Entrevista coletiva: Fabiano Calixto

Entrevista coletiva: Fabiano Calixto
O poeta Fabiano Calixto em retrato digital de Pedro Mohallem (Foto: Reprodução)

 

Desde o primeiro anúncio de que Fabiano Calixto lançaria um novo livro de poemas, seus leitores já conversavam por aí sobre o que viria desta vez. Já são mais de 20 anos publicando poesia e, a cada livro, tanto reconhecemos o melhor de que Fabiano já se mostrou capaz antes, quanto somos surpreendidos por um poeta que se mostra melhor e mais vivo ainda. Aproveitando a chegada de Fliperama (Corsário-Satã, 2020), reuni uma parte de seus leitores para essa entrevista, uma longa conversa do poeta com gente que tem lido seus livros e acompanhado seus passos e papos desde o início.

Fabiano Calixto nasceu em Garanhuns (PE), em 8 de junho de 1973, e vive em São Paulo. É poeta, editor e professor. Doutor em Letras (Teoria Literária e Literatura Comparada) pela Universidade de São Paulo (USP). Publicou os seguintes livros de poesia: Algum (edição do autor, 1998), Fábrica (Alpharrabio Edições, 2000), Música possível (CosacNaify/ 7Letras, 2006), Sanguínea (Editora 34, 2007), A canção do vendedor de pipocas (7Letras, 2013), Equatorial (Tinta-da-China, 2014), Nominata morfina (Corsário-Satã, 2014) e Fliperama (Corsário-Satã, 2020). Divide, com a poeta Natália Agra, os trabalhos da editora Corsário-Satã, a casa e os cuidados com os gatos Bacon Frito e Panqueca. É um dos editores da revista de poesia Meteöro. No campo musical, está preparando o primeiro disco de sua banda de rock, o Gabiru Attack, e, ao lado de Leoni, Lourenço Monteiro e Humberto Barros, participa do coletivo sonoro O Hipopótamo Alado.

Muito obrigado ao Fabiano por topar essa conversa e, igualmente, a todos os entrevistadores por embarcarem rapidamente: Adriane Garcia, Carlos Orfeu, Chantal Castelli, Claudia Sehbe, Dalila Teles Veras, Diego Vinhas, Dirceu Villa, Eduardo Jorge, Eduardo Sterzi, Fabricio Corsaletti, Heitor Ferraz Mello, Jeanne Callegari, Júlio Mendonça, Leoni Siqueira, Marcelo Ariel, Marcelo Lotufo, Marcelo Montenegro, Michaela v. Schmaedel, Nícollas Ranieri, Rosana Chrispim e Simone Brantes.

Como o leitor perceberá logo, é uma entrevista empolgadíssima: eu me empolguei com os convites, os entrevistadores se empolgaram nas perguntas e, para nossa sorte, o poeta se empolgou para responder tudo com cuidado, detalhes, profundidade. Por tudo isso, tenho certeza de que aqui está, sob o olhar agudo e na voz de um dos principais poetas das novas gerações, um registro precioso de suas referências, seus processos, suas ideias. Viva!

Tarso de Melo – Fliperama reúne poemas dos últimos dez anos e apresenta sua poesia de volta ao verso, depois de Nominata morfina (2014), em que você explorava outras fronteiras para o poema, ou melhor, implodia a prosa. Como você vê a relação entre esses dois livros e, também, a forma diferente como (cor)respondem ao nosso tempo?

Bem, acho que são livros diferentes que guardam pontos de contato – o que observo com maior clareza na camada expressiva de ambos os trabalhos, naquilo que têm a dizer, em sua pele enunciativa. Claro que quando compus os poemas de Nominata morfina eu era outro sujeito, era outra vida, outro tempo, e isso, como sabemos, atua fortemente na composição temática do poema – que é um trabalho de observação, reflexão e de busca formal. E é justamente na forma onde acredito estar a grande diferença (a diferença, digamos, mais clara e visível, perceptível desde a mancha dos poemas nas páginas) entre esses dois trabalhos: o poema em prosa e o poema em verso. Talvez o Nominata morfina tenha uma harmonia composicional que o Fliperama não tem. Ambos, ao final, operam em caminhos esculturais diferentes, como você bem observou. Esculturas de realidades temporais díspares que apontam para as mesmas ruínas de sempre. Nos anos que compus o Nominata morfina a realidade era outra, assim como eram outras minhas angústias, visões e preocupações políticas e poéticas. Estava muito encasquetado com questões formais, coisa do verso mesmo (sua construção, seu ritmo, sua unidade, sua plasticidade etc.) – o livro foi escrito em sua maior parte durante o meu mestrado, que foi um período onde questões intrincadas do verso me interessavam muito. Ao mesmo tempo, estava experimentando a escrita de teatro e de roteiro de cinema, então, de algum modo, essas tintas também compunham a paleta de cores do livro. Optei pela escrita de poemas em prosa a partir dessa crise com o verso. O poema em prosa é uma espécie de partitura bizarra, cria atritos, caos. Então, é um livro onde a fala/dizer explode (tensão/extensão) e a respiração do leitor imprime o ritmo, já que a partitura é feita de manchas completas, em linha reta.

Estava pensando se a discussão sobre o verso não seria, naquele instante e na verdade, uma questão morta. Isso me encucava – e, de alguma maneira, ainda me encuca, ainda que por outras perspectivas. A morte (que pode também ser lida como o fracasso da civilização) ronda muitas peças do livro – a capa é ilustrada por uma foto em preto e branco de um pixo que um poeta-calígrafo amigo meu fez num dos muros do Cemitério da Consolação, em São Paulo. A morte da carne, a morte do pensamento, a morte da sociedade. O Victor Heringer, em um texto chamado “O muro contra a morte”, onde cita o Nominata morfina, escreve que todos os caminhos que fazia de sua casa para o trabalho eram ladeados por cemitérios. São Paulo tem mesmo esse espírito de morte rondando, cerceando – em suas múltiplas e mais absurdas e violentas possibilidades. O Estado mata de fome, a polícia mata de tiro. A elite, esse câncer, é o agente da morte.

Buscava também algo que realmente desse conta dessas tensões e conflitos constantes que assombram o espaço urbano e imprimir nessas percepções um ritmo interior dionisíaco (através da modulação da linguagem, da configuração melódica da língua), que brindasse à existência, que defendesse a alegria como um princípio, como uma bandeira, como um destino, tal qual aquele belo poema de Mario Benedetti. Um livro inesperado, fora da lei. Uma “poesia furiosa dos atores do Brás, das cortinas e ruínas cafajestes e dos seus diálogos aparentemente banais” (saravá, Rogério Sganzerla!), uma poesia do excesso e do crime. Delirismo – “meu delírio é a experiência com coisas reais”, como canta o Belchior em seu brilhante e corajoso Alucinação (1976).

Alguns autores foram essenciais para esse acerto de contas espiritual e material com o verso e para todo o processo de composição. O simbolismo – todo. O monumental Panorama do movimento simbolista brasileiro (1952), de Andrade Muricy, é um dos meus livros preferidos. O Baudelaire do magnífico O spleen de Paris (1869) – e também, em larga medida, de Os paraísos artificiais (1860). O extraordinário Rimbaud de Uma temporada no inferno (1983) e Iluminações (1886). Cruz e Sousa do absurdo Missal (1893), sobretudo. (Há um poema no Missal, o “Noctambulismo”, que costumo imaginar como uma espécie de amuleto do Nominata morfina – até porque a ideia do livro de poemas em prosa e as reflexões sobre o verso foram, lá no início, instaladas muito por conta dessas (re)leituras do sempre essencial Cruz e Sousa: “Enquanto, pois, lá fora, o Carnaval em fúria gralha, grasna e grulha, num repique macabro de guizos jogralescos, uivando uma língua convulsiva e exótica de duendes e noctâmbulas bruxas walpurgianas, prende-te, ó deus do Tédio, Mergulhador dos Mediterrâneos da Arte!”). O monumental Livro do Desassossego, de Bernardo Soares/Fernando Pessoa, cuja leitura é sempre muito impactante. O Machado das Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) foi também fundamental – no Nominata morfina dialogo diretamente (em intensidades diferentes) com os capítulos LXVIII e LXIX e, indiretamente, com todo a obra-prima machadiana.

A poesia beatnik, que andava lendo muito, foi também fonte de água límpida, principalmente Allen Ginsberg, cuja poesia venho traduzindo vagarosamente desde então (chamo, em homenagem a Haroldo de Campos, translator maximus, de transluciferações calixtotélicas); e Lawrence Ferlinghetti, cujo ótimo livro Poesia como arte insurgente acabo de traduzir para a Editora 34 e que deve sair no fim deste 2020 – e também traduzo uma grande antologia dele, em parceria com a Natália Agra. E, por falar em Haroldo, suas Galáxias (1984), o fundamental livro-sonho, livro-inventor, livro-elétrico-eletrônico, também foi essencial nesses anos loucos – “o povo é o inventalínguas na malícia da maestria no matreiro da maravilha no visgo do improviso”. Cito também a explosão de supernova que é a obra do chileno Roberto Bolaño (obra que causou um forte impacto em minha sensibilidade lírica, em minha vida de leitor, em minha vida toda; obra que toca as tensões violentas e as absurdas contradições políticas da América Latina) – Os detetives selvagens (1998), com sua beleza estratosférica e sua alteridade radical, é um monumento sul-americano.

Quando estava compondo o Nominata morfina, mudei-me do ABC para o centro de São Paulo (2010) e vivíamos outras experiências e expectativas políticas, com campos abertos para novas, inventivas e positivas possibilidades de organização social, de novas existências e utopias possíveis. Em determinado momento, a desvairada cidade de São Paulo parecia que ia decolar, se tornar uma cidade agradável para viver, havia uma positividade impressionante no ar, movimentações ricas e interessantes. Nesse instante, o Paranoia (1963), o clássico absoluto do Roberto Piva, adquiriu cores vivíssimas ali. Chegam as Jornadas de Junho de 2013, as ruas se enchem de gente, as manifestações populares se multiplicam, a esquerda (que se encontrava no poder) vacila, a direita toma conta e o país se torna esse esgoto fétido que é hoje. Essa experiência também cruza o livro de maneira muito intensa.

O cinema foi central naqueles anos. Estava ligadíssimo no expressionismo alemão, a trindade das sombras Robert Weiner, Fritz Lang e F.W. Murnau (torções, ângulos angustiantes, sombras pesadas, monstruosidades – busquei isso tudo no Nominata morfina). Godard, sempre e para sempre – o mais jovem de todos os cineastas. Acho que foi o tempo em que mais vi e revi Sganzerla (que é um dos meus cineastas do coração). Busquei, ao meu modo, aquele espírito anárquico que Sganzerla escreve em seu lindo e potente manifesto “Cinema fora da lei” (1968): um trabalho “brasileiro liberador, revolucionário também nas panorâmicas, na câmara fixa e nos cortes secos”. A instabilidade do cinema que tanto interessava a Sganzerla se cruzava com a instabilidade do poema, problema no qual eu estava metido. Cortes secos imagéticos, subversões, paisagem expressiva, ritmo. É aquilo: a instabilidade “também da nossa sociedade, da nossa estética, dos nossos amores e do nosso sono”. Profeticamente, o Sganzerla fecha seu manifesto com o seguinte item: “Nesse País tudo é possível e por isso o filme pode explodir a qualquer momento”. Onde se lê filme leia-se poema, esse era o sentimento, o espírito da coisa. Fugidio, indeciso. Num bizarro país onde tudo é possível.

A pintura de Edward Hopper, a melancolia e beleza de suas luzes derramadas sobre a paisagem existencial; o delirium ambulatorium, a marginália, a emancipação plena do corpo, a vida à queima roupa, a potente obra e o pensamento radical e vivo de Hélio Oiticica; o abstracionismo urbano de Vieira da Silva; a aventura formal e as pulsações simétricas de Luiz Sacilotto. Os quadrinhos de Robert Crumb, Will Eisner, Alan Moore e Neil Gaiman, principalmente, estavam, da mesma forma, dentre minhas curtições e pesquisas deste período.

A composição Nominata morfina (que vai de 2008 até 2014 – à exceção de um único poema de 2003) cruzou um tempo de imensas dúvidas com relação às conjunturas políticas e suas tensões e contradições pesadas. Jornadas de Junho e tudo mais. Vim de uma formação socialista e estava ligado em anarquismos – lendo teoria, dialogando com a moçada que atua nesse cenário, tateando aquelas formas possíveis de organizar a sociedade e prepará-la para o impossível (nada menos que isso a transformará) – e isso também é absorvido pela minha criação.

Por ser um livro extremamente urbano, os tons de sombra e cinza talvez imperem, mas há um arranjo de cores vibrantes que percorre todo o livro, seja na construção da frase, seja na paisagem expressiva. Muitas vezes, o Nominata morfina me parece um livro meio monstruoso (“Só o monstro é original na morte”, diz um verso-refrão de um poema muito bonito do Victor Heringer), um livro do excesso, de uma espécie de transbarroco papirocibernético, onde a ordem é desordem – “o belo é horrível, o horrível é belo”, diriam as bruxas de Macbeth (c. 1606) –, enquanto o Fliperama me parece recuperar, depois de uma sanguinária guerra e uma turbulenta travessia, alguma afetividade, apontar alguma síntese. Mas ambos são livros que se situam naquele modo de existir godardiano que é o pessimismo alegre e/ou o otimismo triste, que acaba por conjugar uma vida que se faz inquieta, fundando uma ontologia insurrecional. Ou, como Ferlinghetti escreveu em Poesia como arte insurgente (2007), “pessimismo da razão e otimismo da ação”.

