O enigma de Hannah

O enigma de Hannah
Munique, 1958 (Acervo do Museu Histórico Alemão, Berlim / Foto: Barbara Niggl Rodloff)

 

Hannah Arendt sempre recusou, ao longo de sua vida, o título de filósofa, preferindo o de cientista política. Quem, entretanto, se envolve com a leitura de seus livros dificilmente deixa de reconhecer neles os traços típicos de uma reflexão de cunho filosófico. Dada a profundidade e o alcance de sua obra, Hannah Arendt é hoje a única mulher cujo acesso à imortalidade, ao Olimpo das letras, não foi negado por seus pares masculinos. Por que, então, não obstante todo esse reconhecimento, Hannah Arendt recusava para si a designação de filósofa? Seria a sua recusa uma forma de crítica velada à própria filosofia, ao modo como esta é ministrada nas instituições de ensino? Ou estaria ela usando, como Sócrates, o recurso da ironia? No que se segue, proporei uma solução para o “enigma de Hannah”.

A minha hipótese para a solução do enigma é a de que Hannah Arendt se utiliza de um importante argumento filosófico para recusar o brilho da titulação de filósofa. Segundo ela, a separação da filosofia da política, após a morte de Sócrates, conduziu a filosofia exclusivamente à vida contemplativa em detrimento da vida ativa. A vida contemplativa passou a ser o lugar privilegiado no qual o ser humano poderia superar as suas limitações naturais, sair do campo do necessário e adentrar no da liberdade. Mesmo reconhecendo a importância desse fato histórico e tendo analisado em A condição humana, de 1958  (Forense Universitária Editora), com bastante isenção a repercussão desse fato no rumo do pensamento filosófico, Hannah Arendt não deixou de apontar, ao meu ver, para a preferência que dava ao estágio anterior, no qual filosofia e política andavam juntas. Penso, portanto, que esta é a maior razão de ter recusado o título de filósofa. Não aceitar esta denominação para si e se auto-intitular cientista política, não estava negando todo e qualquer envolvimento com a filosofia, atitude que seria considerada absurda por quem conhece sua obra, mas sim recuperando um sentido mais autêntico a ela. “Política” é aqui compreendida no sentido grego de “vida pública dedicada à disputa por meio da palavra”, e não no sentido moderno de “governo”.

Embora a morte de Sócrates tenha levado Platão a se desiludir com a política e tal desilusão tenha impregnado profundamente a atmosfera filosófica da Academia, o discípulo dileto de Platão, Aristóteles, cuja obra tem igual ou maior envergadura que seu mestre, soube analisar com isenção o significado da vida pública grega no tratado A política. A partir de uma análise primorosa desta obra, Hannah Arendt recupera a compreensão grega do significado da vida pública e explica a razão do valor máximo que a ela é atribuído pelos gregos.

O tratado aristotélico A política é considerado por muitos como uma obra reacionária, pois, nela, Aristóteles justifica a empresa da escravidão e o alijamento da mulher da esfera pública e sua permanência exclusiva na esfera doméstica. Hannah Arendt, ao contrário, vê nesta obra um grande tratado sobre o modo de vida grego. Aristóteles não o escreveu como partidário de nenhuma causa específica, mas como testemunha ocular de um modo de vida único.

Como se sabe, a sociedade grega dividia-se em três classes, a dos cidadãos livres, a dos comerciantes e artesãos, e a dos escravos e mulheres. Somente a primeira classe, a dos cidadãos, tinha direitos políticos, isto é, quem pertencesse a este grupo podia participar da esfera pública, sendo que o que a caracterizava era a ação (praxis) política. Para participar dela, o cidadão deveria estar apto a usar o discurso (logos) para com ele defender determinadas posições e causas. Essa esfera era chamada “pública” porque só existia dentro da comunidade de homens livres (não há, por exemplo, esfera pública na qual o homem vive em isolamento ou sob o julgo de uma tirania). A ação política consistia no ato de encontrar as palavras adequadas no momento certo. Seu efeito era o convencimento pela palavra, ao invés da força. Os gregos consideravam a vida pública uma segunda vida, além da vida privada. Ao contrário desta, na vida pública ativa é dada ao homem a possibilidade máxima de imortalidade através da rememoração posterior, pelas futuras gerações de seus atos nobres.

