O filósofo e o detetive

O filósofo e o detetive

Wittgenstein procurou criar uma linguagem científica perfeita, mas sua investigação obsessiva de um filosofia transparente, que eliminasse qualquer tipo de paradoxo, assumiu ironicamente as cores dos enredos policiais, como nos romances de  Philip Kerr e Jerome Charyn ou no ensaio do filósofo João da Penha que publicamos em seguida

 João da Penha

 Falemos apenas disto, eminentes sábios, mesmo que nos apoquente. Pior é o silêncio; as verdades sufocadas tornam-se peçonhentas.
“Assim falou Zaratustra”
Nietzsche

 Indizível é tudo isto, ó Deus, que agitado se prostra de joelhos.
“Em  movimento”
Georg Trakl

 Acerca daquilo de que não se pode falar, deve-se silenciar
“Tractatus logico-philosophicus”
Wittgenstein 

INVESTIGAÇÕES POLICIAIS
Parte I

 §1. Toda acusação deve ser investigada

 Avancemos um pouco no tempo – alguns anos além de nossa época.Vamos até Londres, a capital britânica. A cidade está um caos, é um pandemônio só: perigosa, violenta, suja, tomada por hordas de imigrantes que infernizam o cotidiano dos nativos. Para piorar, suas ruas encontram-se ameaçadas por um  assassino em série. Mas, apesar de tudo, predomina entre os habitantes uma difusa sensação de segurança, mercê da tecnologia à disposição de todos. A informática zela pela comunidade – e domina a vida de cada um; a um ponto tal que tornou-se difícil delimitar as fronteiras – se ainda resta alguma – entre a realidade e a virtualidade. O  real e o virtual embaralharam-se.

Os assassinos em série – pois há uma malta de outros potenciais facínoras pronta para agir – que atormentam a cidade são de um tipo singular. Todos padecem de uma disfunção neurológica que descobriu-se ser a causa do comportamento agressivo. A explicação da delinqüência passa pela  biologia, descartadas que foram as causas morais e sociais. Lombroso voltou à moda. Os psicopatas dessa Londres futurista guardam uma outra  diferença em relação aos serial killers contemporâneos: todos eles recebem nomes de filósofos, escritores e cientistas de nomeada. Um deles atende pelo nome de Wittgenstein. Sua vida de crimes se inicia quando um diagnóstico médico lhe atesta ser portador da tal disfunção neurológica, o que o leva a invadir um computador, onde o governo cadastra potenciais assassinos, e de lá retirar a lista de suas futuras vítimas, todas padecendo do mesmo mal. Como assassino em série, e para fazer jus à classificação, ele começa a contabilizar as vítimas: Sócrates, São Tomás de Aquino, Spinoza, Kant, Bertrand Russell, Dickens, Byron, Keats.

O assassino Wittgenstein é homem refinado e culto. Logo, para detê-lo  precisamos de um detetive à altura de seu gênio. E já que estamos em Londres, é inevitável que ele seja do tipo Sherlock Holmes. Mas como os tempos são outros, nosso Sherlock veste saias e se chama Isadora Jakowicz. Embora inteligente e culta, lhe faltam, contudo, os rasgos de genialidade de seu modelo. Para compensar a desvantagem, ela substitui a grande arma do amigo de Watson na solução dos crimes – o dedutivismo –  pela decantada intuição feminina. E, para não fugir aos lugares-comuns da literatura policial, surge uma atração entre o criminoso e a detetive. No desenrolar da história, aparecem manuscritos da autoria do meliante, redigidos no estilo das Investigações filosóficas, encadernados  nas cores azul e marrom.

Deixemos agora a enevoada Londres e façamos uma brevíssima escala na ensolarada Califórnia. Na aprazível costa do Pacífico, vamos encontrar um certo professor Wittgenstein, que lá se encontra lecionando numa escola para crianças afásicas.