Chamo o Nominata morfina de livro de gravuras. Expressionista. No final das contas, é um livro que toca em feridas, é experimental e político (não confundir com panfletário, com poesia aplicada no insuportável). Na verdade, toda minha poesia é política, desde a estreia, com o Algum, em 1998. Não tinha como ser diferente, vim da experiência criativa das ruas, operei sempre nessa frequência. Fui criado no ABC paulista, era metalúrgico nos anos 1980 e 1990, a fúria não é uma perfumaria, é um dado central da minha existência. Chamaram, aliás, o nosso pessoal (eu, você, Kleber, Danilo, Helinho) de angry young men do ABC paulista. Acho que faz sentido. Se em “Sangue ruim”, espetacular poema de Uma temporada no inferno (1873), Rimbaud fala em beber licores fortes como fossem metal fundido, nós, do ABC paulista operário, temos os próprios ossos feitos de metal pesado, o que sustenta nossa fúria e nos dá força.

Também operei com o caos neste trabalho. Gosto disso. Citações sem o aceno das aspas ou do itálico, citações falsas, informações enciclopédicas adulteradas, elementos policiais, traduções de poesia, de bilhetes etc. Esses detalhes são centrais para adentrar o universo do trabalho. No caso, por exemplo, da epígrafe dos Beatles (de uma canção de George, “Only a Northern Song”, pela qual sou completamente apaixonado) não utilizo a letra oficial, isto é, da versão que saiu em Yellow Submarine (1969), mas a versão que saiu naquele esplêndido apanhado de raridades chamado Anthology (2000). Está ali toda a poética que o Nominata morfina seguirá a partir das páginas seguintes: “If you’re listening to this song/ You may think the chords are going wrong/ But they’re not/ I just wrote it like that”. É o mapa. Na letra, de uma versão a outra, George muda o pronome pessoal: na versão oficial, We; na versão da antologia lançada nos anos 2000, I. São pequenos detalhes, mas muito significantes. É esta, aliás, a essência desse trabalho. Areias movediças de linguagem. Mixagens, montagens (penso em F for Fake [1973], de Welles, onde a montagem é que dissolve certezas, as dicotomias palpáveis). Penso em Tom Zé: “Eu tô te explicando/ Pra te confundir/ Eu tô te confundindo/ Pra te esclarecer”. Há uma pequena dramaturgia nonsense no livro (“Delirismo – uma peça sobre o tempo [para vozes]”), onde dois personagens (O Cacto Mentecapto e Uriah Heep) dialogam entre si e com inúmeros e absurdos personagens sobre inúmeros assuntos (e, ao mesmo tempo, nenhum). Poesia dramática experimental.

Queria, com o Nominata morfina, um libertário e vivo organismo de sons e cores que viesse da “boca do povo na língua errada do povo/ Língua certa do povo/ Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil”. Os barbarismos universais, as sintaxes de exceção, os ritmos inumeráveis. (Saravá, Manuel Bandeira!). As gostosuras todas da língua. Buscava a liberdade total. Nunca esqueci de uma frase de E.H. Gombrich em seu estupendo A História da Arte (1950) em que ele diz: “O artista não obedece a regras fixas […] intui o caminho a seguir”.

No Baixio das bestas (2007), um filme muito forte do Cláudio Assis, um cineasta que admiro deveras, há uma cena num cinema abandonado da cidade onde o doentio Everardo, o personagem de Matheus Nachtergaele, diz: “sabe o que é o melhor do cinema? É que no cinema tu pode fazer o que tu quer”. Essa frase muito me interessou ali, naquele instante. Levou-me ao Belchior de “Como o diabo gosta”: “Não quero regra nem nada/ Tudo tá como o diabo gosta/ […]/ E a única forma que pode ser norma/ é nenhuma regra ter”. Que levou-me, por sua vez, a um poema em prosa do Bolaño chamado “No hay reglas”: “No hay reglas. […] todas las reglas de construcción siguen siendo válidas sólo para las novelas que son copias de otras”. Minha sensibilidade e intuição estavam funcionando nessa frequência. Estava (e ainda estou) na fase mais plena de minha liberdade criativa. Então, esse espírito anárquico e crítico (que é, na real, o que sustenta minha trajetória) ia de encontro com aquilo que buscava naquele período: poder tudo com a linguagem. No caminho daquilo que escreveu o poeta francês Paul Valéry em seu “Discurso sobre a Estética”, de 1937: “Na floresta encantada da Linguagem, os poetas entram expressamente para se perder, se embriagar de extravio, buscando as encruzilhadas de significação, os ecos imprevistos, os encontros estranhos; não temem os desvios, nem as surpresas, nem as trevas […]”. É um livro bonito, denso, cheio de maus modos, fora da lei, herege, repleto de encontros estranhos, com seus desvios, surpresas e trevas. Nominata morfina é um passageiro sombrio passeando pela candy shop da poesia contemporânea. Suspeito que, com esse trabalho, alcancei o que queria.

Gosto do que o Carlos Lopes, guitarrista e vocalista do lendário Dorsal Atlântica (uma das minhas bandas preferidas), diz sobre o trabalho no n.1 da revista Tupinambah, que saiu em 2018: “Nominata morfina do poeta e tradutor pernambucano Fabiano Calixto é microfonia, mictório, sala de emergência. Calixto beatnik tropicalista pelas ruas de São Paulo. Pop e erudito. Baudelaire ou Augusto; Leminski gasturado; Sganzerla, Bowie, Barthes.”. Microfonia, emergência, contraculturas: sou uma cria do underground. O Carlos acerta nisso, ele entendeu o espírito da coisa.

Aproveitando a pergunta para comentar um pouco mais sobre o Fliperama e sua construção, caminhos, encruzilhadas e tal. Escolhi esse título porque queria algo que remetesse à memória da infância e da adolescência. Nesse sentido, há um forte elemento daquilo que chamam pop (que são as bugigangas da indústria cultural que consumimos durante a vida; noutras palavras, a própria vida existindo) e possui um tom claramente baixo, coloquial, brincante.

Não lembro exatamente o momento que o título surgiu. Pode ter a ver com a necessidade de revisão, de checkup geral na situação toda, que se encontra com o fechamento de ciclo que o trabalho representa para mim. Claro, nessa revisão entra a memória da infância e da adolescência como manancial criativo e instauração de um presente (justapondo todos os tempos num único aqui-e-agora) que cria condições que nos permitem também não esquecer do futuro. Pode talvez ter sido soprado pela a canção “Fliperama” de Tom Zé, um artista que gosto tanto e com quem minha poesia dialoga constantemente. Fliperama se conecta, ainda com outros títulos de extração popular que usei em outros trabalhos – como na antologia da minha poesia até então, A canção do vendedor de pipocas (7Letras, 2013); ou mesmo Fábrica. As grandes cidades, seus cinemas, lojas de discos, parques de diversões, ruídos e ruínas, tudo isso me vem à mente quando penso na origem do título desta minha nova coleção de poemas.

“Fliperama”, a palavra, além de já portar um indisfarçável gosto de reminiscência, de museu precário, mixa a casa de jogos eletrônicos, os arcades e o clássico fliperama de boteco (pinball). O espírito se funda na gostosa e constante brincadeira entre o lúdico e o lúcido. Como disse noutra ocasião, se o circo e o cabaré foram mananciais importantes para a vanguarda russa, os fliperamas, as histórias em quadrinho e os concertos de rock, acredito, nos fornecem elementos importantes e interessantes para a criação artística contemporânea.

“Você nunca imaginou, mas eu vi/ No luminoso estava escrito / Diversões eletrônicas/ Era um balcão de bar de fórmica vermelha” (Arrigo Barnabé). Os fliperamas dos centros das grandes cidades do Brasil nos anos 1980 e no começo dos anos 1990 eram lugares onde os moleques se encontravam para disputar partidas. Ali o sujeito tinha que ficar muitíssimo esperto, os punguistas e trapaceiros eram muitos. Não poucas vezes rolava uma desinteligência e não sobrava outra saída a não ser resolver no soco. Eram lugares vivos, belvederes eletrônicos, cais do caos do mundo-cão, de onde era possível observar, em pequena escala, as alegrias e as ruínas da existência.

Antonio, meu saudoso pai, foi proprietário de um bar durante boas décadas. O lendário Bar do Alemão, na pacata e operária Vila Alzira, em Santo André, no ABC Paulista. Ali acontecia, como se diz, de um tudo. Bebuns clássicos (uns, muito talentosos; outros, desastrados funâmbulos da existência), truco, sinuca, pebolim, rifa de frango aos domingos, torresmo, biriba, jogos de futebol na TV regados a cerveja e tiração de sarro, sertanejo raiz, birinaites, gororobas, faniquitos, siricuticos, sassaricos, piripaques, ziquiziras, algaravia, muvuca, farra, fuá. Muitas bandas da região ensaiaram no cômodo do fundo do boteco do meu pai – o Colapso Verbal, o Camisa de Vênus Cover (é, tinha isso), além de minhas bandas, o Scatter Terror e o Morte. E havia também, claro, os fliperamas e arcades. Cresci nesse boteco do meu pai. As disputas no fliperama entre os frequentadores do bar eram acirradíssimas e muito divertidas. Jogavam até quatro pessoas, e as apostas eram as fichas e as rodadas de cerveja acompanhadas de mortadela e salaminho com limão. Era muito legal. Isso entra, de muitas maneiras, no tecido compositivo do Fliperama.

Fliperama é, em suma, um livro muito político, anticapitalista, antifascista, contra a ininterrupta cretinização e sucateamento da vida, contra a destruição dos modos de existir neste planeta, contra o mainstream, contra o establishment, contra as sociedades de controle, o poder e os poderosos. Pero sin perder la ternura jamás! Uma obra de arte à favor da vida e da liberdade. Fliperama é uma ocupação de espaço.

Assim, o Nominata morfina e o Fliperama convergem nessa peleja, nesse movimento pendular, nesse chiaroscuro – caminhar confiante entre as ruínas. Os livros seguem caminhos diferentes que são ensolarados por paisagens (mentais e reais) também diferentes, porém habitam uma mesma poética e tratam de mesmas ruínas. E fecham um grande ciclo.

Eduardo Sterzi – Nas “Notas” ao final de Fliperama, você escreve: “Acredito que, com essa reunião de poemas, fecha-se um grande ciclo em minha trajetória poética. Novas coisas pelos novos verões por vir”. Acho que este é um momento decisivo para qualquer artista: aquele em que ele percebe (e assinala) que um ciclo se fechou e outro se abriu. É quando surge, realmente, a possibilidade do novo. Ficam aí, pois, duas questões. O que você mesmo, não de um ponto de vista crítico, mas de um ponto de vista propriamente poético, de dentro dos poemas e livros e na distância possível para quem os escreveu, vê hoje como as características principais desse ciclo que se fechou? E o que já entrevê, se entrevê, dessas “novas coisas” por vir?

Vou aproveitar para falar um pouco sobre essa trajetória. Esse ciclo que se fecha, começa na minha formação, no início dos anos de 1990, e está todo impresso em meus livros de poesia publicados até agora. Há muitas tonalidades e timbres diferentes no interior desse ciclo. Minha poesia começa a ser pensada de uma maneira mais organizada a partir do encontro entre a poesia concreta e a contracultura (o que o Leminski chamava de “pororoca”). Interessavam-me, portanto, a loucura política e libertária da contracultura (a poesia beat, o rock, a canção popular, o sexo livre, a maconha, a busca incessante por novos horizontes utópicos, a vida experimental) e a alta exigência da poesia concreta. (Além, é claro, dos grandes clássicos de sempre, como, por exemplo, o quarteto fantástico da poesia brasileira: João Cabral, Drummond, Bandeira e Murilo Mendes). Bem, como a poesia concreta (que para mim é uma contracultura geométrica) já foi chamada de “rock’n’roll da poesia”, me sentia completamente em casa. Tinha uma exigência muito grande com relação ao meu trabalho (e isso partilhava com meus jovens colegas de geração do ABC paulista). Depois, no fim dos anos 1990, surgem outras leituras que foram impactantes e muito caras para mim, como a de Robert Creeley, poeta muito bom, ligado ao Black Mountain College, e o pessoal da L=A=N=G=U=A=G=E poetry (Charles Bernstein e Michael Palmer, principalmente) – essas poéticas chegaram até a moçada através da divulgação de Régis Bonvicino, que era um poeta que, naquele instante, também líamos muito, assim como Carlito Azevedo, Júlio Castañon Guimarães, Josely Vianna Baptista, Arnaldo Antunes, Claudia Roquette-Pinto, Zhô Bertholini, dentre outros.

Minha trajetória poética tem um movimento de contração e expansão, como o movimento do coração. Na primeira fase, o poema mais condensado, sintético, fruto daquelas leituras e observações de mundo específicas. Uma visão contida, seca, objetiva, que vinha das leituras mencionadas. Sístole. Isso em Algum (edição do autor, 1998) e Fábrica (Alpharrabio Edições, 2000). Depois de Fábrica, fico seis anos sem publicar. A partir do Música possível (7Letras/ CosacNaify, 2006), inicia-se o movimento de diástole. É quando, dentro do mesmo grande ciclo, busco maior expressividade com minha poesia – que se torna vertiginosa, aberta, muito louca, e transborda a partir daí. Os versos mais longos, a sintaxe mais aberta, certa timbragem narrativa, a fala mais direta e coloquial, arruaças linguísticas etc. Mais humor, mais ironia, mais acidez, mais liberdade criativa. Isso se expande em Sanguínea (Editora 34, 2007), chega ao ápice, quando opto pelo poema em prosa, no Nominata morfina (Corsário-Satã, 2014), e o Fliperama reúne essas ruínas, sintetizando-as.

Assim, creio, que, além da fundição (metalurgia) das formas, a perscrutação da linguagem talvez seja uma das características mais marcantes dentro de minha trajetória. Uma certa tendência ao antipoético é perceptível. O amor, o afeto, a alegria celebratória da vida são colunas de sustentação importantes. A política sempre esteve presente de maneira muito forte (até porque escrever poesia já é uma forma de atuação política), além de um olhar bandeiriano curioso e demorado para o banal, para as minudências do cotidiano.

Pensando aqui, nessa trajetória, sempre busquei uma voz que não buscasse voz alguma. Para além da voz, busquei vozes. Por ser extremamente curioso, inúmeras poéticas me interessam. Partilho daquela “permanente esquiva frente a qualquer posição estável e segura”, que você tão bem observa na poética de Oswald de Andrade no seu ensaio A prova dos nove – Alguma poesia moderna e a tarefa da alegria (Lumme, 2008). Ou seja, correr riscos era o que me atraía em termos de composição. Poesia é risco, diria o grande Augusto de Campos. Também acredito nisso.

