Entrelaçados

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Palavras migrantes

A boa literatura e o bom teatro conduzem um processo que podemos chamar de migração da palavra. Passagem da região dos sentidos ordinários, sensatos, plagiários (uma vez que copiam a língua tal como ela foi fixada pelo uso médio) à terra dos sentidos líquidos (dispostos a tomar inúmeros contornos), móveis, extraordinários – onde elas, as palavras, nunca ficam satisfeitas de estar onde estão. A partir do momento em que tal movimento tem início, leitores de livros e espectadores de teatro também se comportam, em maior ou menor grau, como turistas ou migrantes. O primeiro grupo inclui aqueles para os quais a viagem não começa enquanto não se garantem certas cautelas e não se adquirem provisões mínimas. Esses preferem os lugares admiráveis a priori, que os “contentem” e os “encham de euforia”, ao cultuarem sentidos muito deferentes à linguagem comum, ligados às práticas culturais “confortáveis”. O segundo grupo congrega os aventureiros e exploradores que, por necessidade íntima, se dispõem a ir mais além. São aqueles a quem a viagem desnorteia, desconforta, por meio da fruição (tome-se aqui o conceito desenvolvido por Roland Barthes em “O prazer do texto”, ensaio no qual boa parte das ideias expostas até agora está baseada) de sentidos que desequilibram as “bases históricas, culturais e psicológicas” do indivíduo, a “consistência de seus gostos”, fazendo sua relação com a linguagem entrar em crise.

De acordo com a acurada especulação de Walter Benjamin, a origem das grandes narrativas está assentada sob dois tipos de narradores muito antigos: o camponês sedentário e o marinheiro comerciante, cujas trocas de experiências atingem o ápice na Idade Média, fixando as figuras do mestre que nunca saiu de sua aldeia, mas conhece como ninguém a memória local, e do aprendiz migrante, portador do saber das terras distantes. A literatura e o teatro que se espelham na antiga arte de narrar estão comprometidos, a rigor, com o reconhecimento da trajetória humana sobre a Terra. Inseridos em tempos e espaços figurados, seres de papel ou encarnados por atores partem em busca de um sentido para sua ação, sua existência, mediados pela tensão dialética que há entre o eu e o outro, o aqui e o acolá, o já experimentado e o ainda não vivido.

Migração, trajetória e figuração

É sobre o sentido da trajetória, afinal, que versa o mais recente trabalho do grupo Galpão, em cartaz no Teatro Anchieta até o próximo dia 11 de setembro. Com dramaturgia de Eduardo Moreira e Marcio Abreu (da companhia brasileira de teatro) e direção desse último, Nós é um espetáculo que extrai boa parte de seus atraentes efeitos de estranhamento de sua capacidade de entranhar-se. No itinerário do próprio grupo. E no rumo que as coisas vêm tomando nos últimos tempos no Brasil. Ao se aproximar dos 35 anos de carreira (o primeiro trabalho realizado, E a noiva não quer casar…, data de 1982), o Galpão volta a falar sobre si mesmo, já que tal debruçar-se sobre si já havia servido de esteio ao trabalho anterior da companhia, o sarau De tempos somos, reunião de vinte e cinco canções, costuradas por textos diversos, que fizeram parte da trilha sonora de espetáculos ou de workshops internos realizados pelo grupo. Entretanto, o retorno ao exame do próprio percurso ganha aqui novos contornos. Como se a matéria lírica que presidia à criação de De tempos somos se convertesse agora em matéria eminentemente política – o que soa como um itinerário muito coerente (trilhado talvez de modo inconsciente?), já que poesia e política – no sentido substancial do termo – privam de um objetivo comum: dar vez e voz àquilo que ainda vai nascer.