Os dois Wittgensteins acima são personagens distintos, criações romanescas de Philip Kerr, em Uma investigação filosófica (Siciliano), e de Jerome Charyn, em The tar baby (Holt, Rinehart & Winston), respectivamente. Em ambos os casos o modelo inspirador é um só: Ludwig Josef Johann Wittgenstein. Agora é a minha vez de exercitar meu lado detetivesco. Como manda a praxe, quero saber qual o crime e a quem ele interessa. Há um acusado, um tal de Wittgenstein. Quem é ele? Que crime cometeu?

Trata-se de um indivíduo sem ficha policial. Um primário, portanto. Diz-se filósofo. O crime de que o acusam é de ter escrito muito. Mas que mal há nisso? Escreveu muito complicado, respondem seus acusadores. Seu pensamento é insólito, insistem. Destoa dos padrões habituais. A língua que usa para se expressar já é por si só complicada, o alemão, que ele se compraz em tornar mais difícil, criando uma sintaxe muito particular. Fala em “jogos de linguagem”, “formas de vida”, “proposição”, “gramática”, “enfeitiçamento do intelecto”, “linguagem privada”, nega a existência de problemas filosóficos, etc. As acusações se acumulando, só restou investigar a vida do indigitado. Eis o que se descobriu.

Nasceu em 26 de abril de 1889, em Viena, então capital do império Austro-Húngaro, império já pré-agonizante, mas com energia suficiente para uma sobrevida fulgurante de quase 30 anos, filho de um magnata pioneiro da indústria siderúrgica no país e que expandira seus negócios tornando-se   acionista de uma empresa americana do setor. Como se vê, o suspeito nasceu em berço de ouro. Foi educado em casa por preceptores  até os 14 anos. Tendo demonstrado precocemente pendores para os engenhos mecânicos, chegando mesmo a construir uma máquina de costura, os pais, entusiasmados, mandaram-no para uma escola secundária no interior austríaco, onde predominavam os estudos de matemática e física em vez da educação humanística. Aos 17 anos, ingressa na Escola Superior de Berlim, onde permaneceu durante três semestres. Dois anos mais tarde, matriculou-se na Universidade de Manchester, Inglaterra, no curso de engenharia, onde sua atenção dirige-se inicialmente para as pesquisas aeronáuticas. Assim, estuda as correntes de ar, dedica-se à construção de um tubo reator e em seguida passa a desenhar hélices para propulsão. Essas atividades práticas acabam por lhe despertar a curiosidade quanto aos fundamentos da matemática, conduzindo-o, em 1908, a um encontro com um lógico e matemático alemão já então célebre, Friedrich L.G. Frege. Segundo consta, foi desse senhor a sugestão para que fosse estudar filosofia com o também lógico e filósofo Bertrand Russell, o que ele fez de 1912 a 1913, depois de admitido num estabelecimento de ensino inglês, o Trinity College. O sr. Russell encantou-se com o novo aluno, chegando a afirmar que conhecê-lo foi uma das mais excitantes aventuras intelectuais de sua vida.

Mas não apenas o sr. Russell encantou-se com ele. Do mesmo encanto foram tomados outros figurões do ambiente universitário inglês, como  o filósofo George Edward Moore e o economista John Maynard Keynes. Mas a admiração que lhe devotavam não os impedia de destacar algumas de suas esquisitices. O sr. Russell indagou-se certa feita se seu novo aluno era um gênio ou apenas um excêntrico. Acabou se rendendo à evidência: tratava-se de um gênio. E um gênio segundo a imagem clássica: exaltado, profundo, intenso e dominador – mas inconveniente. Um dia, visitando o mestre, joga-lhe, na bucha, a pergunta: “Acha que sou um perfeito idiota? Porque se sou, vou me tornar aeronauta, mas se não sou, vou me tornar filósofo”. Reponde-lhe o mestre: “Meu caro, não sei se você é ou não um perfeito idiota, mas se me escrever um trabalho durante as férias sobre qualquer tema filosófico que lhe interessar, eu o lerei e depois lhe direi” (Autobiografia de Bertrand Russell, Civilização Brasileira). O acusado seguiu à risca o conselho e no começo do período seguinte trouxe o trabalho. O sr. Russell tão logo leu a primeira oração ficou convencido de que estava diante de um homem de gênio e aconselhou-o a não se tornar aeronauta em hipótese alguma.