Um grande ciclo se fecha na minha poesia pois a vertigem criativa de um certo humor passou. O que virá? Pra ser sincero, não sei direito. Há apenas uma névoa repleta de fragrâncias novas e intuição. Mas, para tentar pensar contigo e com os leitores, imagino que, para os meus trabalhos seguintes, a objetividade tem me interessado mais, assim como síntese. Quero operar por outras frequências, talhar outras fendas na realidade. A poesia da Natália Agra, poeta que tanto admiro e com quem dialogo muito, aponta, para mim, muitos e instigantes caminhos nesse sentido, através de sua poética sóbria e elegante. Esse diálogo, essencial, vai ajudar a apontar os novos rumos. A releitura também me interessa muito hoje em dia. A obra dos antigos me interessa cada vez mais – afinal, é lá que está a biblioteca do futuro. Penso, para minha poética, em poemas objetivos e concisos, como cacos de vidro nos muros das antigas casas de periferia. Falar com os becos sem saída, como escreveu Paul Celan.

Dirceu Villa – Calixto, pediria apenas que falasse um pouco sobre a composição. Quando escrevi o texto para sua antologia em Portugal destaquei aspectos interessantes sobre seu emprego de linguagem, o seu notável ouvido para a língua, & seria também interessante saber de você como vê a variada composição dos seus poemas, como isso acontece, & mesmo se há alguma história curiosa para partilhar conosco.

A composição. Ah, a composição. Bem, o modo de compor também se altera com o tempo. Talvez não tanto quanto outros aspectos da vida e da escrita. Talvez. O processo de composição tem muito mistério. Para mim, a escrita de poesia pode partir de absolutamente qualquer situação. Estalos de lenha na fogueira. Estrelas cadentes na noite escura. Sempre foi assim e, no geral, segue sendo do mesmo modo. Os mananciais principais continuam sendo a leitura e a rua (caminhar pela cidade é lê-la). A escrita quase sempre nasce depois de grandes períodos de leitura; ou de caminhadas, viagens, paisagens inusitadas. Deglutição, assimilação, regurgitação. Antropofagia. Quer dizer, estou trancado em casa por conta da pandemia de covid-19 e estou relendo o Rosa. Ler Rosa é instigante, dá vontade de escrever. A vida dá vontade de escrever. Pequenos acontecimentos, acontecimentos estrondosos. O que acontece no intervalo. Coisas extraordinárias (como a prosa de Stendhal, como fotografias astronômicas), coisas banais (como séries de televisão, conversa fiada na mesa de bar).

Outro dia, estava assistindo a um show do Metallica recente, de 2019. Gosto de ver James Hetfield tocar guitarra (uma das guitarras que mais aprecio na escola do heavy metal), sua velocidade, precisão e técnica, assim como suas composições (il migglior fabbro), são impressionantes. Costumo dizer para meus amigos que estou sempre com um ouvido ligado nas aranhas de João Gilberto e o outro na sofisticada maquinaria de precisão milimétrica de James Hetfield. Aí, vendo o show, percebi que nos dedos de suas mãos (à exceção dos polegares) lê-se as palavras Riff, na mão direita, e, na esquerda, Life. Riff Life. Riff Life tem uma textura silábica muita sonora, é um riff. Como um doublet carrolliano: RIFF rift rife LIFE. É uma declaração de amor a um ofício. Acho isso muito bonito. Bem, então achei esse fato muito interessante e trouxe para minha escritura – uso em um dos meus novos poemas.

O Dylan disse, sobre Rough and Rowdy Ways (2020), seu novo e ótimo disco, que as “canções parecem se escrever sozinhas”. É curioso, porque no processo compositivo acontece isso muitas vezes. Tem muita razão, mas tem muita intuição também no poema. Se em certos casos demoramos meses (ou anos) para terminar um determinado poema, noutros, o poema pode surgir pronto na cabeça e é só transcrever (uma espécie de incorporação). Claro que isso é fruto de toda uma complexa construção e relação de conhecimento que habita e pulsa em nossa paisagem mental, supernova de memória, fruto de nosso repertório intelectual, mas não deixa de ser curioso e misterioso.

Estou sempre ligado na oralidade da língua (característica que você observou precisamente no belo texto que escreveu para minha antologia portuguesa, o Equatorial [Tinta-da-China, 2014]), que está sempre muito presente em meus poemas. Outra lição banderiana certamente. A rua, a atenção à rua, ouvir o que a rua tem a dizer. A música bonita, o lirismo gauche e a plasticidade trôpega da linguagem das ruas. Tudo isso me interessa demais.

Os motivos são muitos e isso acaba chegando à questão forma que, como disse acima, me interessa muito, não consigo vê-la apartada do fundo. Sou muito curioso quanto a formas, sonoridades, novos experimentos. Isso tudo vibra em mim como música. Fui cultivando essa curiosidade durante a vida, sem preocupação em encontrar um timbre único. Experimentando o experimental. Agora, nessa fase da minha trajetória, e, como disse, como fim de um ciclo e início de outro, há, nos novos poemas, uma organização diferente com relação à forma, harmonia, uma maior nitidez geométrica no que procuro para minha poesia hoje. Outras arquiteturas respiráveis possíveis.

Dalila Teles Veras – Que instrumentos ou padrão de medida usaria o poeta Calixto para definir a distância entre “estudando a rocha/ estudando a rocha/ seca e impenetrável// – noite suada – um pirilampo/ deixando no cansaço/ pegadas de luz!” (de Fábrica, Alpharrabio Edições, 2000) e “Zap para Fabiano Calixto” “defender a alegria como um destino” (de Fliperama, Corsário-Satã, 2020)?

Ah, a paixão. Naqueles tempos de Fábrica era tanta paixão e a paixão movimentou. Era tudo muito novo, muito vivo. A paixão continua, claro, mas de outro jeito. Não dá para deixar de lado os olhos abertos que o mundo proporciona com a experiência. Não há mais ingenuidade, as utopias vão vacilando, e, por outro lado, o conhecimento se amplia e nos mostra por onde seguir. Nec spe, nec metu.

Eduardo Jorge – Caro Fabiano, é um argumento comum a questão da evolução de um estilo. Minha pergunta, no entanto, refere-se precisamente ao seu livro Fábrica publicado pontualmente nos anos 2000. Considerando que você publicou Algum, em 1998, gostaria de saber mais o que não mudou de lá para cá. Imagens que insistem, que retornam, refrães, a relação com a música e a extração de elementos da vida cotidiana. Será que esses aspectos estariam presentes em mim, como leitor ou eles, mesmo em segundo plano, permanecem nos teus poemas?

Creio que você tem razão. Muitos elementos daquela poética do Fábrica estão também no Fliperama. Os temas se cruzam o tempo todo desde o início. Como disse na resposta ao Sterzi, o Fliperama fecha um ciclo que começa nos tempos de Fábrica, que é um livro operário, que tinha o ponto de vista de um sujeito no chão de fábrica, sapato bico de aço e João Cabral debaixo do braço. A prensa pesada moldando metal sem parar enquanto voava na mente: “Flor é a palavra/ flor, verso inscrito/ no verso, como as/ manhãs no tempo”. Tem uma exigência muito grande em Fábrica. E acho isso muito importante – central na minha juventude. Há uma organização ali que depois, por opção, abro mão. Vou buscar, num movimento de diástole, uma respiração maior e mais longa. É curiosamente um livro onde dialogo menos com a música e é também um livro muito político (havia começado a faculdade, estava interessado em política e lendo textos comunistas, cheguei inclusive a quase me filiar ao PC do B, não o fiz; ainda bem) e, nisso, também um livro utópico, política e poeticamente. Um livro que acreditava num novo e possível Brasil que, infelizmente, naufragou. O saudoso professor João Alexandre Barbosa, uma das primeiras e generosas pessoas que deram atenção ao Fábrica, uma vez me disse que gostava muito da arquitetura do livro porque nada ali derramava. É a sensação que tenho hoje ainda, vinte anos depois. Há uma beleza e há esperança muito grandes no livro.

Longe da organização arquitetural do Fábrica, o Fliperama é mais casmurro, propositalmente mais desorganizado e caótico. Na paisagem geral, Fábrica é um local de trabalho; Fliperama, de vadiagem e curtição. Num, a preocupação excessiva com a forma, com cada palavra e som, a exclusão da primeira pessoa, a organização; no outro, o desleixo construtivo, a curtição com cada palavra, o ruído, a explosão do dizer, a arruaça. Ambos, porém, convergem na insistente e resistente alegria de continuar a fazer fazendo, apesar de tudo. A insatisfação está em ambos – minha insatisfação crônica. C’est la vie.

Agora a relação da minha escrita com a música é sempre muito clara mesmo – principalmente a partir de Música possível. E estreitou-se tanto que voltei a fazer música. E, para completar a resposta, a música não se dá apenas na citação direta de compositores ou obras musicais, mas no próprio miolo linguístico do verso. Minha poesia canta uma música mais forte do que a morte.

Heitor Ferraz Mello – Nos seus últimos trabalhos, reparo uma exploração ampla das possibilidades do verso. Você absorve tanto a concisão de um haicai quanto o ritmo expandido da poesia beat, tanto os elementos visuais, de um leitor da poesia concreta, quanto o soneto. A linguagem também entra nesse jogo, numa variação de tom vertiginosa. Como você pensa formalmente a sua poesia? São diálogos com a tradição lírica e antilírica?

Como disse lá em cima, em resposta ao Sterzi, gosto de investigar formas, poéticas, linguagens, sou muito curioso e muita coisa me interessa. (Isso não significa que goste de tudo, é importante salientar – “minha sede não é qualquer copo d’água que mata” e quem gosta de tudo, não gosta de nada). Mais que voz, vozes – um pandemônio, um tumulto. Experimentar caminhos diferentes sempre me interessou muito. Daí a pororoca: contracultura e poesia concreta. No movimento sístole-diástole que comentei acima, o Fliperama, nestas veredas formais múltiplas, é uma síntese de todos os outros livros, do meu rolé com a poesia até aqui.

Sim, claro, há um diálogo com a tradição lírica e antilírica. Safo, Bocage, Parra, Murilo Mendes, Richard Hell. É aquela movimentação poética/política que também é central na arquitetura da minha poesia. Chiaroscuro. Poesia e porrada. João Gilberto e Judas Priest. Em constante tensão. Ter consciência das ruínas, mas não arruinar-se, não dar de comer aos urubus, não viver só para isso. Quer dizer, a tradição para mim é importantíssima. A releitura me dá imenso prazer. Dante, Edgar Allan Poe, Baudelaire, Rimbaud, Cruz e Sousa, Qorpo Santo, Augusto dos Anjos, T.S. Eliot, Amiri Baraka, Sophia de Mello Breyner Andresen, Laís Corrêa de Araújo, Orides Fontela, Patti Smith, Laurie Anderson, Phil Lynott, Pedro Lemebel, Tracy Chapman, Lenora de Barros, Sarah Kane, dentre outros meliantes brilhantes e inventivos. No boteco que frequento, todos esses poetas bebem.

Gosto de escrever desde o poema epigramático de um ou dois versos apenas ou o haicai, passando pelo poema visual e pelas quadras, ready mades, desapropriações, transalucinações, até o poema longo, narrativo, monólogo ou para muitas vozes. O que quero com o poema é o que definirá a forma a ser usada. É uma maneira também de criar uma zona de sombra que não permita detectar facilmente uma dicção. Que é, como comentei um pouco nas perguntas anteriores, um caminho que resolvi seguir. Pisar em campo minado. Não ter uma característica formal nítida nem de fácil enquadramento. Cultivar a metamorfose ambulante, sem aquela velha, sacal, velhaca, dogmática e ingênua opinião formada sobre tudo. Olhos e ouvidos atentos para a paisagem e os sons do mundo.

Rosana Chrispim – Ao v(l)er o seu Fliperama, muitos poemas transformam-se em quadros imensos – verdadeiras Guernicas – e trazem uma composição de elementos que vão da utilização “convencional” do verso ao poema visual, valendo-se de distintas referências, não só de manifestações artísticas como também do cotidiano derreante a que somos submetidos. Outros poemas, a meu ver, poderiam (e soam como tal) ter sido textos em prosa, sem perder a força. Certamente isso vai além do experimentalismo. Como você explica essa multiplicidade de linguagens dentro da linguagem poética, inclusive em relação ao leitor?

A questão do verso, da forma que se quer dar a determinado poema é sempre uma questão central. A multiplicidade de caminhos, como disse um pouco em cada resposta dessa deliciosa entrevista, tem a ver com minha curiosidade por sabores diferentes e com minha formação de leitor. Na questão sobre uma certa prosa contida em muitos dos poemas (claramente nos momentos distópicos do livro, mais ao final), entra também a questão do verso, do corte e construção do verso. Busquei, principalmente nesses poemas, uma certa narratividade. Essa narratividade tem uma música e os cortes vêm não só dessa busca, mas também da construção de cada verso, com seu tempo e respiração específicos. Essa sensação prosaica também vem da oralidade que imprimo aos versos. Aí também entra a modulação tonal (o alto e o baixo), com que trabalho o tempo todo.

Quanto ao leitor, fazendo coro com o descontente maestro Baudelaire, “o primeiro visionário, rei dos poetas, um verdadeiro Deus”, e para a saúde de todo mundo (e sabemos que poesia é saúde), bem o leitor, hipócrita, meu igual, meu irmão, pode gostar, pode não gostar. Essa preocupação realmente nunca tive (por não fazer a menor diferença nos caminhos que minha obra seguirá ou deixará de seguir).

Carlos Orfeu – Você publicou em 2000 seu primeiro livro, Fábrica, em 2006 publicou Música possível e outros livros no suceder dos anos. Agora em 2020 você lança Fliperama. O que mudou em seu processo para pensar o poema? E o que Fliperama se difere dos livros anteriores?

