Entre o engajamento e a sátira de George Orwell
O escritor George Orwell na BBC, em 1940 (Foto: Reprodução)
Mesmo entre as pessoas que conviviam com o escritor George Orwell, poucas conheciam seu nome verdadeiro, tamanha a força com que esse pseudônimo se incorporou à sua identidade. Por isso hoje, o nome de batismo do autor, Eric Arthur Blair, ainda é quase desconhecido. Nascido em Motihari, Bengala, na Índia sob dominação inglesa, em 25 de junho de 1903, sua mãe tinha ascendência francesa, e seu pai era um funcionário civil da marinha britânica, trabalhando no departamento de controle do ópio. O garoto, que descobriu sua vocação literária com cinco ou seis anos, foi educado na centenária e aristocrática Academia de Eton, onde também estudaram escritores como Horace Walpole (1717-1797), considerado o pai da literatura gótica, e o contemporâneo de Blair, Aldous Huxley (1894-1963). Desde cedo, o jovem Blair, que admirava Shakespeare, Swift, Dickens, Jack London e Zola, dava mostras de sua decepção com a sociedade de que fazia parte, revelando uma precoce rebeldia intelectual.
Aos 19 anos, ingressou na polícia imperial britânica, tendo passado os cinco anos seguintes entre a Índia e a Birmânia. Esse período foi decisivo para a consolidação de sua revolta contra a política opressora que a Inglaterra adotava em relação a suas colônias, levando-o a desertar por volta de 1927. Em suas próprias palavras: “Servi na polícia das Índias durante cinco anos, ao longo dos quais passei a odiar o imperialismo, que eu próprio servia, com uma força que ainda hoje não sei explicar.” Da experiência resultariam alguns de seus ensaios iniciais, como “O enforcado” e “Disparando contra um elefante”, além de seu primeiro romance, Dias na Birmânia, que seria publicado em 1934. A propósito, aquele país, mesmo após décadas de dominação colonial, manteve um regime totalitário que lhe valeu, em 1992, uma condenação da ONU.
De volta à Europa, Blair renegou sua origem, bem como sua fortuna e o próprio nome, por considerá-los vergonhosos. Adotou o pseudônimo de George Orwell e passou a viver como operário de fábrica em Paris e, depois, como professor primário em Londres. Conheceu de perto a pobreza e a falta de liberdade, condições de vida profundamente desiguais. Em 1934 sairia seu relato Vencido em Paris e Londres (cujas palavras do título original, down and out, também já foram traduzidas como na pior), denunciando com veemência a contradição dos intelectuais e escritores que, embora se afirmassem revolucionários, eram burgueses na prática. Tempos difíceis também para o escritor, que em 1935 publicou A filha do reverendo e, em 1936, Keep the Aspidistra flying: um de seus primeiros trabalhos recebeu da crítica o amável comentário de que ele escrevia “como uma vaca com uma espingarda”.
Pegando em armas
Alguns anos mais tarde, Orwell já melhorara sua escrita e começava a ser reconhecido como um escritor de talento, adotando atitudes cada vez mais radicais em defesa das classes sociais menos favorecidas. Assim, engajar-se na Guerra Civil Espanhola, que começou em 1936, era para ele uma oportunidade de participar da história. Conforme suas próprias palavras, “naquela época, e naquela atmosfera, isso pareceu a única coisa que podia fazer”.
Em 1937, publicaria O caminho para Wigan, que narra a extrema miséria em que vivem os trabalhadores das minas do norte da Inglaterra, entre os quais ele também viveu. Nesse livro, afirmou que desejava “escapar de toda forma de dominação do homem sobre o homem”. O livro incomodou a esquerda, pelas críticas ao socialismo britânico. No mesmo ano, foi para a Catalunha, onde se alistou para lutar contra o fascismo ao lado dos anarquistas do Partido Operário de Unificação Marxista, o POUM. Após receber treinamento militar básico, foi para a frente de batalha. Mas a perseguição sofrida ao lado dos companheiros nas ruas de Barcelona por parte dos comunistas, que deviam ser seus aliados, acabou revelando o terror e o caráter duplo da posição dos russos.
Foi promovido por mérito a tenente, tendo dado baixa após um ferimento a bala no pescoço, quando o boletim informava: “Respiração absolutamente regular. Senso de humor intacto.” Voltou à Inglaterra, tendo escrito em 1938 Homenagem à Catalunha (publicado no Brasil como Lutando na Espanha), sobre um agente russo que tinha como missão difamar o POUM como formado por traidores franquistas. Dizia Orwell, com a mordacidade e a ironia que lhe eram características: “Foi a primeira vez que conheci um homem cuja profissão era mentir, a menos que contemos os jornalistas.” A frase também reflete sua insatisfação com a diferença entre sua percepção dos acontecimentos políticos daquele período entre os dois conflitos mundiais e a visão que a imprensa de esquerda da Inglaterra tentava transmitir.
A partir desse livro, que retrata seu amargo e desencantado testemunho ocular da guerra, consolida-se seu objetivo literário. Este, como o autor afirmaria no ensaio Por que escrevo, de 1946, era o de “transformar a escrita política em arte”. E acrescenta: “O meu ponto de partida é sempre um sentimento de partilha, uma noção de injustiça. Quando me sento para escrever um livro, não digo para mim, ‘vou produzir uma obra de arte’. Escrevo porque existe alguma mentira para ser denunciada, algum fato para o qual quero chamar a atenção, e penso sempre que vou encontrar quem me ouça. Mas não seria capaz de escrever um livro, ou um longo artigo de revista, se não existisse também aí uma experiência estética.”