O acusado, já foi dito, era filho de família rica. Cresceu em ambiente permeado pela cultura erudita. Os salões de sua casa eram freqüentados pela nata intelectual e artística da sociedade vienense. Herdou da mãe o gosto pela música, a ponto de ter se tornado um exímio clarinetista. Sua lacuna intelectual maior, segundo informações obtidas, era a filosofia. Se confiáveis as informações, leu alguns poucos filósofos: Platão, Santo Agostinho, Schopenhauer, Kant e Kierkegaard. Aprofundou-se um pouco mais, ao que parece, nas idéias de Leibnitz e Alexius Meinong.

Moço fino, educado, já sabemos, mas, dizem, de maus bofes, manifestação, talvez, da segurança típica dos bem-nascidos, que não ignoram seu poder social, misturada à arrogância que afirmam própria dos intelectuais. Assim, não suporta ser contrariado. Encara como pessoal qualquer discordância com suas idéias. Até mesmo com o sr. Russell ele brigou, quando este, depois de tê-lo cumprimentado pelo primeiro crime que cometera –  um livro de título esquisito, Tractatus logico-philosophicus – reprovou-lhe um outro crime, também um livro, de nome Investigações filosóficas, cujas teses o sr. Russell desdenhou, afirmando que, se verdadeiras, a filosofia, dali em diante, se tornaria mera conversa para a hora do chá. Também irritou-se bastante quando um outro de seus colegas de ofício, conhecido como Karl Popper, discordou frontalmente de suas idéias filosóficas. Eis um trecho do depoimento do sr. Popper a respeito:

“No início do ano letivo de 1946-47,o secretário do Clube de Ciências Morais, de Cambridge, convidou-me a fazer uma exposição acerca de alguma ‘charada filosófica’. Estava claro que se tratava de uma formulação devida a Wittgenstein, por trás da qual estava sua tese filosófica de que, em Filosofia, não existem problemas genuínos, mas tão-somente charadas lingüísticas. Uma vez que essa tese estava entre minhas aversões prediletas, decidi falar a propósito de ‘Existem problemas filosóficos?’. Comecei meu trabalho (…) exprimindo surpresa por ter sido convidado pelo secretário a falar ‘a propósito de alguma charada filosófica’; e assinalei que, negando implicitamente a existência de problemas filosóficos, quem fizera o convite tomara posição, talvez inadvertidamente, num debate gerado por um genuíno problema filosófico. (…)

“Eu pretendia apenas fazer uma introdução provocadora e leve do meu tema. Mas, a essa altura, Wittgenstein pulou da cadeira e disse, alto e,a o que me pareceu, em tom zangado: ‘O Secretário fez exatamente o que lhe foi dito que fizesse. Observou instruções minhas’. Não dei atenção e prossegui (…).

“Fui adiante, apesar de tudo, para dizer que, se eu não acreditasse na existência de problemas filosóficos genuínos, eu não seria por certo filósofo; e que o fato de muitas, talvez todas as pessoas acolherem irrefletidamente soluções insustentáveis para muitos, talvez para todos os problemas filosóficos, propiciava a única justificativa para ser-se filósofo. Wittgenstein ergueu-se de novo, interrompeu-me, e falou longamente acerca de charadas e da inexistência de problemas filosóficos. Em momento que me pareceu adequado, interrompi-o, apresentando uma lista de problemas filosóficos, por mim preparada, onde figuravam questões como ‘Conhecemos as coisas através de nossos sentidos?’, ‘Há conhecimento por indução?’.Wittgenstein rejeitou essas indicações, dizendo tratar-se de questões lógicas e não filosóficas. Mencionei então o problema de saber se existem infinitos potenciais ou talvez mesmo atuais, o que ele considerou uma questão de matemática. Aludi, em seguida, aos problemas morais e ao problema da validade das regras morais. A essa altura, Wittgenstein, que estava sentado junto à lareira e brandia nervosamente o atiçador de fogo, que por vezes usava como batuta de maestro, para sublinhar suas afirmações, lançou-me um desafio: ‘Dê-me um exemplo de regra moral’. Respondi: ‘Não ameaçar conferencistas visitantes com atiçadores de fogo’. Wittgenstein, com raiva, atirou longe o atiçador e precipitou-se para fora da sala, batendo a porta atrás de si”. (Autobiografia intelectual, Cultrix)

