ENTREVISTA – CORREIO DE UBERLÂNDIA
Ética não é uma coisa palpável, não é um objeto que podemos ter na mão, antes é uma relação que temos com o mundo ao nosso redor, com as outras pessoas, a natureza, a sociedade, a cultura. Ética é antes de tudo uma construção que depende de nosso modo de pensar. Ela depende da capacidade humana de unir teoria e prática. Em um mundo com ausência de pensamento também teremos ausência de ética. Quero dizer com isso que ética é algo que nunca está dado, nem pronto. Não está simplesmente “aí” para quem quiser ter. Ética é uma postura de filosofia prática, de autoreflexão sobre a ação que se recria a cada momento. Por isso ela é tão difícil. Ela depende sempre da escolha justamente porque o ser humano é aquele que decide sobre o bem e sobre o mal que ele pode realizar. Ou seja, quem é ético sempre pode deixar de ser ético.
Ética é, sobretudo, uma reflexão sobre o que podemos fazer. É também a reflexão sobre o sentido do que fazemos em um mundo partilhado com outras pessoas. Precisamos trabalhar para que ela exista a cada dia, em nossa interioridade, em nossa subjetividade como uma capacidade de pensar no que fazemos. Que a ética nos falte é o resultado da ação humana em nome do mero utilitarismo, do abandono e do esquecimento da dimensão coletiva da vida. Quem não tem ética não tem a dimensão do outro. Não aprendeu a reconhecer o outro com quem ele convive de modo mais imediato ou de um modo menos imediato.
Em seu artigo “O que é ética hoje?”, você afirma: “Clamamos pela ética, mas não sabemos conversar. E para que haja ética é preciso diálogo”. Podemos, desde já, decretar o fim do diálogo e que as conversas desapareceram no cotidiano comandado pelas ferramentas virtuais e cada vez mais corrido? Neste sentido, também podemos afirmar que o homem deixará de buscar a ética em seus relacionamentos?
Não digo que podemos estabelecer este decreto sem mais, porque se nos cabe construir a ética a cada dia, me parece que a postura coerente é da negação, no sentido de um questionamento, do que parece estar dado, do que parece não ter mais jeito. Eu prefiro trabalhar para que o diálogo seja possível. E penso que a grande contribuição da filosofia para nosso tempo seja esta. E o que é ética senão filosofia prática? Esta é a ideia que eu gostaria de levar adiante num debate coletivo hoje.
Citando exemplos próximos a todos, de que forma a filosofia está presente no dia-a-dia da dona de casa, do filho estudante, do executivo e do profissional liberal?
O conceito de filosofia que eu uso envolve a ideia de experiência de pensamento crítico, analítico e reflexivo. Se você está se referindo a esta possibilidade creio que estamos longe dela em nosso dia a dia, mas que se trata de fazer com que o impulso ético que anima o pensamento – ou seja, este impulso de fazer algo com sentido – seja possível em todas as esferas da vida. A vida que vivemos é a vida do senso comum, dos pensamentos prontos e repetitivos, a filosofia é justamente um esforço de compreensão para além das “verdades” pré-estabelecidas. Por isso ela é desmontagem, análise, crítica, e sobretudo conversação em nome de um desejo de compreensão de todos nós e de cada um.
Você também faz a reflexão de que ficamos na frente da TV em total inércia, “em paz” e, muitas vezes, acomodados. Estamos realmente “amaldiçoados” a assistir o fim do mundo, sem percebermos que podemos modificar aquela realidade transmitida na telinha?
Em meu livro “Olho de Vidro – a televisão e o estado de exceção da imagem” (ed. Record, 2011), tentei mostrar que esta questão é complexa. Que a televisão não é um mecanismo de dominação puro e simples, mas que ela atua sobre a percepção mudando profundamente nosso modo de perceber o mundo. Daí que ela não pareça fazer nada demais contra quem a assiste, pois para poder assisti-la a pessoa já tem que ter entrado em sua lógica. Neste livro eu defendo uma partilha dos meios de produção audiovisual e não simplesmente de sua recepção. Em outras palavras, temos que fazer mais Tv e ver menos Tv, sobretudo quando vivemos em um país que ainda precisa passar por um processo de alfabetização consistente e de uma valorização da leitura e da cultura.
Qual o perigo de vivenciarmos a supervalorização das redes sociais e dos aplicativos que anunciam onde, como e com quem estamos? A vida virtual vai se sobrepor à vida real?
O interesse na existência real é deixado de lado em nome do virtual. Eu acho isso perigoso porque as pessoas esquecem de viver. Não acho que antes da internet viviam mais, mas ela intensifica uma tendência dos meios de comunicação que é o abandono da vida em nome dos mecanismos que imitam a vida. Gosto da internet como meio e não como fim. E talvez hoje, como acontece com qualquer outra forma midiática, ela cause aquilo que podemos chamar de “dependência estética” que é a “dependência digital”, assim como se fosse um vício que envolve sempre uma deturpação da sensibilidade e daí da inteligência.
Como educar crianças, adolescentes e jovens que estão crescendo com acesso ilimitado à informação?
Não há nenhum problema na informação, o problema é a falta de formação. Essa falta deturpa o sentido da educação. Daí que a informação pareça substituir a formação que está desvalorizada. E por que ela está desvalorizada? Porque em nossa cultura atendemos facilmente a uma apelo utilitarista que é praticamente religioso e que reduz a educação a um processo burocrático e capitalista. Tudo tem que servir para algo e não se questiona que sentido isso possa ter na vida de cada um.
Sua participação no programa Saia Justa, do canal GNT, pode ser interpretada como uma manifestação em defesa do feminismo? Há muito ainda a ser conquistado pelas mulheres?
Minha participação no Saia Justa me deu pelo menos duas alegrias: o meu livro Olho de Vidro, pois eu não o teria feito sem participar da TV, e o aprofundamento prático no meu feminismo. O meu interesse pelo feminismo era teórico, na Tv ele ficou prático. Penso que hoje, a contribuição do feminismo filosófico para uma sociedade mais justa dependa também da luta pelo diálogo de onde surge o direito legítimo.