Bem, acho que uma boa parte da resposta à sua pergunta está diluída em outras respostas da entrevista, deste modo, vou tentar complementar. Sobre processo compositivo do poema com o passar de tanto tempo, como disse, não mudou de uma maneira radical, os mananciais continuam sendo os mesmos. Mas há diferenças no modo de absorver e sentir as coisas do mundo. O que é normal, afinal, vamos acumulando conhecimentos com o passar dos anos. Na juventude, me lavava muito a sério com minha alma carrancuda de jovem leitor casmurro. Era muito preocupado, à época do Fábrica, com as coisas da poesia. Depois, o tempo passando, fui relaxando e anarquizando geral. O Fliperama é o resultado máximo disso – além de ser, como disse, uma espécie de síntese de todo meu trabalho até aqui.

Marcelo Ariel – Como você lida com o fantasma da derrisão e com um certo cansaço e/ou sensação de impotência que como uma névoa surge no horizonte de quem trabalha com cultura em nosso país de tempos em tempos? Qual a importância do heavy metal, do punk e do rap em seu trabalho poético: você poderia elencar discos que foram essenciais para sua formação e por quê?

Há um verso do belo “Improvisation in Beijing”, de Allen Ginsberg, que traduzi por “Improviso em São Paulo”, que diz: “Escrevo poesia porque nesta manhã acordei tremendo de pavor. Que mais eu poderia sentir em São Paulo?”. Troque-se “em São Paulo” por capitalismo e é essa a situação dos trabalhadores de cultura neste país. Acrescente-se a isso, pandemia, crises como projeto, fascismos explícitos e pronto, está completo o filme de terror. É só ver o que está acontecendo no setor cultural neste exato momento para comprovar. É só conversar com artistas e trabalhadores da cultura para sentir o drama. Trabalhar com cultura neste país é um desespero. Acordamos todas as manhãs pensando em como pagar as contas do mês seguinte. Não tem descanso. É uma barra pesada. Muitos dos meus amigos que trampam com cultura estão muito encrencados em matéria de grana. Como lidar? Como fazer para reverter? Ninguém sabe exatamente. Mas sigo, leão do norte, firme e forte.

De minha parte, continuo de mão dada com quem está na luta junto, com quem soma, continuo trabalhando incansavelmente para manter as coisas em movimento. Fazendo meus livros, mantendo a editora Corsário-Satã (que dirijo com a poeta e editora Natália Agra) de pé, editando a revista Meteöro, compondo canções, inventando caminhos e mordendo o que posso. Dançando para não dançar, como nos ensinou nossa ávida-dádiva-diva maior, a Rita Lee. E, escrevendo e editando poesia, já estou nas dunas do “não, não tenha juízo”. E desse jeito pretendo continuar. A vida, apesar de tudo e afinal, é muito boa, e só temos essa, vou chupá-la até o caroço. Segue o jogo.

Sobre o heavy metal, o punk e o rap, bem, são a divina tríade da música underground – a música radical feita por aqueles que a sociedade-lixo arrebentou e excluiu. São estilos que me atraíram desde sempre: pesados, muito energéticos, revigorantes, inteligentes, terapêuticos. O heavy metal foi a primeira coisa na música que comecei a curtir muito – em 1983, com a imensa turnê do Kiss no Brasil, e depois com bandas como Black Sabbath, Metallica, Judas Priest, Motörhead, Mercyful Fate, Slayer, Dorsal Atlântica e Sepultura, dentre inúmeras outras. Era, nos anos 1980, um dos sons que circulava pelas vitrolas da moçada das periferias e favelas, dos moleques operários dos bairros onde morei e das fábricas onde trabalhei, dos outsiders do centro da cidade, dos que não se enquadravam, dos que odiavam a burguesia e o capitalismo. O primeiro disco de heavy metal brasileiro é de uma banda do Pará. O primeiro clube a tocar fitas e LPs de metal no Rio de Janeiro, o Caverna, se localizava em São João do Meriti. Carlos Lopes, uma das figuras centrais do underground brasileiro, em seu essencial Dorsal Atlântica – Uma história em quadrinhos (edição do autor, 2019) – uma obra em quadrinhos maravilhosa, roteirizada e desenhada pelo próprio Carlos, que conta parte importante da história do underground nacional – diz, sobre o Caverna, que “Seus vizinhos eram a linha de trem e um cemitério”. Naquele momento da cena do metal nacional, talvez nada fosse mais sugestivo. Quer dizer, na minha juventude, em Santo André, na cidade, no meu bairro, a parada era mais ou menos essa: havia fãs de metal, de punk, de rock, de rap, de samba, de sertanejo, de pop. Era variado. Era muito legal. (Situação antípoda à sojificação que empesteia o ambiente da música nacional hoje em dia). Mas a cena de metal na região é lendária. Velho trenzão suburbano da Estação Celso Daniel até a Luz (antigamente), e lá estavam os Headbangers do ABC, camisetas do Metallica, ou do Venom, ou do Raven, com seus tênis cano alto, suas calças “pernilongo”, sua coragem e confiança na busca de um mundo renovado, como uns Warriors (do clássico absoluto de Walter Hill, Warriors – Os Selvagens da Noite, de 1979) da região operária da Grande São Paulo, saindo de uma cidade a outra, enfrentando suas tensões e contradições, entranhados nos infernais e apocalípticos anos de 1980.

Tempos depois, descobri os Ramones e daí nasce a paixão pelo punk rock. Conheci o som dos nova-iorquinos ali por 1987, através de um maluco que frequentava o bar do meu pai. O cara era do punk, já véião, old school e tal. Fazia uns bicos ali na região. Vivia falando modos de sabotar o sistema, de virar o jogo contra os “porcos capitalistas”. Era utópico e muito gente boa. Um dia chegou lá no boteco, pediu uma carqueja e me jogou na mão uma fita cassete e disse: “Escuta isso aí, cara!”. Era o Road to Ruin (1978). Até ali, ouvia rock e metal e minha referência dos Ramones era “Sufirn’ Bird” (que era, na verdade, uma regravação do Trashmen, uma ótima banda de garage rock norte-americana dos anos de 1960) que tocava nos bailinhos nas domingueiras do Aramaçan, onde ia com amigos (e onde aconteceram shows e festivais de rock nacional históricos). Isso era tudo. Quando cheguei em casa, no começo da noite, e coloquei a fita com o Road to Ruin, puxa, aquilo foi absolutamente revolucionário na minha vida, no meu modo de encarar as coisas do mundo. Eram canções que me compreendiam. Lembro da bela balada de Dee Dee, “Questioningly” (“When I’m going home/ Whiskey bottle movie on TV/ Memories make me cry/ And I’m alone just me/ Just me, Questioningly”), como aquilo era um lar afetivo para sujeitos como eu. “I Wanna be Sedated”. Década de 1980, vender o almoço para comprar a janta, as desgraças neoliberais (Reagan e Thatcher), fome, miséria, violência, um sonho de democracia se abrindo no Brasil.

Daí vieram Sex Pistols, The Clash, Dead Kennedys, G.B.H., Ratos de Porão, Discharge, Mercenárias, Napalm Death, Cólera e tal. Era outra possibilidade sonora que rolava solta pelas periferias brasileiras. No ABC paulista oitentista, havia um racha enorme entre os punks e os headbangers, isso atrasou lados e causou muita merda. As Mercenárias, agressivas, urgentes e inteligentíssimas, já estavam dando a letra em pleno 1986: “Você não sabe quem é seu inimigo/ Você está completamente perdido/ Perde tempo arrochando meu amigo/ Perde tempo esmurrando meu amigo// De que adianta arranjar treta comigo/ Se sou inimigo do seu inimigo?”. Límpido como água potável. Mas a galera não entendeu e continuou todo mundo atirando nos aliados por muito tempo.

O rap chegou na minha vida no final dos anos 1980, através de bandas como Public Enemy e N.W.A., Run DMC, Ice-T, Dr. Dre e Ice Cube, principalmente. Esse pessoal do rap norte-americano chegou com muita força no Brasil do começo dos anos 1990. A mentalidade se abria no underground e as cenas iam se misturando, se juntando e apoiando-se. Os que eram inimigos viraram aliados. Porque havia apenas um inimigo: a opressão capitalista. Parecia que havíamos entendido (mas, quando penso na nossa conjuntura atual, é certeza que não entendemos porra nenhuma). Enfim, o entendimento, a sacação, naquele instante, era tanta que proporcionou, no começo dos 1990, o surgimento de uma banda como o Body Count, que é a banda de metal+rap+punk+HC do Ice-T, o cara que entendeu absolutamente tudo. Era a sonoridade do zeitgeist. O furioso disco de um dos mais furiosos inventores do rap, isso, definitivamente não era pouca coisa.

Com os brutais acontecimentos de 3 de março de 1991, em Los Angeles, nos Estados Unidos, onde um jovem operário preto, Rodney King, foi covarde e violentamente surrado pela polícia local, tudo devidamente filmado e divulgado para o mundo todo, a coisa fedeu. Cenas chocantes, revoltantes. O julgamento do caso, em 1992, inocentou os policiais, desencadeando uma das maiores ondas de revolta de toda história norte-americana, com mais de cinquenta mortos e milhares de feridos. Para dar conta desse caso, Ice-T e o Body Count compuseram “Cop Killer”, um dos maiores hinos antipolícia já escritos. A música estourou e, obviamente, deu um rebu do cacete, com proibições, ameaças, violências gerais, com ataques pesados do então presidente George W. Bush, do sindicato dos policiais, dos racistas e reaças ianques de sempre, como Charlton Heston. A música, para resumir, mexeu com a cena política e artística norte-americana em 1992 (chegando ao ponto da gravadora relançar o disco de estreia da banda sem a faixa, que constava dele originalmente). “Fuck the police (For Daryl Gates)/ Fuck the police (For Rodney King)/ Fuck the police (For my dead homies)/ Fuck the police (For your freedom)”. Taí: para a liberdade e bem de todos, é necessário repensar a polícia, desmilitarizá-la, desmantelá-la, se for preciso, e achar alternativas para proteger e servir a sociedade, para a própria saúde social. Há um ótimo documentário chamado Um crime americano (2017), de Daniel Lindsay e T.J. Martin, que é uma boa oportunidade para conhecer melhor esse absurdo e brutal caso. Muita merda ali – que nos leva a pensar nos judiciários, no nosso judiciário, nas leis, nas nossas leis, todas feitas e regidas pela elite nacional, pelas pessoas brancas, ricas, cristãs, heterossexuais, racistas e dinheirólatras que sempre mandaram e desmandaram nos negócios deste país. Quer dizer, que chance o povo oprimido terá com julgadores desse tipo? Francamente. “De onde menos se espera, daí é que não sai nada”, como observou o Barão de Itararé.

O caso Rodney King foi o acontecimento histórico que despertou o meu espírito para as primeiras questões mais sérias com relação ao racismo e às lutas antirracistas. Sou um cara adotado por uma família branca. O caso de King me instigou a conhecer mais sobre a causa preta. Isso me levou não só ao jazz e à Motown e toda sua história de beleza e resistência, mas também aos Panteras Negras, a Martin Luther King, a Malcolm X, a Angela Davis, a Steve Biko, a Nelson Mandela, e, lendo esses maestros, vão pipocando caminhos e ideias a perscrutar: Huey Newton, Bobby Seale, Stokely Carmichael, a Nação do Islã, Louis Farrakhan etc. Entrei em contato com todo aquele vocabulário de horror e violência da segregação racial norte-americana: a Guerra Civil; os WASP, a KKK; cruzes em chamas; incêndios em lares de famílias pretas; enforcamentos de pessoas pretas; linchamentos de pessoas pretas; Lei Jim Crow; os lixos brancos confederados; o chocante linchamento de Laura e Lawrence Nelson, em 1911; o chocante linchamento de Jesse Washington (um garoto preto de apenas 17 anos), em 1916; a coragem de Rosa Parks em recusar ceder seu espaço a um branco em 1955, em Montgomery, na capital do Alabama; caso de James Meredith e a Universidade do Mississipi em 1962; a Marcha pelos Direitos Civis de 1963; os assassinatos violentos de três ativistas dos direitos civis (dois brancos e um preto), em 1964, no Mississipi; as revoltas de Watts em 1965; a rebelião presidiária de Watts em 1971; o massacre de Greensboro em 1979; e por aí vai. Tudo muito violento, muito complexo, o que exigiu uma atenção grande a esse tema, que é urgente e central.

Em 1993, os Racionais lançam o Raio X Brasil. Vai vendo. Um disco absurdamente espetacular – de uns manos que vão lançar ainda pelo menos mais dois discos espetaculares, que mudariam tudo na cultura nacional. Enfim, ali, naquele instante, esse era o mel que minha fome desejava, esse era o espírito da coisa.

Heavy metal, punk rock e rap, minha trilha sonora, são estilos cujas origens apontam para o período onde o neoliberalismo começa a operar nos bastidores da geopolítica mundial (via Reagan e republicanos ianques), ali no começo dos anos de 1970. Estilos furiosos, esses sons aparecem em minha obra – citados diretamente ou nas inúmeras tentativas de mimetizar (na linguagem, no verso) o timbre desses estilos.

Como você pede, e à maneira Alta Fidelidade (o livro de 1995 de Nick Hornby e o divertido filme de 2000), incluirei 5 discos que amo profundamente de cada um desses estilos. Do heavy metal: Master of Puppets (1986), do Metallica; Black Sabbath (1970), do Black Sabbath; British Steel (1980), do Judas Priest; Reign in Blood (1986), do Slayer; e Antes do fim (1986), do Dorsal Atlântica. Do punk/hardcore: Ramones (1976), dos Ramones; London Calling (1979), do Clash; Fresh Fruit From Rotting Vegetables (1980), dos Dead Kennedys; Brasil (1989), dos Ratos de Porão; e Cadê as armas? (1986), das Mercenárias. Do rap: Sobrevivendo no inferno (1997), dos Racionais MCs; Fear of a Black Planet (1990), do Public Enemy; Straight Outta Compton (1988), do N.W.A.; O.G. Original Gangster (1991), do Ice-T; e O espetáculo do circo dos horrores (2006), do Facção Central.

