As vibrações afetivas de Zé, o Momo

As vibrações afetivas de Zé, o Momo
Pintura “As rosas de Heliogábalo” (1888), de Lawrence Alma (Reprodução)

 

Há três meses, José Celso Martinez Corrêa afirmou à Cult que deixaria de lado o projeto de montar Heliogabalo ou O anarquista coroado, do dramaturgo francês Antonin Artaud, para se dedicar à adaptação de A queda do céu, por entender que a crise dos Yanomami era mais urgente no Brasil hoje.

Com o dramaturgo Fernando de Carvalho, Zé se empenhou, durante os anos de pandemia, na recriação dramática do texto cuja versão original, publicada em 1934, é um relato experimental – histórico, etnográfico e poético – que aborda a vida de Heliogabalo, imperador romano coroado aos 14 anos em 218 d.C., ao mesmo tempo em que explora as linhas de força e os princípios que orientaram seu teatro da crueldade. A transcriação da prosa original em dramaturgia não foi uma questão para a dupla, pois, segundo Fernando de Carvalho, no escrito artaudiano “as palavras vibravam como presença de cena”. “Tudo em Heliogabalo é entremeado pelo teatro, pela própria forma teatral do personagem agir, pelas forças que representam cada personagem”.

No duplo fito de recriar uma obra aberta às tensões e tesões contemporâneos na língua brasileira de Nelson Rodrigues e Aracy de Almeida – presente do léxico à elaboração de uma gramática própria –, Zé e Fernando iniciaram a escrita em princípios de 2020 e da pandemia, e a finalizaram em meados de 2021, com intensos trabalhos diários das 19h até às 4h. Na forma de um copião, a primeira versão do texto foi publicada em 2022 pela n-1 edições, e realiza, no constante diálogo entre tradução e transgressão do original em francês, uma “tragicomédiorgya musical em língua falada brasileira”: flecha despudorada e faminta a ressuscitar, como nas encenações de Para dar um fim no juízo de deus, um Artaud que fala ao aqui-e-agora: aliado à sagacidade desvairada dos dramaturgos contemporâneos, tais deuses glutões exorbitam o teatro para fazê-lo vida e, assim, encenar as forças do presente: “Formas q Incendeiam o Desejo de Re-incarnação”.

Heliogabalo, como já é anunciado no primeiro ato, “O berço de esperma”, foi assassinado em 222 d.C. por sua guarda pessoal, revoltada com seus excessos, os gastos desmesurados, as luxúrias e obsessões sexuais. Sob “intensas circulações” vitais, a peça inicia-se com a genealogia do infante infame a remontar aos seus ancestrais Bassiânus, que sob o jugo romano deixam de cultuar Elagabalus, divindade solar da região de Emêsa, na Síria, e com isso reduzem seus ritos a “imbecilidades vazias”. As diversas cenas da infância e do crescimento de Heliogabalo, permeadas por orgias, incestos e sacanages, são singradas pela presença das três matriarcas anti-imperialistas: a tia-avó Julia Domna, a avó Julia Moesa e a mãe Julia Soêmia, que o introduzem na libidinagem e no sacerdócio solar.

Na mitolorgia construída no primeiro ato, os cultos orgiásticos dos templos sírios devolvem toda a força vital ao teatro: a palavra não é mais abstração rendida ao signo do império romano, mas força dos “sopros pulmonais” que “dão Poderes pra Atuar”. A descrição dos ritos cruéis de Emêsa, onde “templos são teatros”, leva-nos a imaginar a arquitetura do Teatro Oficina e a perceber como a dramaturgia é concebida para realizar a nu e a cru a ousadia artaudiana naqueles palcos e andaimes. Como relembra Zé Celso acerca de Para dar um fim no juízo de deus, traduzido e encenado em 1996 e reinterpretado em 2015, a primeira aproximação da trupe com o texto artaudiano deu-se “pela Presença Cênica do Espaço do Teatro da Crueldade q Lina Bardi fez pra Antonin Artaud”.

Um teat(r)o mágico, no qual “Tudo está em Ação”, mesmo a terra, as pedras, a vida em força espalhada: “Cosmogonia da delícia” de uma terra em transa, de pedras e bétilos que vibram e pulsam. O teatro em transversal na existência, templo atado ao tempo: “construído sobre as Entranhas de outros Templos,/ de Restos de Palácios/ y Vestígios de Velhas Convulsões Terrestres/ q nos levam ao Dilúvio”. O teat(r)o, como é constantemente grafado em Heliogabalo, foi concebido na década de 1970, após a performance de Gracias, Señor, para pensar o teatro implicado na vida, na mutação entre coro de atores e espectadores: te-ato, as peças da trama criam a própria matéria do tecido. Como relembra Fernando de Carvalho, Gracias, Señor, que tem cenas pouco vistas resgatadas no recém-lançado longa-metragem Máquina de desejo, foi um norte durante toda a transcriação de Heliogabalo: “é a transformação de gente, a mistura de gente, de gêneros, de forças, pedras, plantas. A força das pedras, dos animais, do sexo”.