Descobriu-se também que o acusado, além de impaciente com seus críticos, tem um temperamento idiossincrático. Segundo o depoimento do sr. Russell, seu antigo aluno lhe confessara, em 1913, que estava indo viver numa cabana que ele mesmo construíra na Noruega porque soubera da ida para Londres do seu cunhado, e a possibilidade de os dois serem vizinhos lhe era insuportável.

Muitas outras acusações pesam sobre o acusado, algumas, a meu ver, irrelevantes no processo da investigação ora em curso, devendo, portanto, serem relegadas ao capítulo dos registros menores. É o caso de sua homossexualidade, sobre a qual, um dos que lhe investigam a vida e a obra, o sr. William Warren Bartley III, dedicou umas trinta páginas (Wittgenstein, Ediciones Cátedra, Madri). Mas como o gosto sexual dos indivíduos não me parece critério para avaliar o valor intelectual de um filósofo nem a competência profissional de um pedreiro, encerro aqui esta primeira parte da investigação e, neste momento, estou passando para  meu assistente, professor de filosofia, a incumbência de interrogar o acusado.

Parte II

 §1. É garantido a todo acusado defender-se.

 Encarregado pelo inspetor-chefe de dar continuidade à presente investigação e usando das atribuições que a lei me concede, encaminhei ofício ao acusado, convocando-o para  interrogatório, convocação ignorada por ele. Numa segunda tentativa, recebi como resposta uma pilha de livros, todos assinados pelo acusado, onde estava anexado um bilhete me dando ciência de sua morte em 29 de janeiro de 1951, em Cambridge. Testemunhas afirmam que suas últimas palavras foram: “Diga-lhes que esta vida não cessou de me maravilhar”. Uma delas, aliás, garantiu-me que mesmo se o acusado estivesse vivo não seria fácil trazê-lo para depor, pois talvez se recusasse a isso usando como álibi  uma de suas frases preferidas: “Se não se pode pôr uma resposta em palavras, tampouco se  pode fazer a pergunta.”

A despeito da morte do acusado, as investigações tiveram que prosseguir. Assim, só me restou mesmo, para levar adiante o processo, consultar a documentação vastíssima deixada pelo falecido, a quase totalidade dela trazida a público depois de sua morte. Para os trâmites do processo, e face a  exigüidade de tempo, terei basicamente que me limitar a dois desses documentos, peças fundamentais na investigação, deixando de lado, infelizmente, outros tantos de também grande importância. Destaco logo que, embora austríaco, não é em seu país que o acusado, a rigor, inicia e desenvolve sua trajetória intelectual e alcança notoriedade, mas na Inglaterra, onde, já sabemos, suas atividades de estudante e depois professor de filosofia começaram. Os documentos em questão são seus dois livros mais famosos,citados no início deste relatório: Tractatus logico-philosophicus e Investigações filosóficas.