Chantal Castelli – A sua poesia atesta uma erudição (no melhor sentido da palavra) literária e artística muito viva, e traz também diversas referências da cultura pop – o nome de sua última coletânea, Fliperama, é um dos inúmeros exemplos disso. Além dos signos e objetos desse universo, há frequentemente a menção a músicos e bandas, tanto nos poemas (Dylan, Hendrix, Leonard Cohen) como no colofão dos livros – no Fliperama, para seguir com exemplo mais recente, temos Sonic Youth, Rita Lee, Megadeth, Arrigo Barnabé, entre outros. Aqui, como em outros momentos, você paga seu tributo à música popular brasileira e ao rock, e o leitor pode ter a noção da importância desses criadores na sua paideia. Você também é músico; sei que teve outros projetos musicais anteriormente, e está para lançar o primeiro single d’O Hipopótamo Alado, seu “rolé sonoro” com Leoni, Humberto Barros e Lourenço Monteiro. Projeto que, ao que tudo indica, também se alimenta das intersecções entre a música e a poesia. Inversamente, o que eu queria perguntar é: de que modo sua poesia incorpora essas referências todas e, mais do que isso, o seu trabalho como músico? Gostaria que você falasse um pouco de como a música popular comparece na sua fatura poética, não apenas como referência externa ou citação – se é que faz sentido a minha leitura, ainda não elaborada, de que sim, a música está entranhada em seu modo de escrita e construção poética (penso em ritmo, sonoridade, versificação, imagens etc.).

Os elementos do mundo pop estão inseridos na nossa vida e na minha não foi diferente. A pop art tecnicolor na incrível série Batman dos anos 1960, os Beatles, Atari, cubo mágico, heavy metal, cores fluorescentes, disco de vinil, revista, coca-cola, hambúrguer, fotografia, hot-dog, pipoca, filme, novela, série, neon, tênis cano alto e cabelo espetado. Para mim, a vida é essencialmente antropófaga. E tudo depende da digestão. Comer (introjeção metonímica) de tudo. E bem. E se possível com coentro. Porque é preciso comer bem, diria o Derrida. “Contra todas as catequeses. […] Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.” (Oswald). Comer o osso e a cartilagem, com coentro, farinha e pimenta. Comer e dar de comer aos outros (jamais aos urubus, é bom dizer). Dividir os pães. Só existe um comer bem, que é, afinal, quando todo mundo come.

A minha poesia acaba por incorporar naturalmente a canção popular, porque são da mesma laia. A canção popular (ainda mais num país onde essa tradição é absurdamente sofisticada, como é o nosso caso) e a poesia têm um encontro muito feliz. Comecei a escrever poesia por causa do Chico Buarque. E antes de escrever poesia, escrevia as letras de música de minhas bandas de rock. É um rolé junto.

Sobre meu enrosco com a música, antes de mais nada, não sou um músico (seria uma sacanagem com quem realmente é e se dedica a isso), sou um diletante. Retomei a música (o violão e a guitarra) faz alguns poucos anos, depois de um lapso de mais de duas décadas. Então, agora vou fazendo as coisas com muito vagar e por puro prazer. Não há ambição nenhuma de minha parte com relação à música. Fazer um som com amigos, o único propósito é esse. Diversão. Então, vou no meu ritmo. O meu trabalho com o Hipopótamo Alado é uma coisa, com o Gabiru Attack é outra. O que faço no Twisted Sisters of Show No Mercy já outro rolé (é uma banda de baile [espécie barulhenta de banda dos corações solitários] que toca clássicos do rock e do heavy metal). As experimentações e texturas sonoras que invento já é uma terceira margem do rio. Tenho algumas ideias que cruzam guitarra e poesia. Gosto de compor e tocar, faz um bem inacreditável para mim. É saúde maciça. Tenho uma boa coleção de riffs. Um dia estarão soltos por aí, pelo mundão.

Sobre a música no interior do verso, muito bem observado. Aliás, já que apontei para essa característica mais acima, sem aprofundar muito, aqui darei alguns poucos exemplos de como isso acontece dentro da jogatina do Fliperama.

No poema “Dadaísmo maravilhoso”, homenagem ao lendário centroavante carioca Dadá Maravilha, figura mítica do futebol nacional, começo citando João Cabral (da sua homenagem a outro grande craque, o Ademir da Guia, num dos mais belos poemas da língua). Mas, antípoda ao cerebralismo de Ademir, Dadá é um fora da lei, um atacante trombador, como se dizia. No jogo do poema, também operei essa contravenção citando Cabral mas não impondo ao meu poema a mesma arquitetura fina que o grande poeta pernambucano impôs ao seu. O espírito é outro. Um, está dentro do pesadelo; o outro, da folia. Para trazer ao poema lances do centroavante trombador, conduzi uma série aliterativa: “que, com o dobre do drible/ no tranco do craque, sem trela,/ de trivela ou sem trato, estala,/ como traque na língua, e trinca”. Mecanismos parecidos são utilizados em outros instantes do poema, com diferentes intensidades, assim como aparecem outras figuras, jogos e tal. É um poema muito lúdico, boleiro, brincante.

No “E-mail para Zhô Bertholini”, uma homenagem a um dos poetas que mais gosto, uma das minhas maiores interlocuções, um generoso maestro da grande Universidade Desconhecida, grande amigo e tão apaixonado quanto eu por canção popular, por rock, por contracultura, por poesia. Um caminhante noturno, um bicho-da-seda de cimento do ABC paulista. Somos poetas amantes das rimas e das metáforas. (Dizem por aí, os ultramoderníssimos pasguates ultramodernosos, que, na arte, não pode mais haver nenhum momento de refinado artesanato, de beleza, é proibida qualquer excitação estética, nenhuma figura gostosa, nenhum atalho ou senha para o caminho orgástico do alumbramento, proibida a mágica, nada de coisas bonitas ou qualquer tipo de beleza, nada importa. Gozar não pode. Um papo de aranha brabíssimo.). Bem, na primeira estrofe do poema ao Zhô, há uma infantaria de rimas: “cartilha”, “família”, “quebra-quilha”, “matilha”, “artilharia”, “utopias”, “metonímias”, “bastilhas” (além de outros ecos). Essas rimas, que atuam fora de uma métrica, formam uma intensa malha sonora e funcionam como uma contradança indecisa e perdida, de um sujeito que, possuído pelo espírito baudelairiano da flânerie, anda por uma cidade não conhecida (ou, ao menos, não por completo). Por isso o vacilo, a dúvida. No miolo do reino perdido. De, qualquer modo, canta, e, através da rima, ressoa. Existe. Continua anunciando. É um poema solar, apolíneo, libertário, contra o sucateamento da existência. Poema-guerrilha. Cita sonoramente o poema “A onda”, que está no Estrela da tarde (1960), do Manuel Bandeira, nas reverberações de “onda”, “desanda”, “ainda funda”, “onde”, que dão uma noção de continuidade, insistência, resistência; música incidental com “Águas de março”, do extraordinário disco Matita Perê (1973) de Tom Jobim; “Eu vou para Maracangalha”, lindo e inesquecível clássico de Dorival Caymmi. No restante do poema, tateio outras obras e artistas, há outras engrenagens sonoras em pleno funcionamento, mas não me alongarei mais. Agora é com o leitor.

Bem, são só alguns pouquíssimos exemplos de alguns dos procedimentos sonoros de que lanço mão no livro.

Diego Vinhas – No belo prefácio de Rodrigo Lobo ao Fliperama, lê-se sobre “um moleque, nos subúrbios mal iluminados da década de 1980” que mastiga um “chiclete sabor Chernobyl”, que “ainda não sabe, mas as coisas vão piorar”. Estas imagens parecem tocar em um ponto central ao longo de sua trajetória poética, e que se adensa com força no novo livro, isto é, um jogo de forças entre, de um lado, a consciência do abismo do desastre e, do outro, a teimosia em conservar a visceralidade dos afetos – e o limite, muito tênue, entre estes dois polos. É o que se vê em poemas como “Matinê Perdida”, “Churrasco em Pasárgada”, “Civilização-Lixo” e “Memórias de um Homem-Bala”, respectivamente. É uma tensão buscada conscientemente em sua escrita? E, nas notas ao fim do livro, consta que em Fliperama se fecha um ciclo em sua trajetória poética; o que podemos esperar daqui em diante?

Esse chiaroscuro entre a política e a poética é um característico muito importante mesmo na minha escrita, no pensamento da minha escrita. Tatear as sombras do tempo, mas com a lamparina dos afetos. Os afetos são a maior alegria deste mundo. E a alegria é sempre comunitária – ou pelo menos deve ter essa dimensão para que seja completa. (Alegria de um só é egoísmo, é uma espécie de aleijão). E, por ser comunitária, é também política. Daí esse chiaroscuro constante que perpassa minha poesia: está tudo imbricado na mesma odisseia. Os que mexemos com arte estamos sempre pensando sobre nosso tempo. Nosso tempo é miserável (assim como todos os outros tempos). É preciso construir, reconstruir, resistir incansavelmente ao ordinário. Criar novas formas de respiração. Cada um encontra seus jeitos. Eu insisto na alegria, que é a saúde total. E poesia é saúde.

Sobre o que virá nesse novo ciclo, como disse ao Sterzi lá no começo da conversa, ainda não sei direito. Mas tateio algumas possibilidades – que estou experimentando nos novos poemas.

Júlio Mendonça – O mundo contemporâneo parece padecer, já há algum tempo – e de modo crescente –, de um sentimento de catástrofe iminente. Isto está presente na sua poesia (num poema como “Memórias de um homem-bala”, por exemplo) e na de muitos poetas, hoje. A poesia está refletindo o desencanto e a desesperança gerais ou está acuada? Ou as duas coisas? Ou ela está presa demais aos acontecimentos? Ou os acontecimentos se tornaram tão presentes que não conseguimos mais tomar distância? Enfim, como vê a sua poesia neste cenário?

O poema sempre está refletindo sobre as coisas do real. Ainda que em instâncias absurdas, impossíveis, a linguagem está lavada com a especificidade de um contexto histórico e social. Não há como fugir disso. Para as pertinentes questões que você coloca, há mais que uma resposta. Vamos lá.

Para mim, a poesia tem possibilidades infinitas de lidar com as tensões do real. Há uma multiplicidade enorme de poéticas sendo executadas no Brasil hoje, e temos uma geração de poetas muito interessante. Talvez a quantidade exorbitante de publicações turve um pouco a percepção do que há de melhor sendo feito, mas há muita poesia de sabor forte em nosso tempo. Olhando bem (e todos que amam a coisa fazem isso), sabemos que há, no meio desse balaio de gato, poesia de alta voltagem. Para não ficar no vazio total, coloco a seguir alguns dos nomes cuja poesia, de altíssima qualidade, aprecio muito. Da geração anterior à minha, penso em poetas como Ricardo Aleixo, Simone Brantes, Carlito Azevedo, Josely Vianna Baptista, Júlio Castañon, Claudia Roquette-Pinto e Paulo Henriques Britto. Depois temos as poéticas de Dirceu Villa, Ana Martins Marques, Marcelo Ariel, Marília Garcia, Veronica Sttiger, Marcelo Montenegro, Chantal Castelli, Fabrício Corsaletti, Lilian Aquino, Gabriel Pedrosa, Adriano Nascimento. Chegando até os poetas mais jovens, podemos ler os instigantes e inteligentes trabalhos de Natália Agra, Jorge Augusto, Júlia Rocha, Diogo Cardoso, Jeanne Callegari, Pedro Mohallem, Fernanda Morse, Rodrigo Lobo Damasceno, Rita Barros, Matheus Guménin Barreto, Daniel Arelli, Roge Weslen, Rafael Iotti, Cláudia Sehbe, Marco Aurélio de Souza, Rita Isadora Pessoa, Diego Vinhas, Natasha Felix ou Nícollas Ranieri. São apenas alguns nomes no vasto campo da poesia brasileira contemporânea. Perceba também aí a multiplicidade de caminhos, de poéticas praticadas por cada um deles. Poesia de sabor forte. Já dá para sentir o peso da coisa. Tequila evaporada e chuva forte. Quer dizer, as possibilidades não só são múltiplas e infinitas como são também instigantes muitos trabalhos sendo executados atualmente.

A poesia não muda o mundo, muda nossas relações com o mundo. E isso me parece o mais importante: dar relevo a espíritos inquietos e de recusa, que questionam, que tateiam e pensam as trevas de seu tempo. A poesia, a grande poesia, nos mostra o abismo, não o esconde. Então, para o meu paladar, a poesia não está acuada, muito pelo contrário, está vivíssima, elétrica, criativa, construindo suas pontes e atuando no debate. Claro que esse lugar no debate público se transformou severamente, mas é consequência de muitos fatores. Outra coisa importante (até para não parecer celebração vazia), há, sim, muita poesia ruim e muita confusão. A celebração geral, por parte dos singelos, que classificam tudo como “divino”, “maravilhoso”, “genial”, “estupendo” e quejandos, não nos levará a lugar algum. É preciso estabelecer pontos, formular críticas inteligentes, tomar partido. Não adianta ficar elogiando todo mundo como se vivêssemos numa terra ou num tempo de gênios. Isso, além de ser um desserviço, não existe. E, como disse acima, quem gosta de tudo não gosta de nada. Não têm gênio por aí. Oswald de Andrade, em seu poderoso Serafim Ponte Grande (1933), diz: “A felicidade do homem é uma felicidade guerreira. Tenho dito. Viva a rapaziada! O gênio é uma longa besteira!”. Não é tudo divino, nem maravilhoso. Nunca foi. Há desesperança e desencanto grandes na poesia, só dar uma boa olhada ao redor, ao estado lamentável do mundo, e entenderemos o porquê. E há também potência crítica, alegria, saúde, resistência. O acuamento, no meu ponto de vista, existe sim, e se encontra na inocência de certas poéticas da moda, que não arriscam e se mantêm sempre dentro de seu lugar confortável, protegidinhas do mundo feio, sujo e malvado. A recepção de literatura está se transformando e tornando-se uma coisa meio bizarra. Para parafrasear Ginsberg, tenho visto as melhores poéticas da minha geração completamente apagadas pela obra rala dos “best-celerados”, como provocou Augusto de Campos em sua rede social, faz um tempo, a respeito do silêncio em torno do magnífico Silêncio: conferências e escritos (Cobogó, 2019), do grande John Cage. Tem muita politicagem, vaidade e marketing em jogo. A escrita acaba ficando em segundo plano. A reza é pela grife. Suspeito que, hoje mais do que nunca, o público de artes pouco difere (ou, talvez, nada difira) do público consumidor de entretenimento de shopping center. Aquele público que, através do consumo, exorciza seus fantasmas com amenidades e grifes.

