Entre Alphaville e Parelheiros, as castas brasileiras
"Cidadão não, engenheiro civil formado, melhor do que você", disse mulher a agente que fiscalizava aglomerações na Barra da Tijuca (Foto: Reprodução/Youtube)
A democracia é um sistema político baseado em um princípio fundamental e alguns outros que dele derivam. O princípio básico que distingue a democracia de qualquer outro modo de constituição de um Estado é a ideia de igualdade política: todos são iguais diante da Lei. A Lei, o νομός, é o conjunto das normas que uma sociedade se confere e que, justamente, a constitui como Estado por vincular todos o que dele fazem parte. O Estado, por sua vez, é a forma institucional de uma comunidade política, isto é, de uma sociedade que escolheu se constituir com base na Lei em vez de adotar outros vínculos historicamente disponíveis, como o compartilhamento de uma crença ou o pertencimento étnico.
Pois bem, na δημοκρατία, como se dizia em Atenas, ou na res publica, como a chamaram em Roma, a constituição do Estado é fundada no combinado fundamental de que todos são iguais. Politicamente iguais, isto é, iguais enquanto membros da pólis, do Estado. E de tal forma que, inclusive, o princípio da liberdade política, segundo fundamento da vida democrática, deriva deste da igualdade: porque somos todos iguais é que nenhum cidadão está submetido a qualquer outra potestade além da Lei autoconcedida.
A democracia, contudo, não existe em si mesma. É só uma ideia. O que existem são Estados democráticos, a forma como sociedades a materializam e a instituem como norma da vida em comum. A passagem entre a ideia normativa de democracia e a sua materialização em constituições e formas institucionais que deem conta dos seus requisitos passa por, pelo menos, duas coisas. De um lado, tudo depende da capacidade de se projetar e implementar instituições que sejam capazes de garantir efetivamente a igualdade e a liberdade políticas. Instituições republicanas são os ossos e músculos de um regime democrático. De outro lado, temos a dimensão, frequentemente subestimada, da chamada “cultura política”, o sistema de representações, convicções e valores republicanos que constituem o coração do regime.
Claro, projetar instituições republicanas eficientes e fazê-las funcionar é essencial para a existência de um estado democrático, como insiste com razão os defensores do “design institucional”, mas sem uma cultura republicana consistente e amplamente compartilhada, a coisa toda desanda. A democracia não funciona só com instituições e as instituições não funcionam sem crenças e convicções republicanas que motivem atitudes republicanas e nos levam a adotar comportamentos republicanos. Por mais bem projetada que seja, a democracia nunca é um fato, mas uma tarefa. Em suma, a história mostra que nenhuma democracia para em pé por muito tempo sem democratas que defendam e sustentem as suas instituições.
Até aqui o professor de teoria democrática, agora o sujeito que veio ao mundo em expedição etnográfica.
Neste caso, chamo a atenção de vocês para o fato de que as últimas duas semanas foram fartas de exemplos de como andamos em falta de convicções republicanas por aqui; exemplos de que o problema é atávico e de que, aparentemente, tem se aguçado nos últimos tempos. Vocês devem estar lembrados desses exemplos.
Tivemos o casal de engenheiros na Barra da Tijuca que foi filmado pelo Fantástico destratando o superintendente de Educação e Projetos da Vigilância Sanitária do Rio, Flávio Graça, que fazia fiscalização em bares da cidade à noite. Ouvimos no vídeo a voz de Flávio Graça que se explica a um engenheiro inconformado com o fechamento do bar, repetindo o vocativo “cidadão, cidadão…”, no que é interrompido pela frase lapidar proferida pela mulher: “Cidadão, não. Engenheiro civil formado e melhor que você”. Antes disso, havia ouvido “A gente paga você, filho”. E a convicção do casal é resoluta e se expressa em dois princípios: “Eu, como pagador de impostos, pago o salário de qualquer funcionário público” e “Quem está te questionando é uma pessoa que pode te questionar. Que tem conhecimento para te questionar”.
No final de maio, no Alphaville de Santana de Paranaíba (SP), quando a polícia vai a uma casa atender a um chamado de uma mulher que estava sofrendo violência doméstica, um empresário os recebeu com o seguinte texto, devidamente filmado: “Não pisa na minha calçada, não pisa em minha rua, eu vou te chutar na cara, filha da puta, eu vou te chutar na cara. Não pisa na minha calçada. Você é um lixo. Seu merda. Você é um merda de um PM que ganha R$ 1 mil por mês, eu ganho R$ 300 mil por mês. Eu quero que você se foda…”. E fala ao telefone com o secretário de Relações Institucionais de Barueri, determinando imperativamente que viesse ajudá-lo contra os policiais e trouxesse consigo nada menos que o secretário de Segurança Pública e o prefeito de Barueri.
Corta para esta semana e para a cidade de Santos, onde assistimos ao desembargador Eduardo Almeida Prado Rocha Siqueira humilhando guardas civis municipais que o abordaram para que obedecesse ao decreto municipal que obriga o uso de máscara fora de casa. O desembargador disse que não cumpriria a determinação e foi logo avisando, em tom de desafio, que, se autuado, jogaria a autuação na cara do agente. Em seguida, exibiu-se como desembargador e detentor de inúmeros contatos poderoso, e, por fim, telefonou para o secretário municipal de Segurança referindo-se ostensivamente ao guarda civil como “alafabeto”. Em um segundo vídeo, vimos um outro guarda, deferente e conciliador, explicando-lhe que era um trabalho de conscientização e que ele, justamente porque era o que tinha mais conhecimento de leis, deveria entender… no que foi interrompido por um arrogante “lógico”, que se fez acompanhar por uma história, contada em um francês lastimável, que obviamente não esperava que fosse entendido pelo guarda, em que o desembargador se declarava professor nada menos que da Sorbonne, em Paris.