Em Nós, dramaturgia, direção e interpretação apostam fortemente no conceito de figuração, que comporta as ideias de cópia, imagem, forma plástica, forma que retrata ou forma que muda. Diligentemente estudado por Eric Auerbach, em dois célebres ensaios – “Figura” e “São Francisco de Assis na Comédia de Dante” (reunidos em volume único cuja edição brasileira é prefaciada por Modesto Carone) –, o conceito se insinua também nas chamadas figuras de linguagem (“forma de discurso que se desvia do seu uso normal e mais óbvio”), apontando ainda para uma noção cuja potência se deve ao dedicado estudo do crítico literário alemão: figura também implica a representação concreta de algo que vai se realizar no futuro, podendo ser captado como meio-termo entre história e verdade. Pois bem, a encenação de Nós constitui um grande exercício de figuração em torno das noções de inércia, repetição e impasse, por meio das quais os integrantes do Galpão e o diretor convidado por eles se questionam a respeito de como dar o próximo passo.  Como artistas e como cidadãos.

O impasse e a repetição, o dizer e o calar, o entrar e sair de cena

A situação básica é a do próprio fazer teatral, atividade comunal de múltiplas e complexas interações. Em cena, os atores do grupo se expressam, expõem-se e interagem uns com os outros, como sói acontecer desde a formação dos primeiros “coletivos teatrais” na Grécia Antiga. Não bastasse o gregarismo inerente ao dia-a-dia do teatro, em cena está sendo preparada uma sopa, para a qual é mister o auxílio de todos. As ocorrências dividem-se entre os dizeres e os afazeres. Todos falam muito sobre inúmeros assuntos que, entretanto, não progridem, mas há uma figura em cena que tem muita dificuldade de entender as coisas sobre as quais se está falando. Não à toa, a mesma figura irá pouco tempo depois se recusar a fazer aquilo que os demais querem que ela faça: sair de cena. E quando, ao retornar, ela desejar então de livre espontânea vontade de fato sair, eles a impedirão de fazê-lo, à custa de um cuidado extremado, algo rude, bruto, demonstrado à força. A significação não poderia ser mais perturbadora: trata-se de Teuda Bara, uma figura matriarcal, arquetípica, uma vênus de Willendorf (como uma das cenas do espetáculo irá explorar de forma pungente). Só que desterrada e soterrada por seus próprios pares em vez de desenterrada por um arqueólogo desejoso de acolhê-la.

O impasse e a repetição, o dizer e o calar, o entrar e sair de cena fazem parte da gramática teatral desde sempre –  e foram sinuosamente trabalhados por Samuel Beckett em sua tríade dramatúrgica essencial: Esperando Godot, Fim de partida e Dias felizes. Acontece que na criação do Galpão tais elementos – embora estejam também a serviço do exame das peças que compõem a própria engrenagem do teatro – parecem mais dispostos a remexer, inverter ou subverter todo e qualquer sentido. Para muito além da modernidade teatral. Como se os artistas-criadores do Galpão dessem a mão à musa modernista irlandesa para ajudá-los em uma travessia onde do outro lado estivesse um bardo rosiano, mestre em revirar palavras de ponta-cabeça, extraindo neologismos das velharias e arcaísmos das novidades.

Repetição como novidade, novidade como recriação

“Todas as instituições oficiais de linguagem são máquinas repisadoras: a escola, o esporte, a publicidade, a obra de massa, a canção, a informação, redizem sempre a mesma estrutura, o mesmo sentido, amiúde as mesmas palavras: o estereótipo é um fato político, a figura principal da ideologia”, afirma Barthes no mesmo texto a que já aludimos. Mas em face disso, podemos afirmar sem sombra de dúvida que o novo em Nós é justamente a repetição, que tende à destruição das falas e dos discursos, procurando brava, mas delirantemente escavar fruições soterradas sob camadas e camadas de estereotipia e redundância.