Para completar a resposta, sobre os acontecimentos, estamos no âmago de uma grande crise planetária (estão aí os mais argutos filósofos e analistas todos, apontando os fatos, nos avisando). Num texto chamado “Depois do fim do capitalismo”, publicado na Revista Porto Alegre, em agosto de 2020, o filósofo Allan Hillani escreve: “Com ou sem formalização do autoritarismo, o que parece ser claro é que o tempo da democracia que conhecemos está se esgotando e não é possível antecipar o que se sucederá em escala global. […] para que esse processo se efetive é preciso que haja ‘uma alta tolerância à desigualdade econômica’, o que se pode conseguir com um tanto de entretenimento e repressão policial. O resultado previsto parece ser uma espécie de ‘ditadura social’ na qual o mercado capitalista é ‘protegido’ da correção democrática, e cuja estabilidade passa a depender de instrumentos para a ‘marginalização ideológica, desorganização política e restrição física de qualquer um que não aceitar essa lição’. […] a forma política mais provável a ser assumida pelo capital é a de uma ‘elite oligárquica capitalista que supervisionaria a eliminação genocida da população excedente e descartável do mundo, ao mesmo tempo que escravizaria o restante e construiria ambientes artificiais isolados para se proteger da devastação de uma natureza externa que se tornou tóxica, infértil e destrutivamente selvagem’ – um sistema garantido pelo ‘exercício contínuo da vigilância e da violência policial, acompanhados de repressões militares periódicas’.” Quer dizer, a catástrofe é iminente. O neoliberalismo (capitalismo tardio) nos cercou por todos os lados: o capitalismo globalizado (não existem mais lugares onde a peste capitalista não tenha chegado e vampirizado); a devastação ecológica; a destruição causada pelo capital fictício (a grana erguida imaterialmente por aplicativos); a total mercantilização da vida e do conhecimento (e mesmo dos ativismos); a completa precarização das relações de trabalho; o fascismo como forma de gestão estatal; a fome, a violência, a miséria, a morte. Pode-se falar, nesse panorama, em crise da poesia? Claro. O mundo está em crise em todas suas camadas. As artes não ficam de fora dessa. Nesse cenário, vejo minha poesia como uma arte que desconfia, uma arte profundamente anticapitalista.

Adriane Garcia – Fabiano, em uma entrevista ao pesquisador José Nunes, em 2019, você falou sobre o seu processo de escrita, “o grande barato de tudo”. São 25 anos escrevendo poesia e frequentando a cena que envolve livro, leitor, mercado editorial e meio literário. Também me chama a atenção na sua poesia a busca pelo novo, mas valorizando o estudo da tradição, os mestres. Com esta experiência, o que seria, em linhas gerais, o “Cartas a um jovem poeta” de Fabiano Calixto?

Aprecio muito esse livro do Rilke. Li quando era muito jovem, reli não faz muitos anos. É sempre muito bonito ler um grande poeta escrever sobre questões de poesia. O que aprendi com os grandes mestres foi: não imitar suas soluções, mas buscar o caminho da fonte de água límpida onde eles beberam. A receita é aquela de sempre: ler muito, reler, escrever, reescrever e desconfiar.

Michaela v. Schmaedel – Fabiano, queria que você voltasse um pouco ao passado, contasse sobre suas influências. Os poetas que foram importantes, os que ainda são hoje essenciais para que o Fliperama exista, para que tenha podido existir este livro. Quem você lê quando está relaxado? Quem você lê na busca de inspiração?

Gosto de pensar nessa biblioteca formativa, nos rumos, desvios e becos sem saída por onde passa a nossa construção intelectual. Como você perguntou, e como o espaço é nobre, vou aproveitar para falar um pouco sobre minha formação. Minha trajetória foi muito errática, meus interesses, muito amplos. Não considero isso ruim, muito pelo contrário, é uma característica minha, do meu espírito. Sempre fui muito curioso pelas coisas que me despertaram paixão intensa. Quer dizer, crio relações afetivas éticas poéticas existenciais com os afazeres que amo, escrever, fazer som, pensar, criar. Minha mais antiga memória de poesia vem de muito criança e está acompanhada da figura de meu pai, Antonio (in memoriam), que me ensinou o primeiro poema, uma parlenda popular que jamais saiu da minha cabeça: “hoje é domingo/ pede cachimbo […]” – que sempre entendia por “pé de cachimbo”, que é uma imagem muito mais criativa, estranha, surrealista e divertida. Ramos, rimas, remos, rimos, rumos. Rima é uma tecnologia espetacular. Também quando muito criança, tive contato com a Coleção Disquinho – uma coleção de compactos coloridos com contos universais narrados através de versos rimados (redondilhas maiores, em sua maioria) e acompanhados de músicas de João de Barro e arranjos orquestrais de Radamés Gnatalli. A coleção foi criada nos anos 1960 (e cruzou as décadas seguintes, pelo menos até minha geração, a dos anos de 1980). Meus pais me presentearam, durante a infância, com vários desses disquinhos; e esses disquinhos educaram meu ouvido para a estrutura, para o ritmo, para a rima. Era uma coisa finíssima, muito bem cuidada. Decorei completamente alguns deles. Minha paixão por rimas, acredito, tem suas origens aí, nesses dois momentos. Assim como minhas primeiras noções de ritmo. Dos poemas populares é que nasce minha paixão por poesia.

Acrescente-se a canção popular de rádio que minha mãe ouvia (e ouve até hoje), a chamada “música brega” – mas que diabos é brega? o escritor e ilustre torcedor do Esporte Clube Vitória, Franciel Cruz, diz que ser brega é “intuir […] que a nossa vergonha é a nossa redenção”. Taí! Então, canções de Roberto Carlos, Odair José, Diana, Fernando Mendes, Waldick Soriano, entre muitos outros, além de Luiz Gonzaga (que a mãe ouve muito também) fizeram a trilha sonora de parte importantíssima de minha vida. Meu pai não ouvia muita música. Uma vez encontrei uma fita cassete do Ray Charles no banco do motorista de seu velho e lendário Maverick verde motor V8 e fiquei lá curtindo. O que sei que o velho realmente curtia era música caipira, que também teve impacto em minha sensibilidade criativa.

Depois, o rock, que apareceu muito cedo na minha vida. As primeiras literaturas, também de extração popular, foram muito importantes como a revista esportiva Placar, que meu pai assinava; HQ, principalmente títulos da Marvel; revistas de rock e heavy metal; a Coleção Vaga-Lume, da qual li vários títulos. Mais a rua, a inesquecível rua da primeira fase, a idade mais tenra: futebol no asfalto, pipa, fubeca, pião, festa de São João.

Um pouco depois, na juventude, tem a experiência operária, o trabalho como peão em chão de fábrica. Um tempo muito legal e também muito enriquecedor. Entre uma metalúrgica e outra, o rock, a rua e a boemia, as primeiras curiosidades políticas (ideias socialistas brotando) e as inúmeras desistências da escola, há a vivência de bar como ofício (no bar do meu pai, onde trabalhei em momentos diferentes da minha vida). Meu pai assinava, nessa época, dois jornais: o Diário do Grande ABC e o Notícias Populares. O Notícias Populares era um jornal absurdo e de linguagem extrema que circulou em São Paulo dos anos 1960 até 2001, e, na década de 1980, estava ainda no auge. Era muito barato e transgredia o bom gosto com seu design chamativo e criativo, seu conteúdo popular, repleto de sexo, crime, violência e esculacho. Todos adoravam. Bar de bairro, muita gente ia lá diariamente para beber e ler, rindo, o jornal que publicava, em tipografia bruta, manchetes como “Nasceu o diabo em São Paulo”, “Loira fantasma faz sua primeira vítima em Osasco”, “Papa-defuntos vê e conversa com a loira fantasma”, “Gangue do palhaço apavora São Paulo”, “Quem tem ku-ait tem medo”, “Kombi era motel na escolinha do sexo”, “Bozo era movido a cocaína na TV”, “Disco-voador colidiu com ônibus na BR-116”, “Lobisomem ataca polícia no Acre”, “Médico afirma que o bebê-diabo nasceu no ABC”, “Sucri engole caipira”, “Homem-mãe sequestrado”, e por aí vai. A poesia, a escritura de poesia mesmo, assim como as leituras políticas, surgem aí nesse momento.

Ao meu interesse pelos letristas, pelos poetas do rock, que já faziam a minha cabeça (Dylan, Lennon, Patti Smith, Lou Reed, Jim Morrison, Raul Seixas, Rita Lee, Cazuza, Arnaldo Antunes) juntaram-se os poetas da canção brasileira, que estava começando a conhecer e curtir muito. A poesia escrita, a vontade de escrever poesia, de um dia fazer um livro, pinta com Chico Buarque. Simplesmente fiquei fascinado pela obra do Chico após umas magníficas aulas que tive no colégio e cujo tema era “Geni e o Zepelim”. Ficamos ouvindo e debatendo a canção durante algumas aulas. Eu chapei. Daí vieram Caetano e Gil. Noel Rosa. Dolores Duran, Elis e Gal. Cartola, Paulinho da Viola. Belchior, Sérgio Sampaio, Walter Franco. João Gilberto, o maior brasileiro que já existiu. Enfim, o leque foi se abrindo. A importância da canção popular em minha formação é absolutamente central. A pura alegria da vagabundagem inspirada. Tempos incríveis.

A poesia, a escrita de poesia, veio depois que desisti de montar bandas de rock (o que foi, aliás, um imenso erro). A volta para a escola (fiz supletivo para tentar consertar a debandada escolar) também ajudou, pois nos velhos manuais de literatura do segundo grau conheci muitos dos autores que me acompanhariam pela vida toda. Vou comentar um pouco sobre esses poetas centrais para mim. O meu dream team.

A assombrosa entidade Gregório de Matos, o Boca do Inferno, com todo aquele universo inquieto e selvagem (em pleno começo desse abismo chamado Brasil!), os versos, a beleza, a arruaça, a pontaria certeira, aquilo me fez admirá-lo profundamente (e para sempre).

Todo o simbolismo. Especialmente Cruz e Sousa, leitura explosiva, de impacto imediato. Tudo me interessa em sua poesia, o universo estranho, o clima de sujeito dentro do pesadelo, os versos absolutamente inteligentes e, com suas melodias insuperáveis, lindos, as construções inesperadas e técnicas; um dos meus poetas preferidos de todos os tempos. Na mesma época, Augusto dos Anjos, outro poeta que me assombrou de cara e continua sendo um dos meus preferidos de sempre, com seus poemas sombrios com execução impecável, vocabulário e ideias estranhíssimas, no linjaguar de hoje, papos retos com a pesada existência.

Tomei contato e me interessei muito por outros poetas clássicos, a obra de alguns me encanta e me atrai profundamente: Sousândrade, Álvares de Azevedo, Gonçalves Dias, Fagundes Varela, Luiz Gama e Pedro Kilkerry, principalmente. Os parnasianos jamais me interessaram. Os modernistas, por sua vez, me encantaram. Como disse acima, a contracultura é um caminho, uma ética que foi muito preciosa para mim. A contracultura veio antes da poesia e com ela se misturou – e isso é muito importante, acredito, para pensar minha trajetória até aqui.

Oswald de Andrade é um sol. A obra do Oswald me enlouqueceu, achei aquilo, num primeiro momento, uma obra punk avant la lettre. O Manuel Bandeira, por tanta tanta tanta tanta coisa. É difícil resumir o amor ao Bandeira, porque ele é um território complexíssimo. Aquela aparente simplicidade (que é destruída impiedosamente pelo próprio Bandeira em cartas, textos e poemas, afinal, o poeta prezava demais o saber, o conhecimento, a técnica, o verso) é varada por uma formação complexa, que se reflete em toda sua trajetória: o poeta que cruza os tempos em plena e incontrolável movimentação das placas tectônicas políticas e culturais, dos resquícios do parnasianismo vigente e do simbolismo tardio à primavera transformadora do modernismo. Há um encantamento que respira dentro de sua obra, isso é muito precioso.

Cobra Norato (1931), do Raul Bopp (publicado quando já se iniciara a segunda fase do modernismo), é outro trampo que me pegou de cara, uma obra monumental e apaixonante, épico lúdico atento à música selvagem amazônica com seu ritmo de cobra se iluminando de imenso por entre as folhagens da selva – é um ritmo parecido com o da alegria e o do conhecimento.

Claro que li os outros poetas do primeiro modernismo, e com muita atenção, de Mário de Andrade (que me interessa mais hoje do que me interessou à época de minha juventude) a Luís Aranha (um poeta estranhíssimo que escreveu alguns poemas ótimos e sumiu do mapa), passando pela magistral Patrícia Pagu Galvão, por Ascenso Ferreira e Noel Rosa. E todos eles me interessam muito também.

Os modernistas da segunda fase são fortíssimos. Alguns moldaram a poética nacional, são patrimônios, são poetas monstruosos, verdadeiros milagres no meio da eterna miséria nacional, como é o caso de Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes.