Examinando as obras em pauta é fácil perceber os motivos do fascínio  de seu autor sobre  amigos e leitores. Também é fácil concordar com os que estranham o gosto que lhe regula o estilo de expressão, totalmente fora dos padrões vigentes. Ninguém jamais irá dizer que seu estilo é um primor de clareza. Ele mesmo admitiu a singularidade do que escreveu e a forma como o fez, conforme atestam suas palavras logo no início do Tractatus: “Apenas compreenderá este livro quem, alguma vez, ele mesmo, já tenha pensado os pensamentos nele expressos – ou, ao menos, pensamentos semelhantes.” Contudo, tempos depois, ele mesmo faria a defesa de seu estilo, dizendo para um de seus amigos, o sr. Ludwig von Ficker, citado por um outro investigador, Joachim Schulte, que o Tractatus era um livro estritamente literário e filosófico, mas sem qualquer verbosidade. (Wittgenstein: An introduction, Sunny Press, EUA). O estilo do acusado, pela vertigem que provoca no leitor, faz lembrar o comentário de um de seus colegas, de nome Nietzsche, que, referindo-se a um elemento, conhecido como  Hegel, afirmou que este falava das coisas mais sóbrias na linguagem de um ébrio. O Tractatus – e tudo o mais que o acusado escreveu – provoca o mesmo tipo de reação. Também fascinado, mergulho em meio à selva de parágrafos do Tractatus e das Investigações filosóficas. Percebo logo ser impossível, sequer, dar uma idéia simplificada de tudo que lá se encontra em mínimas linhas. Apenas pistas é o que se pode fornecer, pistas que possam levar a uma chave explicativa do que pensou e escreveu o acusado Wittgenstein.

Quando redigiu o Tractatus, o acusado estava sob a forte influência de duas testemunhas já citadas aqui, o sr. Russell e o sr. Frege. Ambos se entregaram à tarefa de formular princípios que propiciassem a enunciação de um pensamento logicamente rigoroso. O sr. Russell, por exemplo, num livro do qual é co-autor, com o título de Principia mathematica, criou um sistema lógico-matemático cuja linguagem, graças ao rigor, eliminaria qualquer tipo de paradoxo, termo que literalmente significa “contrário à opinião aceita e comum”. Para evitá-los, segundo o conselho do sr. Russell, bastaria criar um conjunto de regras que limitasse o uso da linguagem. Já o sr. Frege, por sua vez, propôs a criação de  uma língua formal transparente – “transparente” porque suas leis seriam visíveis –, que contribuiria enormemente para eliminar ambigüidades e dúvidas, abundantes na linguagem comum.

As idéias básicas do Tractatus derivam dessas duas fontes. Impulsionado por elas, seu autor se dispôs a criar uma linguagem universal, uma espécie de língua científica supostamente perfeita, ideal, a única, nessa perspectiva, com valor cognitivo. Só uma linguagem concebida nesses moldes seria capaz  de espelhar, com rigor, os objetos sobre os quais falamos. A escolha  da linguagem como o tema básico de reflexão decorre da tese do acusado de que é por meio dela que o mundo se torna cognoscível para o homem. A linguagem fala sobre o mundo, é uma imagem dele. E a imagem do mundo é “a totalidade dos pensamentos verdadeiros” (Tractatus, §3.01). A linguagem é o veículo que permite ao homem se comunicar com seus semelhantes, trocar com eles  suas interpretações e avaliações das coisas e do mundo. Aquilo que o indivíduo pensa de si para si, seu mundo privado, só adquire expressão intersubjetiva por meio da linguagem. E tudo o que é pensado pelo indivíduo também pode ser dito por ele. Os limites do exprimível são os limites do pensamento. Por isso, lê-se no Tractatus, §5.6: “Os limites de minha linguagem são os limites de meu mundo” (grifos do original).

Mas a linguagem, parte do organismo humano, e não menos complicada que este, pode ser enganadora: “A linguagem mascara (verkleidet) o pensamento” (Tractatus, §4.002). Por isso se torna necessária a reflexão sobre a natureza lógica da linguagem, pois se persistirmos em filosofar dentro dos padrões tradicionais, nos depararemos sempre com falsos problemas, os chamados problemas filosóficos, um dos temas discutidos pelo  acusado nas Investigações filosóficas.