Quem mais poderia dar um sentido novo, insuspeito, ao samba-canção de Paulo Marques e Ailce Chaves Lama, alvo de interpretações de alta voltagem dramática nas vozes de Linda Rodrigues (que o lançou pela Continental, em 1952), Elza Soares e Maria Bethânia, transformando o leitmotiv amoroso em matéria épica, de clara alusão política? Como não perceber artistas e público atados ao mesmo nó do misto de festa e compromisso que há nos versos isolados “comendo a mesma comida, bebendo a mesma bebida, respirando o mesmo ar”? E como ainda não vislumbrar por debaixo do sentido figurado de degradação moral que há no vocábulo lama o lodo tragicamente real que em tempo muito recente enorme degradação causou ao ecossistema brasileiro: a lama de Mariana, cuja viscosidade nos corpos nus de Eduardo Moreira e Teuda Bara não faz senão aviltar a mais bem pensante das consciências? Aliás, vale lembrar não somente a belíssima execução de Lama em formato instrumental, a evidenciar os contornos patéticos de sua melodia, como também os intrincados sintagmas que se estabelecem, na enunciação da atriz, seja na gota d’água que logo à frente irá se transformar em lama, de um lado; seja na descrição da receita do creme espesso que envenena (no fragmento da fala de Teuda-Joana), convertido na imagem da sopa que alimenta e irmana, cozida e servida por todos, a nutrir toda a encenação.

A tessitura de todos os nós que se apresentam em cena (e que apontam por sua vez para aqueles tantos outros entrelaçamentos que há fora dela) é por demais complexa, mas cabem ainda algumas prospecções. O caldo de cultura preparado pelo Galpão é dos mais ambivalentes: nele cabem tanto o ridículo das frases-feitas e dos clichês repetidos de tempos em tempos quanto o sublime da execução da Balada do lado sem luz, de Gilberto Gil, entoada por todos em um vigoroso arranjo vocal à capela, logo após o corpo de Lydia Del Picchia ter se enervado em uma coreografia temperada por raiva e exaustão. Cabem também a ironia amorosa dos versos de “Agradecimento”, da poeta polonesa Wislawa Szymborska, e a evocação da ironia lúdica de Jean Cocteau.

Ao que vai nascer 

“Além dos estados líquidos e sólidos, por que não tentar trabalhar a língua também em estado gasoso?!”, pergunta-se Guimarães Rosa em carta endereçada a seu amigo João Condé a respeito de Sagarana, em 1946.  Pois bem, Nós é a própria experimentação gasosa dos sentidos no teatro. Sentidos que migram do sólido ao líquido e não se acomodam jamais. Talvez como os membros do próprio grupo mineiro – misto de sábios sedentários, que se abastecem da riqueza de sua própria terra, e de aprendizes viajores, a recolher pelos palcos do mundo por onde passam nacos e nacos de valiosa instrução. A união com o diretor curitibano Marcio Abreu não poderia ter sido mais proveitosa, já que é visível a força de atração que o mais recente espetáculo dirigido por ele para a companhia brasileira de teatro – Projeto brasil – exerce sobre Nós.

A arte, nos lembra Vladimir Safatle, “é a figuração do que a vida social ainda não foi capaz de pensar, daquilo que ainda não tomou forma no interior das formas hegemônicas de vida”. Ao trazer para o palco um conjunto de reflexões em pleno processo de desenvolvimento, incompletas e indeterminadas, Marcio Abreu e o Galpão ousam comemorar mais de três décadas de existência do grupo mineiro, dando um grande passo rumo ao futuro. Um passo em falso rumo a um futuro incerto. Ou seja, o que estamos vivendo nós. Aturdidos por um país em que não desejamos viver e por uma forma teatral de cuja existência ainda não suspeitávamos.

Nós – Grupo Galpão

Quando: Até 11 de setembro. Quarta a sábado, às 21h; domingos, às 18h
Onde: Sesc Consolação – Teatro Anchieta (Rua Dr. Vila Nova, 245 – Vila Buarque – SP)
Ingressos: Preços: de R$ 12,00 a R$ 40,00
Info: Telefone: (11) 3234-3000

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