O grande drama do homem grego era o da imortalidade. Sua condição animal lhe obrigava a obedecer às necessidades de sua natureza, como a alimentação e a procriação, porém, se reduzisse sua vida à luta cíclica, repetitiva, pelos meios para satisfazer suas necessidades, jamais teria tempo para dedicar-se a sua segunda “natureza”, a política. Por isso, criou-se a instituição da escravidão e da vida doméstica. Cabia aos escravos cuidar das atividades domésticas de plantio a fim de fornecer a si e aos outros os meios de subsistência e cabia às mulheres cuidar da reprodução e criação dos filhos. Só assim podia o homem livre dedicar-se aos negócios públicos que lhe garantiriam o direito à imortalidade – à transmissão oral de seus feitos através das gerações vindouras. Ao livrar-se da necessidade constante e repetitiva de produção e consumo, o homem desafiava a natureza e tornava-se senhor de si – graças, é claro, ao trabalho escravo e doméstico. Distanciados das preocupações com a utilidade que guiava a ação dos artesãos e com a satisfação das necessidades naturais, podia o cidadão grego interagir livremente com os outros cidadãos por meio de grandes palavras e sem uso da violência. 

O julgamento e a condenação de Sócrates provocou, do ponto de vista da filosofia, a ruptura desta com o ideal de vida pública. A imoralidade da condenação pública de um homem inocente levou a filosofia a distanciar-se dos homens e voltar-se para a contemplação do cosmos, da natureza, das ideias… A imortalidade mais sublime não seria, aos olhos dos filósofos, a que era almejada pelas ações políticas, mas, sim, a almejada pelo pensamento. Uma vez que o fluxo de pensamento fosse momentaneamente interrompido, as ideias seriam rememoradas e concatenadas segundo uma ordem lógica para, finalmente, serem transpostas para alguma forma de materialidade.

Vê-se aqui que essa ruptura entre a filosofia e a política inaugura um novo modo de o cidadão livre lidar com a limitação de sua natureza mortal. A escrita, e não a lembrança, passa a ser o modo a partir do qual o homem livre culto almeja sua imortalidade. Para os filósofos gregos desta época, o real objetivo do pensamento deveria ser a vida contemplativa e não a redação de tratados (atividade secundária). Acreditava-se que o ápice da vida contemplativa seria o alcançar da experiência do indizível, do eterno. Tal experiência só poderia ser alcançada longe da esfera pública, em isolamento. Ao contrário da experiência da imortalidade por meio do trabalho ativo de perpetuação das ideias na escrita, a experiência contemplativa do eterno é feita em completa imobilidade e silêncio, quase como uma experiência mística.

Hannah Arendt mostra em A condição humana como o advento da era moderna trouxe uma completa inversão deste quadro com a eliminação da separação entre as esferas pública e privada. O interesse individual sobrepujou o interesse coletivo (a esfera pública deveria, agora, atender aos interesses da esfera privada) e a preocupação do cidadão comum passou a ser a manutenção e o aumento de sua propriedade e riqueza, sem que o Estado em nada possa prejudicá-lo. Ao mesmo tempo em que nessa época a subjetividade é descoberta, e com ela todas as formas de intimidade, relacionamento do indivíduo consigo mesmo e individualidade passam a ser evidenciadas, também ocorre a valorização de uma esfera nova da vida ativa, a saber a esfera da objetualidade. As grandes cidades europeias passam a ser centros de economia manufatureira e industrial. A atividade principal da economia humana passa a ser a do artífice, que produz com suas mãos um produtor para ser usado. Agora a imortalidade não é mais alcançada pela narrativa das grandes palavras dos grandes homens, mas através da durabilidade dos objetos criados pelos homens. Tais objetos são feitos para uso, mas seu material lhes permite uma maior durabilidade e uma existência mais longa do que a do seu artífice.

Vivemos, hoje, ainda em uma sociedade moderna, cujos interesses privados e individuais se sobrepõem aos interesses coletivos (não existe entre nós, infelizmente, quase nenhum vestígio de uma esfera pública, tal qual os gregos a conheceram). Se, por um lado, a revolução industrial e a atual revolução tecnológica trouxeram um nível de conforto material e de riquezas jamais vistos, por outro lado, vivemos uma situação semelhante aos escravos da Grécia Antiga, que viviam somente para produzir e consumir. A nossa sociedade de consumo nos estimula a consumir desenfreadamente, isto é, a comprar e jogar fora logo em seguida o que acabamos de adquirir, para que possamos voltar à cadeia consumidora. Desta forma, preso às necessidades da nossa natureza (e bombardeados pela da publicidade com necessidades que nem imaginávamos ter), deixamos de lado a segunda vida, a vida para a imortalidade, tão elogiada pelos gregos. O que ganhamos em troca? A cada vez que aumenta nossa vontade de consumo, cresce o nosso vazio existencial.

Penso que ao se dizer cientista política e não filósofa, Hannah Arendt estava sub-repticiamente chamando nossa atenção para a falta que faz a esfera pública, na qual o interesse público se sobreponha ao privado e tenha a palavra um sentido de ato e não só de reflexão. TEXTO ORIGINALMENTE PUBLICADO NA EDIÇÃO 99


SUSANA DE CASTRO é doutora em filosofia, professora da UFRJ e vice-coordenadora do GT-Pragmatismo e Filosofia Americana, da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPF)

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