Ainda em 1938, contrai tuberculose e passa uma temporada no Marrocos, onde escreve a novela Coming up for air, publicada em 1939, ano em que começou a guerra mundial. Orwell pensou em lutar, mas foi declarado fisicamente inapto.
Decepção e indignação
Depois de sua intensa vivência espanhola, ele se mostrou decepcionado com os partidos comunistas, em sua estrutura rígida e obediência irrestrita a Moscou. Se, por um lado, sua postura de socialista revolucionário se fortaleceu, ao mesmo tempo cresceu nele o anti-stalinismo, levando-o a uma espécie de socialismo independente.
Em 1941, trabalhando para a BBC, escreveu o ensaio “O leão e o unicórnio”, em que abordava “o socialismo e o gênio inglês”. Bem ao gosto dos socialistas de seu tempo, defendia a nacionalização “da terra, das minas, das estradas de ferro, dos bancos e das principais indústrias”. Ainda durante a guerra, serviu na Home Guard, um corpo civil para defesa local.
Ao lado do fascismo e do imperialismo, um dos grandes inimigos de Orwell era a desonestidade de propósitos dos que, no Ocidente, apoiavam o regime comunista de Stálin, em especial quando, na Segunda Guerra, a União Soviética se aliou ao Ocidente contra Hitler. Atitudes politicamente ambíguas causavam nele grande indignação.
Em 1943, tornou-se editor literário do jornal Tribune e começou a compor uma fábula bem elaborada sobre o totalitarismo e o aburguesamento da Rússia. Ali, os comunistas eram representados pelos porcos de uma fazenda inglesa dirigida por animais: A revolução dos bichos; no original, Animal farm. Afinal, naquela circunstância, “estar disposto a criticar a Rússia e Stalin é a prova da honestidade intelectual”, afirmou em agosto de 1944.
Vários editores britânicos se recusaram a lançar o romance, temendo criticar o aliado inglês na guerra. Inclusive o poeta T.S. Elliot, influenciado por um espião russo, acabou desaconselhando a publicação ao editor Jonathan Cape. Finalmente, o livro acabou saindo, em 1945 (e, no ano seguinte, nos Estados Unidos). Foi um acontecimento literário, que ajudou a alertar o Ocidente sobre a verdadeira natureza do regime de Moscou.
Aqui o autor supera definitivamente a trama frequentemente pobre de suas primeiras novelas, tratando com desenvoltura seu argumento, num cenário que lhe era muito familiar. Afinal, vivera no campo, pelo qual era apaixonado, no fim dos anos 1930. Constrói dessa forma uma sátira atemporal, que tem no centro uma dura crítica à corrupção pelo poder, indo do particular para o geral. Essa habilidade, aliás, constitui um dos pontos fortes da obra de Orwell, principalmente nos ensaios sobre política. Emblemática em A revolução dos bichos é a frase “todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais que os outros”.
Em que ano estamos?
Com o fim da guerra, foi para uma ilha na costa escocesa. Lá, a temática da condenação veemente ao autoritarismo de todos os gêneros seria ainda mais aprofundada na obra que viria a ser a última e a mais conhecida do autor: 1984, que guarda semelhanças com o Admirável mundo novo (1932), de seu companheiro de escola em Eton, Aldous Huxley. Nela, Orwell imaginou uma sociedade futura em que uma simples ideia podia ser considerada crime. Nesse ambiente opressivo, os indivíduos eram permanentemente vigiados por teletelas, sentindo-se invadidos até em seus pensamentos. No controle de tudo, o chefe supremo do partido, o Grande Irmão (no original, Big Brother). Precisando situar esse regime totalitário num futuro longínquo, o autor inverteu os dois algarismos finais do ano em que escrevia, 1948. Sob essa atmosfera de horror, o personagem principal, Winston Smith, é um funcionário do Ministério da Verdade, encarregado de criticar a imprensa, modificando o passado para que o Partido permaneça no poder.
Embora A revolução dos bichos seja considerado por muitos críticos como mais bem realizado do ponto de vista literário, 1984 é bem mais que um panfleto. Todavia, há autores como Milan Kundera que, negando-lhe a condição de romance, procuraram classificá-lo no estranho gênero de “pensamento político encapotado”.
George Orwell é um dos mais influentes escritores políticos do século 20, dado o alcance histórico e geográfico de sua literatura. A propósito, a expressão guerra fria, que marcou a segunda metade do século, apareceu pela primeira vez num artigo de Orwell, de acordo com o registro do Oxford English Dictionary.
O escritor morreu precocemente em Londres, em 21 de janeiro de 1950, com 47 anos incompletos. Antes, porém, envolveu-se num rumoroso episódio no qual, segundo alguns historiadores, ele teria denunciado ao governo britânico 130 suspeitos de comunismo. Outros acreditam que Orwell apenas forneceu uma lista de 35 nomes com o objetivo de que essas pessoas não fossem utilizadas para receber propaganda anticomunista.
Passados vinte anos de 1984, são vários os pontos de contato da ficção orwelliana com a realidade atual, indicando o caráter visionário do autor. Orwell merece ser lido, mais que por interesse histórico, pelas exemplares honestidade, coragem e fidelidade aos ideais em que acreditava. “Capaz de exagerar com a simplicidade e a inocência de um selvagem”, como disse Pritchett ao resenhar O leão e o unicórnio, o autor tem uma importante lição a nos transmitir sobre engajamento e paixão na literatura. Isso é ainda mais verdadeiro num tempo de individualismo e apatia em que os valores parecem esgarçados e as causas que sempre moveram os homens, dispersas.
SERGIO AMARAL SILVA é jornalista e escritor, ganhador em 2002 do Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos na categoria Literatura, é autor dos livros de poemas Vida felina e Humano coração