Murilo é um ciração criativo muito intenso. Sua poesia tem uma agudeza felina, que tateia, desconfiada, elegante (a elegância é uma característica extremamente relevante em sua obra) e pacientemente os fenômenos de maneira sempre renovada (uma qualidade que se traduz, tanto para os felinos quanto para os humanos, numa proposta de curiosidade não-redundante), buscando neles uma luz diferente, um novo modo de existir, de respirar. A questão que cruzou sua vida, a de ser um católico socialista (“costumo dizer que o socialismo é o agudo aguilhão do cristianismo”; “todo o católico deve ser automaticamente comunista”) gerou tantos poemas maravilhosos, poemas incisivos, tensos, e ao mesmo tempo belíssimos (inesquecíveis e agudas paisagens de pensamento). “Janela do caos”: “As mães despejam do ventre/ Os fantasmas de outra guerra.”. “Mapa”: “Andarei no ar./ Estarei em todos os nascimentos e em todas as agonias,/ me aninharei nos recantos do corpo da noiva,/ na cabeça dos artistas doentes, dos revolucionários.”.

Drummond. Bem, o que dizer de Drummond, né? É o maior poeta brasileiro. Verdadeiro milagre da terra. Sua grandeza e agudeza, sua leitura sempre extremamente aguçada das coisas do mundo. O maior mestre da grande Universidade Desconhecida. Tão preciso e precioso, tão contemporâneo e inesgotável.

João Cabral foi leitura insistente durante meu período de formação – foi o mestre mais durão, o que não gostava de música, com seu paletó, gravata e um conhecimento gigantesco dos centros e arredores das coisas do mundo. Máquina de comover; poesia do coração-cabeça. João Guimarães Rosa, meu escritor brasileiro preferido e paixão fulminante desde o primeiro contato. Inventor libertário, elevou as possibilidades de transa com a língua a patamares inimagináveis. Suas histórias, sua poesia, sua linguagem são o sonho da razão.

A poesia concreta, “o genuíno grão de alegria/ que destrói o tédio” (como escreveu Waly Salomão em seu belíssimo poema “Talismã”). Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos. Artistas centrais para minha formação. Vitais, vivíssimos. Olhos vivos e faros finos. Inventores. A poesia radical. A ensaística selvagem. A luminosa operação de tradução e sua minuciosa teorização (riquezas inestimáveis de nossa cultura). Nossa contracultura geométrica.

E, junto com essas leituras, a rua da segunda fase da vida, a rua da boemia: amizade, conversas sem fim, bebedeiras, Baudelaire, Rimbaud, Poe, contracultura, Paulo Leminski, Torquato Neto, Waly Salomão, Nicolas Behr, a poesia beat, o rock’n’roll, flertes e romances, verões emocionais, diversão sem fim, fontes de água potável, vida à queima roupa.

As revistas de poesia têm papel central em minha formação e me guiaram intelectual e espiritualmente pela travessia toda. A Cigarra, de Jurema Barreto de Souza; e a Inimigo Rumor, do Carlito Azevedo, foram, para minha formação, as principais. Sempre gostei muito de revistas. Editei minhas muitas revistas por aí. Várias. Do xerox à off-set. Pelejando contra a situações de merda do mundo. Dos primeiros zines nos anos 1990, passando pela revista Sem Futuro, no começo dos 2000, pela Entretanto, pela Modo de Usar & Co. (onde fui um dos editores até 2012), pelo Almanaque Lobisomem, até a Meteöro (que edito com Natália Agra, Rodrigo Lobo Damasceno e Tiago Guilherme Pinheiro, e é a revista que mais me alegra e mais gosto de ter feito até hoje), dentre outras, foi tudo muito enriquecedor. Enfim, fazer zines revistas é e sempre foi uma alegria imensa. Ter a oportunidade de ler o que de mais instigante e vivo se produz numa determinada época, dialogar com a moçada, divulgar essas tempestades criativas.

Tudo isso é uma história que foi tocada por inúmeras outras histórias, conhecimento dividido com incontáveis outros conhecimentos, afetos, beijos, copos de cerveja, engenharias de um imenso acaso de mundos inapreensíveis, onde “A máquina do mundo” e “After the Gold Rush” se cruzam em momentos excepcionais e fazem tudo existir com mais vibração e cor. Não foi, aliás, numa encruzilhada que Robert Johnson, o inventor máximo, vendeu sua alma ao diabo em troca do supremo conhecimento musical que daria origem ao rock’n’roll? E, por conta disso, seria perseguido por cães negros do demônio que caçaram e alcançaram sua tão jovem, inquieta e inventiva alma? O mundo também é feito de coisas assim. Um gesto é uma ação, uma carta geográfico-afetiva de dimensões incomensuráveis e é realizado num mundo também incomensurável. Algumas dessas cartas são lidas, entendidas e respondidas, outras não. Talvez apenas uma parte ínfima delas seja lida.

É mais ou menos por aí, dentro de um universo muito maior, onde busquei, guiado por uma curiosidade nômade, novas cores, entalhes e dimensões para minhas paisagens mentais. E isso tudo, de muitas maneiras, está no Fliperama.

Fabricio Corsaletti – Calixto, gosto demais da sua poesia lírica e experimental, maldita e terna, alta e baixa, paulistana e universal. Seus poemas-e-mails para poetas e artistas, que você já fazia nos livros anteriores, somados aos poemas “No fim do verão”, “Nos vemos na segunda”, “Rubens”, sobre e para amigos mortos, me levam a pensar que existe uma urgência real de comunicação no seu trabalho. Pergunto: além de ser uma forma de combate, a poesia para você é uma forma de amizade, um meio de entrar em contato com o outro?

Sim, a poesia é também uma longa conversa com o outro, um pensar junto. Alteridade, outridade. O Fliperama passeia bastante pela memória. A memória, essência da arte, funde os tempos num só presente e é nosso lugar, nossa cidade, onde fazemos conexões, nos perdemos e nos localizamos, onde se encontra todo nosso repertório existencial e intelectual, belvedere de onde se pode ter noção do vastíssimo e complexo panorama daquilo de que somos feitos. Torquato, em seu comovente e belíssimo poema “Mamãe, coragem” diz: “De vez em quando brinco o carnaval/ E vou vivendo assim: felicidade/ Na cidade que eu plantei pra mim/ E que não tem mais fim”. A cidade como campo agrário, paisagem de cultivo e colheita, como o saber. A agricultura do pensamento (aventura do intelecto) como alimento para a alegria (aventura do coração) – a alegria, que de resto, é uma luta, uma conquista. O Flávio de Carvalho diz que “A cidade do homem nu é a habitação do pensamento” e que essa cidade, a do homem nu, “prepara o homem para ser feliz”. É o lugar onde a saúde impera e a alegria/felicidade são os próprios caminhos do pensamento (são sua semente) que, curiosos, atravessamos e que nos ajudam a cultivar a poética da vida que escolhemos habitar. O Bob Dylan, que você tanto ama, numa entrevista de junho passado, fala que andava pensando “na morte da espécie, a longa e estranha viagem do macaco nu”. O tempo em que vivemos, de apocalipses múltiplos, é um tempo de doença. Para além dos desastres políticos, econômicos e sociais, a doença do fracasso civilizacional – como diz acertadamente Ailton Krenak: “Não adianta você querer modernizar o capitalismo, humanizar o capitalismo. O capitalismo é uma doença. E fim de papo. Você quer ficar dentro dela, então se vire com a doença.”. A pandemia do covid-19, com sua aterrorizante realidade, atesta esse estado de coisas. “A arrogância extrema pode ter penalidades desastrosas”, diz o Dylan na mesma entrevista.

Sou um sujeito pré-internet, e isso às vezes me espanta (sou já um dinossauro). A gente, com o tempo, inevitavelmente vai fazendo revisões. Fliperama é um pouco isso, um caleidoscópio onde as múltiplas e fragmentadas memórias e seu lastro de presença/potência, (re)enraízam-se em um presente vívido e atuam contra o esquecimento.

Muito importante nisso tudo, nesse sentido, foi o diálogo formal/temático intenso que tive e tenho com a poesia de Natália Agra (principalmente em seu novo trabalho, o Noite de São João [Corsário-Satã, 2020]). A poética de Noite de São João tem me iluminado e guiado, sua fatura tem me levado a amplos campos de reflexão sobre a poesia, sobre a arte em nosso tempo. Costumo dizer a ela que, com suas fogueiras, o livro toma para si uma escrita luminosa e é possível lê-lo no escuro de qualquer noite de São João. No livro, as cores bonitas nos causam deliciosas sensações visuais, suas pinceladas fragmentadas criando espaços, as temporalidades tão bem tramadas através da memória atravessada pela perspectiva da inevitável finitude – “todos ao redor dessa fogueira/ buscam o calor do esquecimento”, diz o poema que abre o livro. A poeta Simone Brantes aponta de maneira muito bonita que, no livro da Natália, “o esquecimento que buscamos junto às fogueiras acesas equivale à busca de uma duração, de uma afirmação da vida fora do alcance devastador do tempo”. Concordo. É um livro mesmo muito cheio de vitalidade, muito respirável, muito ao ar livre. Um livro belo.

Gosto dessa movimentação pendular (o chiaroscuro do político/poético – osso e medula), que na verdade vem desde o início de minha trajetória, como disse anteriormente. Então, meus poemas são, sim, um aceno para o outro, uma forma de amizade (a alegria da divisão da vida, amor, saúde), uma forma de combate.

Jeanne Callegari – Você sempre diz que não tem nada a ver com a literatura brasileira contemporânea. Como dizem os analistas, rs, me fala mais sobre isso? A propósito, me conta mais do seu coletivo sonoro, O Hipopótamo Alado, e da sua banda, Gabiru Attack? Já pode chamar pro Macrofonia!, quando passar o isolamento? 🙂

É um chiste crítico que trouxe emprestado de Torquato e que significa que não faço parte de modismos nem do circo nem mercado literário. Não recebo convites para quase nada, não tenho muito espaço na mídia (nem os estou cobrando, é apenas fato), enfim, estou fora disso tudo. Não é para fazer média que digo, é porque meu barato é mesmo outro e nunca almejei nada disso (chefias, circo, panelas, tramas de jogos de poder). Criei casca grossa, sei muito bem como funcionam essas engrenagens, pois entrei e vasculhei esse sistema e, vendo como fedia, me mandei e criei outros circuitos de criação, reflexão e diálogo. Outros rolés possíveis. E sigo fazendo poesia. Faço poesia e me movimento através de suas órbitas. Sigo meu rumo tentando fazer o melhor que posso e sigo a vida. Sou um cara preto, nordestino, pobre e sul-americano, sem parentes importantes, sem carta de amigos poderosos, sem dinheiro no banco, portador de uma solidão agreste, venho de uma família muito simples (o meu pai era paulista, minha mãe, pernambucana; ela, analfabeta; ele cursou até o quarto ano primário; dois guerreiros), fui criado em uma cidade operária, não tive biblioteca em casa, fugi da escola, fui e voltei. Não devo satisfações a ninguém. Resisto no meio dessa brutal história que é a história do nosso país. Primeiro, e muito importante, é que não virei estatística. Como aprendemos com “Capítulo 4 versículo 3”, uma das músicas de Sobrevivendo no inferno (1997), a obra-prima máxima dos Racionais MCs, uma das maiores obras de arte feitas por nosso povo, potência cultural indescritível: permanecemos vivos e prosseguimos a mística. Seguimos.

Sobre bandas e música. O coletivo sonoro O Hipopótamo Alado foi inventado há uns dois anos, pelo cantor e compositor Leoni, que me chamou para participar e também Humberto Barros e Lourenço Monteiro. A gente foi compondo e arranjando junto os sons. Decidimos então fazer um EP, cujo primeiro single, “Na esquina mais escura do mundo”, saiu dia 19 de junho último. O segundo, “Farrapo humano”, uma releitura de Luiz Melodia, saiu há pouco tempo. O nosso EP, que se chama O.H.A.-1, está em todas as plataformas de música. Para mim, que não sou músico profissional (apenas arranho minhas notas), foi um período de aprendizado e alumbramento. Uma alegria enorme, afinal, foi a minha primeira gravação oficial, minha estreia no campo da canção popular brasileira.

Já o Gabiru Attack é uma banda de rock. Rolou porque recentemente adquiri uma guitarra e voltei a tocar e compor, coisas que aprecio muito. Como disse, tive bandas de rock na juventude e havia parado há décadas. Então, voltar a tocar tem um significado muito especial. Experimentar sonoridades fora do poema. Quer dizer, me formei e me especializei em poesia e, agora, volto à música (que é a fonte de água límpida da poesia). Então, fui fazendo os sons, juntei alguns e quando ia ensaiar com a moçada, veio a pandemia. E tudo teve que ser adiado. Há, ainda, outros projetos em andamento que conto no momento oportuno. O que posso adiantar é que o som do Gabiru Attack está massa. E, sim, um dia vamos ao Macrofonia! Fechado.

Leoni – A música sempre teve um papel central na sua vida e na sua poesia. Não é mero acaso que dois dos seus livros falem dela nos seus títulos, Música possível e A canção do vendedor de pipocas, e vários de seus poemas transitem por esse universo. Metade das epígrafes do Fliperama são de canções: Secos & Molhados, Belchior e Metallica. Além disso você tem sua banda, o Gabiru Attack, e estamos juntos no coletivo musical O Hipopótamo Alado. Que adaptações você tem que fazer na sua escrita para ocupar esse outro universo, mesmo que tão próximo ao da poesia impressa, e que diferenças você sente entre as potências de cada uma dessas linguagens?

Sim, a música, como fui dizendo no decorrer da entrevista, é central na minha vida. Suas observações estão muito certas. A diferença nas linguagens é que, no caso da letra de canção, os versos têm que se encaixar numa melodia, formar com ela uma peça orgânica, que tenha uma duração e que funcione na dimensão sonora. (Isso quando a letra é composta sobre a melodia, mas há também o movimento contrário, que tem outra especificidade). Não é fácil compor uma letra sobre uma melodia, do mesmo modo que não é fácil fazer um poema. São duas artes muito próximas, irmãs, muito difíceis e têm suas exigências. Não praticava a arte da letra de música há algum tempo. Retomei agora – nossas parcerias, além de serem um aprendizado e tanto, reacenderam a minha paixão por fazer música. Então, na composição musical, as adaptações e recriações são muitas e não são raras as vezes que uma letra se transforma radicalmente no momento da composição, muda aqui, corta aquela palavra ali, troca essa, corta aquela estrofe toda, e por aí vai. É um processo muito massa, onde a melodia vai soprando os caminhos a seguir. Assim como na poesia, meu cardápio abarca vários modos e poéticas. Interessam-me desde a elaboradíssima poesia de Caetano, Chico ou Dylan até a crueza primal do rock. No Gabiru Attack tenho composto letras mais experimentais, estranhas. Enfim, as exigências do poema e da letra de canção são diferentes.