Forma de vida intensa, vibração afetiva que faz do verbo ação, Heliogabalo funciona como epicentro da “força viva da transmutação no teatro”. Por sua figura andrógina e seus gestos dúbios, atravessam “Sagrados y Profanos/ Ordem, Desordem,/ Unidade, Anarquia,/ Poesia, Dissonância,/ Ritmo, Discordância,/ Grandeza, Puerilidade,/ Generosidade, Crueldade”.

As disputas entre polos é explicitada no segundo ato da peça, “A guerra dos princípios”, constituído por um longo e denso monólogo de Artaud, como personagem, em uma arenga sobre os opostos, os choques, as inversões: entre o “peixe da perfídia da religião de Ictus” e a religião de Elagabalus; a civilização que transvia em barbárie; o chicote franco do panteísmo que fustiga a unidade monoteísta; a pãsexualidade que excede o recato da norma; “Duas Imagens do Espírito feito Carne/ y q Lutam com a Carne”. Central à estrutura dramática do texto, nessa brusquidão de princípios em intensa te(n)são está a contração de “Macho y Fêmea”, que “ao mesmo tempo se Devoram, se Misturam y Separam suas Características”. Movimento que perpassa a peça em dimensão humana, cósmica e artística: mênstruo y esperma, lua y sol, teatro y vida.

Afinal, em teat(r)o a palavra não é uma forma vazia que esteriliza, mas o que “torna Possíveis as Coisas, excitando-as com o Fogo q a Sustenta”. Por isso Heliogabalo é coroado anarquista: sua anarquia fecunda o sentido da unidade dentro da multiplicidade, proclama o múltiplo que, espraiado, acaba por indiferenciar a diferença. No último ato, justamente “A anarquia”, retoma-se o fio dramático do primeiro na sucessão de intrigas e mortes que levam à coroação de Heliogabalo e à extensão ao império romano da anarquia aurífera que já entronizara em seu “Sacerd’Ócio Siriano”. A androginia escandalizante, as castrações, assassinatos, pederastias e arbítrios desvairados nas coisas do Estado ocupam o ato final, desfile da desordem e da “insurreição sistemática”, antes de tudo dirigida pelo e contra o próprio imperador. O trono, assim, também vira palco de teatro: “Estado de Febre Fogosa/ Anarquia Perigosa;/ Teat(r)o, Poesia, Mirações/ Concretas pulsões./ Analisadas na Manía./ Heliogabalo do Trono Romano/ Faz Poesia”.

Seu reinado pândego, que dura três anos, culmina no assassinato violento do imperador e sua mãe Soêmia, atirados por fim ao rio Tibre: imagem concorde com os afluxos de sangue e esperma que cingem Heliogabalo desde sua nascença. Na deglutição de Zé e Fernando, o texto, que em Artaud já é atual, transa as tensões que pulsam em nossa contradição brasileira: irradia as forças cósmicas e gozosas, “traduz a androginia para a transgeneridade de hoje”, como afirma o parceiro de Zé, ao mesmo tempo em que, na desconstrução da autoridade, encena uma política que se autodestrói. “A verve de Heliogabalo, Zé costumava dizer, era muito essa verve do Bolsonaro, do anarquista que destrói o Estado por dentro”, comenta o dramaturgo.

Também se lembra Fernando, que começou a trabalhar com o fundador do Oficina em 2016, da generosidade vibrante e aberta ao novo de Zé Celso, que “estava trabalhando com uma pessoa 50 anos mais jovem e sempre ouvia minhas propostas, sempre interessado, pois ele queria vida, contemporaneidade pras obras”. É o caso do que pensavam para a escolha do ator a interpretar Heliogabalo: “A gente estava procurando uma jovem trans ou travesti. Foi difícil convencer o Zé, que queria um rapaz jovem, mas teve um momento em que ele se interessou tanto que passou a ler Paul Preciado, Judith Butler”.

Se Zé Celso é o diretor que melhor compreendeu e praticou a crueldade, vibrou nos movimentos sísmicos de Artaud, pôde assim levar o teatro ao “ponto limite da subversão” – tanto que Lacan aparece em certa cena e recrimina “Antonin Artaud está Execrado! Fissurado!/ Heliogabalo está Cancelado!/ Nas praças deve ser Chicoteado” –, fazendo do ato dramático, ainda, “realidade enfurecida”, jogo de forças que “espreme a ordem estabelecida” e sustenta uma outra vida, fundada no “paroxismo ao culto da Arte”, na “busca do Rito y da Poesia no mais absurdo Esplendor”: afirmação da vida no teatro e do erotismo na criação. Assim, perverteu o signo de Saturno, “Opressão Injusta do Destino”, em signo báquico que se afirma forma vitoriosa do tempo.


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