Um passinho de novo para trás e os senhores verão uma mulher de 51 anos, em Parelheiros, São Paulo, filmada enquanto se debatia, literalmente sob a botina de um policial militar. O policial chegou a tirar o outro pé do chão e a deixar todo o peso do seu corpo no pescoço da mulher dominada. A cena é ainda mais grotesca do que o sufocamento de George Floyd. Uma mulher de 51 anos em agonia debaixo da bota de um agente do Estado, impávido, viril e valente, é o mais completo monumento à desumanidade e à superioridade.
São todas fotografias instantâneas de quão é arraigada na mentalidade brasileira a convicção de que não, de jeito algum, não há hipótese de que sejamos todos iguais perante a Lei. Os engenheiros da Barra da Tijuca, o desembargador de Santos, o empresário de Santana de Parnaíba, o policial militar de Parelheiros são proxies, representantes, sintomas da mesma crença antirrepublicana de que a sociedade brasileira é separada em castas e organizada pela ideia de que os que não fazem parte das castas superiores precisam aceitar, sem contestar, a própria inferioridade e parar com essa fantasia de que têm alguma dignidade intrínseca. É quase como se dissessem, admitam logo que vocês não podem ser iguais a nós e parem de se debater que isso só nos obrigará a humilhá-los de forma ainda mais acintosa.
Os engenheiros da Barra expressam isso na mais pura linguagem dos iliberais neoliberais: se eu pago impostos e você é funcionário público, você é meu funcionário (não do Estado, meu) e, portanto, eu mando em você e você está sob os meus pés. Mas também usam o argumento clássico que, neste caso, compartilham com o desembargador, o empresário e o PM que pisa no pescoço daquela mulher como quem pisa em um animal de abate: eu sou superior a você porque eu sei mais do que você, porque eu tenho mais conexões poderosas do que você, porque eu sou uma autoridade, porque eu ganho mais do que você, porque sou rico, forte e poderoso.
O mais curioso deste mosaico é a relatividade dos papéis. Os guardas municipais de Santos, o superintendente do Rop e os PMs humilhados em Santana de Parnaíba são párias do sistema de castas brasileiro, mas se estivessem em Parelheiros seriam xátrias, quem sabe um brâmane. Isso aqui não é a Índia, as nossas castas são contextuais. O mesmo sujeito que é brâmane em Parelheiros será um sudra na Barra da Tijuca e um pária em algum Alphaville Brasil afora.
Nesse sentido, Ivan Storel, o empresário de Santana de Parnaíba, é praticamente um filósofo do sistema de castas brasileiro quando profere com cristalina limpidez o mote do nosso antirrepublicanismo: “Você pode ser macho na periferia, mas aqui é um bosta. Aqui é Alphaville, mano”. Por isso mesmo, o policial de Parelheiros saboreia o seu momento macho altivo e poderoso para esculachar, humilhar e matar enquanto o contexto lhe favorece, uma vez que nunca sabe o momento em que encontrará pela frente um engenheiro da Barra, um empresário de Alphaville ou um desembargador de Santos e será de novo um inferior, um “lixo”, um morto de fome, um “analfabeto”.
Nesse mesmo sentido, têm razão os que estão por cima, pisando no pescoço, ao ficarem extremamente ofendidos com a pretensão dos pisados e humilhados de reivindicar o princípio democrático da igualdade sob a Lei. Como não ficar revoltado com aquela cena do guarda municipal tentando multar um desembargador, do fiscal que quer fechar o bar, da dona do bar que pede ao policial para que pare de espancar um rapaz já caído e sem reação ou dos policiais que querem entrar na casa do empresário para impedir a violência contra a mulher dele? Como esse país vai melhorar com um guarda, um policial, uma mulher da periferia, um fiscal da prefeitura, uns nadas, uns analfabetos, uns ignorantes, uns mortos de fome ousando multar um desembargador, atrapalhar o lazer dos engenheiros, o desfrute do empresário que quer agredir a mulher que é dele, o livre direito de espancar e esculachar do policial na periferia? Desembargador, engenheiros, empresários e policiais na periferia não são cidadãos, estão muito acima dessa categoria republicana. Se isso aqui fosse uma República e todos fossem iguais sob a Lei, tudo bem, mas em um regime de castas como o nosso como isso poderia ter cabimento? Como é que os párias se atrevem? Onde isso vai parar? Por que diabos eles acreditam que estão numa República?
Pois é. Como vocês esperam que as instituições democráticas funcionem a contento se a cultura política brasileira é ainda cheia dessas representações regressivas e antidemocráticas, cada vez mais sentindo-se à vontade para se expressar sem autocensura ou pudor? A democracia precisa de convicções democráticas e, se elas faltam, estamos roubados.
Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)
(1) Comentário
Adoro os artigos do Wilson Gomes. Gosto muito como ele constextualiza as questões atuais com o passado.