Ensino de Filosofia – continuação
Publico aqui a segunda carta do colega Marcelo Barna, professor de filosofia, recém chegado às salas de aula. Na sequência da carta meu comentário. Agradeço muito ao Marcelo pela oportunidade desse questionamento.
09 de abril de 2013
Ensino de filosofia ou que se pode denominar método.
Querida Márcia, após os diálogos iniciais me vi na obrigação de alterar o formato das aulas. Aquilo já estava me incomodando, preparar aulas, passar na lousa e solicitar aos alunos que no término do conteúdo, respondessem algumas perguntinhas referentes ao conteúdo que copiaram, e, me entregassem. Ao perceber que havia em média 250 folhas para ler e dar nota, o que me gerou mais angústia e incomodo passando minhas parcas duas horas e meia que tenho no período da tarde para me dedicar ao estudo, preparar aulas e ou ler, ficava eu corrigindo e lançando no diário aquelas atividades que, em princípio, pareciam úteis mas que, na verdade, não passaram de “copismo”. Atuar isso sim, fez a diferença ao menos por enquanto.
Em um dia optei por abandonar tudo o que vinha fazendo. Entrei na sala de aula, e como sempre lá estava, uma bagunça, um barulho ensurdecedor, celulares nas mãos, forçando a voz para realizar a chamada. Parei tudo. Arrastei literalmente uma carteira e uma cadeira para o centro da sala, ainda na direção em que o professor ocupa na sala, ou seja na frente. Sentei-me, estiquei as pernas e apoiei os pés na carteira, um puro adolescente. A sala ainda em barulho fiquei em silêncio apenas observando e aos poucos alguns alunos começaram a olhar e perceber o comportamento estranho que eu havia tido, em silêncio fiquei “esperando” a reação, e aos poucos ia introduzindo, com um tom de voz baixa, um início de diálogo. Alguns alunos disseram “nossa olha o professor, você tem que dar o exemplo… outros diziam cala a boca o professor quer falar”, outros sentiram-se à vontade para sentarem e esticarem suas pernas imitando-me. Já havia passado uns 25 minutos, quando finalmente mantendo meu tom de voz baixo consegui expor o que estava acontecendo e como seriam minhas aulas daquele dia em diante. Resolvi interver nas outras salas utilizando a mesma técnica, através da minha atuação comportamental, promovendo o silêncio, despertando o olhar para o diferente e confuso comportamento do professor que estava se formando na relação professor aluno. Expliquei a cada turma, que são 14 sendo 3 do EJAa – estas últimas não possuo problemas – que minhas aulas iriam mudar, transformaria nossas aulas em encontros, em que seria ministrada através do diálogo, pois o que eu procurava de mais precioso em minha vida não estava dentro de livros e sim na vida, ou seja dentro deles. Disse que iríamos apenas conversar, quando uma aluna me disse: “nossa professor não tô entendendo nada, ninguém faz isso com agente”. Sinceramente, Márcia, não foi tão simples assim, como relato, pois houve muito tempo destinado ao meu silêncio, várias pausas ao buscar o diálogo, pois o propósito principal era o de me fazer escutar para que eles pudessem amenizar as angústias e ansiedades, tomando a propriedade da consciência em favor da concentração, respeito e escuta. Percebi que o silêncio é uma poderosa força para o exercício da filosofia e para o seu ensino. Se isso irá dar certo, não sei, pois durante algum tempo irei manter esta técnica.
Quando finalmente consegui após duas aulas com cada turma, falar sobre o propósito das aulas, informei que aqueles exercícios repetitivos não iriam mais acontecer, e que então as avaliações mudariam, e teriam que praticar a memorização sobre os diálogos e conversas que teríamos. Isto ficou bem evidente quando perguntei a uma turma do primeiro ano o que eles haviam aprendido sobre filosofia? Um aluno me respondeu: “sobre o que é o amor”. Mas o mais interessante é que essa aula foi um debate, um diálogo e não tinha a ver com o conteúdo programático. Foi uma aula em que pedi para eles ficarem em roda, que com muita resistência conseguiram, e simplesmente conversamos sobre o amor, as relações, namoro e demais assuntos relacionados. Resultado, aprenderam alguma coisa, escutaram, internalizaram, discutiram no intervalo, segundo a informação que me chegou por um aluno de outro ano, que fui dar aula. Mas em relação à filosofia e ao conteúdo que eu havia passado, sobre história da filosofia, Pitágoras, Mitologia, do Mito à Razão, Ética, Moral, Estoicismo e outros, disseram que não aprenderam nada. Isso se repetiu nas quatorze turmas que tenho, sem brincadeira, isso é muito sério, pois o que estou ensinando: nada. O que estou educando: nada. Qual a diferença que estou fazendo na vida deles: nenhuma. Isso é um absurdo e muito sério, considerando o que me proponho: formar cidadãos para a vida e não para a mão de obra barata. Alunos começaram a debater, falar, expressar pensamentos, realidades, respeito, iniciaram um processo de diálogo e muito mais. O mais interessante disso, é que tive o apoio da coordenação pedagógica da escola, inclusive alunos que presenciei, dizendo que as aulas de filosofia estavam sendo boas, alunos manifestando o bem estar que sentiram durante uma aula, diretamente ao coordenador. Acho que fiz a diferença mesmo sendo um pouquinho, ao menos para alguns alunos.
