Ensino de filosofia
ENSINO DE FILOSOFIA
“Olá Marcia, será que vc pode me ajudar? Estou no segundo semestre de filosofia. Sou professor da rede estadual da disciplina de filosofia. Gostaria de ter um método de ensino que despertasse o interesse dos alunos, já que percebo a apatia e desinteresse deles, pela filosofia e por outras matérias e pelo estudo. Parece que nada lhes interessa, e isso começa a me atingir, pois as aulas resumem-se em escrita na lousa e cópia por parte deles. Ao levantar uma questão simplesmente eles se calam, não participam, não se expressam. O que será que está acontecendo com os nossos jovens? O que ou como eu poderia “despertá-los” de um sono profundo que talvez seria a ignorância. Por gentileza se vc tiver alguma sugestão, me ajude. Venho pesquisando metodologias, bibliografias, mas ainda não me identifiquei com algo que eu poderia utilizar. Mais uma vez muito obrigado pela sua atenção, e levando em consideração sua agenda e seus compromissos, apenas uma palavrinha já me ajudaria. Grato Marcelo.”
Recebi a mensagem acima do professor Marcelo Barna e perguntei-lhe se poderia responder por meio de um texto no blog, abrindo assim a questão para outros professores que, porventura, passem por situação semelhante. Agradeço pela gentileza da partilha. Creio que podem surgir várias manifestações de solidariedade ao seu caso que é, de certo modo, o de todos nós vivendo em escolas de ensino público ou privado.
A resposta à sua carta poderia ser ampla se eu pudesse desenhar aqui a situação da educação e da escola em relação à política nacional, à cultura e à ética. Mas o blog possibilita, por sua própria natureza, apenas esboços. Tenho, no entanto, me preocupado com desenhos mais projetivos, pesquisando sobre e dentro do campo da educação enquanto prática cultural, escrevendo artigos que resultam destas pesquisas, ensinando meus próprios estudantes, entre os quais se encontram muitos professores. Conto isso, desta maneira, por que me parece urgente qualquer esforço de saída do círculo cínico em que está inscrita a educação, enquanto muitos dos que se ocupam com ela põem sempre a culpa de tudo o que é vivido em seu meio, em um outro onipresente ou onisciente, o Estado, o sistema, o currículo. Em suma, as várias amarras do poder…
É verdade que a educação encontra-se em situação limítrofe no que concerne à política, que a cultura (criada e recriada em aliança mórbida com a política) piora as coisas ao desprezar a educação. Resta a meu ver, ocuparmo-nos da relação entre ética e educação, entendendo por ética o que fazemos uns com os outros. Interessa entender o que estamos, de fato, fazendo uns com os outros (estudantes, professores, familiares, sociedade) no campo da educação. Está em jogo, neste caso, nossa relação pessoal com a questão tão impessoal da educação. É a dialética entre esses “pólos” que interessa compreender. O que é pessoal, o que é impessoal? Penso que, por meio da ética talvez possamos lançar novas bases para a cultura e a política, mesmo que seja como resistência a um estado de coisas com o qual não podemos individualmente compactuar.
Se, por um lado, tenho me dedicado a uma pesquisa sobre “Educação e Ética” de cunho interdisciplinar envolvendo também a arte e a cultura, por outro, estou em meio à prática docente há bastante tempo, quase 20 anos, sem interrupção. Assim, o que vou dizer a você, Marcelo, depende destes dois aspectos: de um lado, do ato de estudar os assuntos, conteúdos e temas que me movem e, de outro, o fato de que, na prática diária, enquanto ela é movida e carregada por reflexão, me vejo como o efeito de tudo o que penso. Incluo no que penso o que percebo e o que desejo. Pensar não é uma prática puramente racional, mas altamente afetiva. E é esta prática diária do pensamento que age, o que me oferece a minha “forma” de educar, em outras palavras, o que eu penso – enquanto percebo e desejo – no ato de educar.
No meio disso, alguns congressos e encontros voltados ao tema da educação tem sido, para mim, momentos importantes para repensar e descobrir questões novas. Do mesmo modo, venho escrevendo com Nadja Herman (PPG Educação da PUC-RS) um livro chamado Diálogo/Educação que deve vir a público – se tudo der certo – ainda este ano pela editora do SENAC/SP. Este diálogo tem sido, para mim, um método por meio do qual consigo me manter atenta aos problemas gerais da educação e também à minha própria prática. Ser professor não é uma coisa nada fácil, assim como ser médico, arquiteto, cozinheiro, jardineiro, executivo ou operário. Cada profissão possui suas vicissitudes, seus percalços, seus momentos grandiosos e, infelizmente, também os mesquinhos. Contra a comiseração que pode surgir a cada vez que nos confrontamos com a precariedade, em meio à qual fazemos sobreviver a educação como prática de vida, é bom lembrar que, como professores, somos profissionais (que merecem respeito como tais), e que devemos realizar uma tarefa que não é apenas uma tarefa pragmática e útil, mas também uma arte e uma ciência, pois formamos pessoas para o conhecimento – a novidade do saber – e para a vida, enquanto a vida é feita de ética e política. A tarefa da educação é de ordem social, pois que a educação confirma ou muda o mundo em que vivemos.