Marcelo Lotufo – Apesar de Fliperama ser um livro que se confronta com o nosso desastre contemporâneo, ele não me parece um livro pessimista. Há, na sua trama, um gesto bonito e necessário de olhar para o passado e recuperar afetos, mostrando os elos que, apesar de tudo, se constituíram; poemas que lembram de amigos e parentes, ou que formalmente recuperam poetas que nos precederam e nos são caros. Há, como o Tarso aponta na sua apresentação às perguntas, toda uma trajetória (sua e da própria tradição) que se condensa no livro. Gostaria, na verdade, de ouvir você falar da importância destes poemas dentro de Fliperama, deste gesto de recuperar elos afetivos e formais em um momento de distopia aguda como este pelo qual estamos passando.

Os poemas dedicados para aqueles que já foram e os para os que aqui estão, fazem um resgate, são poemas de abraço e celebração. A memória, fundindo todos os tempos num só presente (o aqui-e-agora, o único tempo que, afinal, existe), cria conexões interessantes entre os lugares que já passamos, os tempos que já vivemos, e são parte essencial na topografia de todos os meus livros. Cultivo lírico de experiências do passado na terra fértil do presente, o que nos permite guardar um futuro. E, nestes tempos absolutamente sombrios, tempos de peste, não é só a música que gosto de cantar, é a música que preciso cantar. Porque é o tempo que me coube, porque a alegria só é possível no presente, por questão de saúde. E poesia é saúde.

Marcelo Montenegro – Queria pegar o gancho do seu poema em homenagem ao Dadá Maravilha (“Dadaísmo Maravilhoso”, de Fliperama) – que, inclusive, já começa tabelando com o “Ademir da Guia” do João Cabral de Melo Neto –, lembrando também do livrinho bonito que você escreveu sobre o Doutor Sócrates (Contrapoéticas da bola, treme~terra, 2019). Em meio ao circo agressivo de grana e de tudo o mais que envolve o esporte hoje, você acha que, dentro de campo, o futebol ainda é capaz de instantes de poesia, ainda é um gerador de maravilhas?

Como você bem aponta, o “circo agressivo da grana” desgraçou o futebol mainstream. A turbomonetização obscena é nojenta. O que faz meu interesse por esse futebol desabar. Porém, apesar disso, tem o Messi e ainda gosto de, alguns domingos, depois do almoço, tomar uma cervejinha curtindo, de boa, um futebol na TV (e, como simpatizo com sete times diferentes [Corinthians, Santo André, Nacional da Água Branca, Juventus da Mooca, CSA, Íbis e Peñarol], sempre tem joguinho para se divertir em algum canto). Então, sim, acho que o futebol mexe com muita coisa bonita ainda. O futebol agrega, junta gente, reúne amigos, isso continua sendo fundamental – poético. Tem muita positividade aí.

Para o meu paladar, o barato mesmo é o futebol old school – o que é o corrente, afinal, os craques da nossa infância são os craques do time eterno, insubstituíveis e insuperáveis. Anos 1980, domingão à tarde, depois da macarronada, radinho de pilha e Fiori Gigliotti. A inesquecível Democracia Corintiana – o grande Dr. Sócrates dizia: “Aquele movimento virou uma referência nacional. Sem muita articulação ou organização, havia uma predisposição popular de lutar pela redemocratização. O grande resultado daquele momento foi provocar a discussão sobre a história política do país e sua realidade, foi ampliar os horizontes da discussão. E onde normalmente se faz isso? Junto aos formadores de opinião, que é uma coisa restrita. Discutir esses temas num meio como o futebol amplia consideravelmente o espectro da discussão. Quer dizer, ela chega a pessoas que têm menos informação, menos educação, menos tudo, porque é um meio popular. Acho que esse foi o principal benefício do movimento, ter possibilitado a mais gente discutir política.”.

As Copas do Mundo de 1982 e 1986, minhas copas afetivas. Adoro rever os jogos da Copa da Espanha. Cerezzo, Falcão, Sócrates e Zico. Que time pode sonhar um meio-campo desses? Ringo, McCartney, Lennon e Harrison. Magníficos arranjos do acaso. Encontros assim acontecem muito raramente. São verdadeiros milagres. No livrinho que lancei em 2019 pela editora treme~terra, Contrapoéticas da bola, e que você se refere na pergunta, escrevi o seguinte: “Era um time espetacular, fora de série mesmo. Praticava aquele futebol de poesia que tanto empolgou o poeta italiano Pasolini. Em popular artigo, publicado em 3 de janeiro de 1971, no Il Giorno, o poeta articula sua formulação de futebol de prosa (o duro futebol europeu, retranqueiro e pragmático) e o futebol de poesia (o futiba praticado pelos brasileiros, “todo centrado no drible e no gol” – e sul-americanos, no geral). O primeiro, voltado para resultados, duro, sem vida, futebol do sistema, mercadoria capitalista (o futebol sem imaginação que, por exemplo, Parreira e Zagallo pregarão como saída para o futebol pós-80, como uns pastores do medo, uns padres da merda); o segundo, a invenção, o futebol da criatividade e alegria pura, de afronta, onde ganhar ou perder é indiferente, onde a subversão poética é a mágica, antimercadoria, futebol anarcotropicalista.”. E o Maradona em 1986, como olvidar aquela atuação extraordinária? É uma obra-prima do esporte!

A geral, a bagunça, o abraço, a alegria, os dribles do Garrincha (que o Luiz Antonio Simas chama de “monumento da civilização brasileira”), esse é o Brasil que gosto e que, assim como a geral, parece ter sido extinto.

Tem o futebol de várzea que aprecio muito e é uma farra – todo mundo acorda cedo, torce pelo seu time, faz um fuá indescritível, tem cachorro correndo atrás da bola no meio das jogadas, depois confraternização com bate-papo, churrasco e samba. Há também o futebol de rua, hoje em dia mais raro.

Então, acho que, sim, o futebol ainda é capaz de poesia.

Simone Brantes – “Da cidade”, que abre Música possível (2006), aponta para um movimento comum em muitos dos seus poemas: eles se debruçam, caem, “sobre esse declínio civilizado”, são capturados por esse “nosso campo de visão minimizado”, se deparam com a língua/linguagem como “estrangulamento do tempo”, e a própria condição de escrever aparece como um sequestro desse mundo (“ainda hoje, /no estacionamento da faculdade, /as árvores floridas /sequestraram, /por um momento menos que mínimo, /minha atenção”), ao fim do qual nada resta (“e nada ficou./ nem uma cor. nem uma brisa.”). Na verdade, é de um sequestro assim que nasce todo o poema e, se nada fica, é porque ele carrega nele seu oposto e precisa sempre se buscar mais adiante em outro poema. Daí que, talvez, cada poema e cada livro possam ser entendidos apenas como aquele “caderno de rascunho” de que você fala em “Canção natural do mundo”. O fato de um poeta se reinventar em cada livro (como a “mata / impregnada de névoa” que “resolve algumas questões de estética /e propõe outras” – em “Outra paisagem de Minas”) significa que cada livro é tão-somente esse “caderno de rascunhos”?

Acho que tem isso que você aponta sim. Até pelos caminhos que propus seguir, de não compor dentro de uma dicção localizável/estável e buscar, em cada livro, experimentos diferentes, a ideia de rascunho é muito pertinente. O poema talvez nunca acabe de ser escrito. O próximo poema talvez seja, para o poeta, esse lugar de utopia onde as tensões e hesitações do(s) poema(s) anterior(es) possam definitivamente ser resolvidas, apaziguadas. E o fracasso é inevitável, pois o final do poema é (ou parece ser) sempre uma miragem.

Outra coisa que costumo fazer, e que caminha nesse sentido, é reescrever poemas antigos. Fiz isso em alguns poemas que republiquei em antologias minhas. Nada é fixo, nada é eterno. Fluxo-fluído-floema. Por fim, podemos pensar sim na ideia de “rascunho”, no poema como na vida, onde estamos rascunhando a todo instante para chegar a algo que não sabemos direito o que é, mas seguimos fazendo, rascunhando, vivendo.

Claudia Sehbe – Calixto, meu muito querido, me pergunto muito sobre a poesia contemporânea que não vem carregada de política ou de alguma crise. A poesia está nas ruas. Sim, está. Vida e escrita não se separam. E isso é muito você. Esse dilaceramento dos dias. A cidade como depósito da desigualdade. A violência insuportável. Essa política que penetra de alguma maneira seus poemas. “na universidade desconhecida/ na vida sem fim/ de quem chegou até aqui/ derrubando, aos murros, o muro/ moldando o mundo a muque”; ou “não precisa ser pró-Cuba nem anti-Cuba para entender que esta noite milhões de crianças dormirão nas ruas do mundo”. A fricção das dores presente muito presente também no Nominata morfina (Corsário-Satã, 2014), como isso aparece no Fliperama? Há uma continuidade à agressividade das faltas que assolam nossos dias? Que papel a pulsão sexual tem na costura da sua obra? Percebo ela e a música como respiros ao que assola a alma.

Em primeiro lugar, para mim não há isso de que a poesia “deve” ou “não deve” fazer. Isso é bobagem, a poesia está em outra frequência com relação às demandas de mercado ou das modas de época. Há muita poesia por aí dita política que não passa de panfletarismo tosco (metralhadora de clichês) para agradar um mercadinho. Fenômeno modista, mais a serviço do autor que da causa. Poesia é invenção permanente, estado carbonário, informação não-redundante. Dito isto, os temas políticos estão presentes de forma intensa por toda minha obra, e no Fliperama não seria diferente. Quer dizer, a reflexão política através do poético jamais saiu do meu horizonte – porém, nunca abri mão do artesanato da linguagem, porque, caso o fizesse, seria apenas panfleto vazio mesmo. Ou carreirismo. O Leminski diz, em seu ensaio “O boom da poesia fácil”, que “a poesia participante nunca conseguiu chegar às massas: ficou apenas como um fenômeno meramente ‘literário’ circunscrito ao livro (mercadoria cara) e produzindo carreiras literárias”. Estou de completo acordo. E, deste modo, me mantenho distante de dogmatismos e oportunismos. No mesmo ensaio, o poeta curitibano aponta: “A poesia participante queria chegar ao povo, queria participar da vida das pessoas. Mas não era bem participar da vida das pessoas que ela queria. Ela queria dizer para as pessoas como é que as coisas são.”. É isso mesmo e aí complica.

Em nosso tempo, a reflexão política está no centro medular das sociedades porque as coisas do mundo estão ruindo, porque o neoliberalismo está precarizando e inviabilizando a vida de um modo avassalador. Mas, pelo menos para mim, é necessário buscar camadas mais profundas, inteligentes, inventivas e efetivas. Repetir à exaustão clichês idiotas de redes sociais dentro do poema não ajuda nada, nem a causa, nem a poesia. Isso é só carreirismo.

Sobre Eros agindo na escrita, essa característica se espraia, em diferentes alturas e intensidades, por todo meu trabalho. Eros como vitalidade e afirmação, como presença no mundo, como estandarte da alegria, saúde inegociável e permanente enfrentamento contra a melancolia. A poética é também uma erótica. “A poesia é o princípio do prazer no uso da linguagem. E os poderes deste mundo não suportam o prazer. A sociedade industrial, centrada no trabalho servo-mecânico, dos EUA à URSS, compra, por salário, o potencial erótico das pessoas em troca de performances produtivas, numericamente calculáveis”, outra vez o Leminski. O prazer da linguagem, do pensamento, dos atritos (o atrito entre pedras/madeiras criando o fogo, o atrito humano num instrumento criando música, o atrito entre corpos criando orgasmos). O lúdico e o lúcido do pensamento erótico arrepiando a pele da escrita. A poesia é foda.

Nícollas Ranieri – Calixto, no poema “E-mail para Augusto de Campos”, você fala do poema como “armadilha da manhã”, como “sol dentro da maçã”. Nesse sentido, em que medida o legado dos Noigandres ainda pode servir de nutrição de impulso para os poetas contemporâneos? Em um contexto mais geral, como a poesia de hoje pode ser elaborada a partir das referências poéticas de um passado mais ou menos recente? O que se prepara para o “céu da noite futura”?

O legado da poesia concreta é imenso. Injeção pesada de inteligência, vitalidade e vigor na cultura brasileira. A poesia, a ensaística e a arte tradutória. Legítimos poetas-inventores, a obra dos concretos é, enfim, um manancial. Aquilo que um dia foi novo, não deixa de ser novo nunca. Então, a obra tá aí, é pegar e ler, tentar entender aqueles caminhos, aquela radicalidade. A poesia concreta ainda é muito incompreendida e boicotada. Muita gente não entende e insiste em fazer inúteis críticas inocentes, puras e bestas. Ninguém é obrigado a gostar e ninguém está acima da crítica, é claro. Mas há como criticar a poesia concreta e, ao mesmo tempo, reconhecer suas importantíssimas conquistas. Não perco tempo com quem não reconhece essas conquistas. As grandes poéticas passadas, as conquistas estéticas, nunca se esgotam. Quem não entendeu isso, infelizmente não entendeu nada.

Vejo uma recusa, entre os novos poetas, em ler os grandes poetas antigos. Os motivos são vários e todos absolutamente tolos. Isso, para mim, é uma imensa derrota. Mas, como disse a respeito da poesia concreta, ninguém é obrigado a ler nada. Se os grandes clássicos (os autores da biblioteca do futuro) não são lidos pelos contemporâneos, azar dos contemporâneos.

Que o céu da noite futura nos traga novos sóis, explosões vitais, revoluções inadiáveis, alegrias homéricas. No mais, continuemos lutando, amando, escrevendo poemas. Porque a poesia é foda!

Agosto de MMXX


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