Resolvi mudar em virtude daquilo que havíamos conversado, querida Marcia, sobre a subjetividade. A minha estava sendo perdida, ou melhor não estava sendo atendida, pois era uma angústia muito profunda que eu sentia, ao olhar para quase 450 alunos e ver apenas que estavam copiando, e entregando em dupla ou grupo, em que apenas um ou dois faziam e os outros recebiam o mérito. Resolvi mudar atendendo uma demanda subjetiva, para lançar-me ao encontro da vida, ou melhor para as vidas.
É óbvio que ainda há muitas outras coisas e questões a serem relatadas, principalmente sobre o conteúdo programático, utilização de recursos áudio-visuais, e demais técnicas, mas em meio a um período em que os apagões – literalmente – acontecem, a mercê de perder um aparelho eletrônico, em virtude da queda de energia, estou ainda pensando como utilizar determinados recursos. Mas isso posso lhe escrever em outro momento.
Seguirá na próxima carta, o extasiamento diante ao aprendizado
Mais uma vez muito obrigado.
Marcelo,
fico muito contente em receber notícias dos seus processos como professor. E queria dizer algo a você antes de mais nada, que desejo que você continue, que não abandone essa que é a sua maior riqueza como professor, a saber, a sua própria formação, a experiência que você está vivendo e que, sendo intensamente vivida, permitirá aos seus estudantes que também se realizem por meio dela. Acredito realmente nesse encontro potente dentro da sala de aula, esse encontro aberto e intenso no espaço cognitivo que, para mim, é o mais ético que há, desde que possamos realizá-lo assim.
Tenho alguns ex-alunos que hoje são professores tanto em escolas como em universidades. Um deles foi meu aluno no ensino médio há quase 20 anos atrás e hoje é professor de uma universidade e um intelectual impressionante. Um dia você verá seus estudantes crescidos e vivendo intensamente experiências instigantes e se sentirá feliz como eu me sinto hoje quando lembro de pessoas que estudaram comigo, sob meus cuidados, digamos assim. Estou falando isso pra você, que enfrenta situações tão ruins, que é preciso lembrar da esperança como uma energia diária. Lembro do conceito de esperança do Ernst Bloch, não a boba crença de uma vida feliz, mas o impulso para construir uma vida justa, um querer mais do que aquilo que está disponível ou possível. Não ser derrotado por uma estrutura que quer nosso fracasso como professores. Isso me importa.
Curiosa e corajosa essa sua nova entrada na sala de aula. Mimetizando os jovens você conseguiu fazer com que olhassem um pouco para si mesmos. Você usou intuitivamente um espelho e permitiu que vissem algo novo. Imagino que não tenha sido fácil. Nunca é fácil, mas “fácil” não é uma categoria que componha esse campo onde atuamos. É, no entanto, apesar das “dificuldades” que o sentido das coisas pode ir se construindo.
Fico feliz também com o que você diz sobre o silêncio. O que se diz, o que não se diz, o que se pode dizer e o que não se deixa dizer, são questões que devemos sempre ter em vista em nosso cotidiano docente. A diferença entre o silêncio e o mutismo também nos importa. Do mesmo modo que a tagarelice que não deixa ninguém pensar e que ocupa o mundo publicitário e alienado em que vivemos. Creio, como você, que é preciso levar adiante esse questionamento quando ao sentido do silêncio. É ele que nos põe dentro do diálogo que você começa a conquistar com seus estudantes. Esse diálogo nunca ficará pronto, precisa ser cuidado diariamente, a cada aula. Chamá-los à experiência da sala de aula é coisa que não se pode esquecer se a intenção é, segundo suas palavras “formar cidadãos para a vida e não para a mão de obra barata.”
Eis um desafio, Marcelo. Daqueles que envolvem a coragem heroica contra a cegueira da ideologia. Aguardo notícias suas.
Um abraço
Marcia