Neste sentido, tentando ser fiel ao que você me pergunta, Marcelo – e lembrando que filosofar é saber perguntar, e que saber perguntar implica poder entender aquilo que se pergunta – devo dizer algo que penso possa valer de antemão sobre o ato de educar. Quero dizer que, como a maternidade que parece um ato solitário – sendo, no entanto, coletivo – também a educação é um ato coletivo. Somos adultos e, enquanto seres responsáveis, ensinamos juntos algo às crianças e aos jovens. Esses jovens serão adultos no sentido do que fizermos deles. Pois uma geração deposita todos os seus triunfos e fracassos na conta futura.
Nosso ato de educar, portanto, precisa ser ético, no sentido mais delicado da palavra, no sentido do que podemos oferecer àqueles que esperam algo de nós. Neste sentido, precisamos nos perguntar, o que temos ofertado aos nossos jovens, o que lhes oferecemos em termos de conhecimento e experiências? Que entendemos por conhecimento? Que entendemos por “experiência”? Que entendemos das potencialidades da vida experimentada todos os dias e ano após ano? Creio que, de um modo geral, pais e professores oferecem muito pouco às crianças e jovens. Mesmo os que podem oferecer bens, conforto material, pouco oferecem em termos de experiência humana e subjetiva. Refiro-me, evidentemente, aos fatos grandes e pequenos – como ler um livro, como aprender uma canção, participar de uma conversa – que dão sentido à vida. Creio também que não há autocrítica capaz de pensar no que de melhor podemos oferecer. O autoritarismo, no sentido da falta de autoanálise que impõe verdades prévias a um outro, é comum entre os que ocupam a profissão de ensinar. Por outro lado, pais escolhem sempre o caminho mais fácil – e, por fim, no fracasso escolar, que sabem, é sempre fracasso familiar – culpam a escola. Sabemos como ajudar um indivíduo a torna-se adulto – responsável e autocriativo, autônomo e feliz – é complicado.
Refiro-me, no momento de pensar em nossa generosidade como adultos que ensinam, tanto ao modo como vivemos o “currículo” na escola, quanto à experiência cultural na escola e fora da escola. Ensinamos realmente a ler? A ler o quê? A ler para quê? Ensinamos a sensibilidade? Qual? Oferecemos música que possa ser ouvida, filmes que possam ser vistos? Que músicas? Que filmes? Ensinamos a ver e olhar? O que é a televisão e a internet em nosso cotidiano? Temos tempo para avaliar o sentido (de) formativo disso tudo no âmbito da escola, mas também no da família? Penso também se ensinamos nossos estudantes a observar a natureza e a urbanidade? Ajudamos nosso jovens e crianças a entenderem o mundo em que vivem? As relações de poder e força em que estão envolvidos? Penso que, naquilo que ensinamos, estamos conduzindo nossas crianças e jovens. Mas me preocupo se de fato, nos colocamos a pergunta: conduzimos nossas crianças e nossos jovens para onde?
Aonde desejamos que cheguem? Que mundo receberão de nossas mãos? Que recursos disporão a partir daquilo que lhes legamos?
Além disso, creio que a prática da educação não seja possível hoje sem estabelecer conexão com mais um aspecto fundamentalmente ético: o do reconhecimento do lugar do outro, do estado de ser e de viver deste que se coloca diante de nós como um “outro”. Sabemos que o “outro” é uma categoria caríssima à toda reflexão filosófica e que ela significa, sobretudo, aquele com quem não temos contato, aquele com quem, ao mesmo tempo, só podemos estabelecer contato pelo diálogo.
Diante de tudo o que você me pergunta, Marcelo, me parece importante, perguntar junto com você: será que reconhecemos nossos alunos? E o que o ato de reconhecê-los, ou não reconhecê-los, implica no que concerne à educação que lhes ofertamos?
Marcelo, entendo por que você me pede “ajuda”. Entendo que este pedido traduz um afeto: você deseja, enquanto é professor, não estar só. Por isso, me escreve pedindo ajuda. Pergunto-me, do lado de cá, se posso ajudá-lo. Vejo que, também para mim, a questão da educação é uma ferida. Uma ferida que é diariamente cuidada com muitos esforços, com todos os remédios que encontro. Sei que ela não vai fechar, mas que há momentos em que a dor diminui, quando estou com meus estudantes, quando escrevo, quando posso, como agora, responder esta carta. Penso em você, Marcelo, na sala de aula diante de toda essa apatia e desinteresse. Penso que assim como vc me pede ajuda, seus estudantes, assim como os meus, também me pedem ajuda.
Por isso, não chamo mais meus estudantes de alunos. Sou, como eles, também estudante, embora esteja hoje na posição institucional de professora. Alguns dos meus estudantes são professores, outros serão um dia. E sei que temos todos que nos ajudar.
Considerando tudo isso, Marcelo, o cerne de sua pergunta me dá muita alegria. Você me pede por um “método”.
Mas isso eu respondo para você amanhã, no próximo post.