Depois da publicação do Tractatus – em 1921, nas páginas de uma revista, e em 1922 sob a forma de livro em edição bilíngüe por uma editora inglesa –, o acusado permaneceu cerca de oito anos retirado das atividades  filosóficas, às quais retornou em 1929. O livro Investigações filosóficas, que o notabilizaria nessa segunda fase de sua vida, é de publicação póstuma. Desde então uma outra questão polêmica se formou em torno de sua figura: passou-se a admitir uma divisão de seu pensamento em duas partes distintas, até mesmo antagônicas. É comum caracterizar a filosofia posterior do acusado como uma clara reação ao Tractatus. Muita tinta continua correndo a respeito, e embora venha prevalecendo a tese da distinção radical entre o Tractatus e as Investigações filosóficas, há uma parcela de investigadores que recomenda precaução a respeito. É o caso de Anthony Kenny (The legacy of Wittgenstein, Basil Blackwell). A mesma opinião é compartilhada por um outro investigador, Hans Sluga (The Cambridge Dictionary of Philosophy, Cambridge University Press), que  atribui a divisão em pauta a um engano (misleading). Os defensores da continuidade filosófica do Tractatus e das Investigações filosóficas sustentam que os dois livros completam um arco de reflexão onde o segundo é o alargamento  da órbita de discussão do primeiro,destacando que outras obras do acusado, inéditas durante décadas, e em progressiva publicação, reforçam a tese dessa continuidade.

Está fora do alcance desta investigação examinar a pertinência ou não do debate  sobre se o acusado permaneceu fiel às teses do Tractatus ou se as corrigiu, ou repudiou, nas Investigações filosóficas. Só uma análise aprofundada das artimanhas especulativas do acusado – contidas nas duas obras citadas – será capaz de fornecer  elementos comprobatórios de uma ou outra posição. No âmbito do processo em curso, basta o que se segue.

Nota-se inicialmente que o fulcro da reflexão nas duas obras permaneceu o mesmo: a linguagem. Toda a trajetória filosófica do acusado se caracteriza pela preocupação em explicitar e explicar os nexos existentes entre a linguagem e o mundo, ou seja, como o pensamento e a realidade se interligam. O que há de diferente na etapa posterior ao Tractatus é que, nesse livro, como já mencionado, o objetivo era a criação de uma linguagem ideal, sustentada sobre pressupostos científicos: se a linguagem então fora concebida como a reprodução dos objetos sobre os quais se fala, a linguagem científica seria a única com tal propriedade, portanto só ela seria possuidora de sentido. Já nas Investigações filosóficas, a busca é por uma linguagem comum e as convenções vigentes para seu uso. O acusado passou a classificar como despropositada toda preocupação com a linguagem fora desses parâmetros. Ele se justifica afirmando que anteriormente estivera  preso a uma “imagem”, da qual não escapara antes porque  “ela residia em nossa linguagem, e esta parecia repeti-la para nós, inexoravelmente” (Investigações filosóficas, I, §115). Destruída tal imagem, dela só restou “blocos de pedras e entulhos”, o que não lamentava, porque o que fora destruído não passava de “castelos no ar” (Investigações filosóficas, I, §118). No passado, o acusado deixara-se levar pelo anseio de compreender a “essência da linguagem”, convencido de que termos como “linguagem”, “experiência”, “mundo”, desfrutassem de um estatuto especial, para depois descobrir, ao perceber que não há um “halo” em torno do pensamento, que os ditos termos, se têm “um emprego, este tem de ser tão modesto como (o das) palavras ‘mesa’, ‘lâmpada’, ‘porta’” (Investigações filosóficas, I, §97). O engano lhe fora induzido por uma “gramática superficial” (Investigações filosóficas, I, §664).

Abandonado o ideal de uma linguagem perfeita, trata-se agora de reconhecer que a linguagem é apenas uma questão de uso das palavras, pois “todo signo, sozinho, parece morto. O que lhe confere vida? – Ele está vivo no uso. Ele tem em si o hálito da vida? – Ou é o uso o seu hálito?” (Investigações filosóficas, I, §432; grifos de Wittgenstein).

Ao interromper a presente investigação neste passo, esperando logo retomá-la, não me furto a transcrever uma das frases finais que o acusado, sempre desafiador, escreveu para o prefácio das Investigações filosóficas: “Com meu escrito não pretendo poupar aos outros o pensar. Porém, se for possível, incitar alguém aos próprios pensamentos.”


 João da Penha
autor de O que é existencialismo (Brasiliense), Períodos filosóficos e Wittgenstein (ambos pela Ática), além dos inéditos Proust e Bergson: Aproximações e confrontos e O marxismo de Sartre.

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