreu de masculinidade tóxica, entende?
Marília- Uma coisa que eu acho importante tem a ver com o momento histórico, que é uma conquista das mulheres, um esforço tremendo de destituir esse patriarcado em todas as instâncias. Não só na metrópole, mas em terras indígenas, quilombolas, nos terreiros. Hoje uma pessoa trans pode assumir cargos que eram de pessoas cis. É uma desestruturação geral. É possível colocar as mulheres mais em cena e permitir uma certa segurança nesse lugar, inclusive de interpretação, de expressão.
A temporada de Mutação de apoteose se encerra no final de julho. Há a possibilidade de continuar?
Camila- A gente quer muito continuar, mas não agora porque já em agosto estreiam O bailado do deus morto e Rasga coração. Depois, entra o Renato Borghi por seis semanas. Depois, A queda do céu. Então, não tem pauta no teatro. A gente quer muito viajar e vai ser uma loucura conseguir viajar com 84 pessoas, incluindo as crianças. 84 pessoas que dividem a bilheteria… Mas a gente tem que conseguir.
Já há outros projetos em vista?
Camila – Tenho o desejo de fazer A tragédia do rei Christophe, de Aimé Césaire. Entender a perspectiva coral do texto, fazer uma ilha do Haiti no meio do Oficina e o coro ser talvez o mar… Não sei, tem jogo… Tenho vontade também de fazer A morta, de Oswald de Andrade. A gente botou uma pilha no Zé pra fazer uns anos atrás, uma peça que eu adoro. Ele fez leituras de O homem e o cavalo, uma das peças que sempre foram pensadas como repertório pra esse teatro de estádio aqui na parte externa do Oficina. A peça tem uma escala gigantesca, como o Oficina.