O papel dos juízes no grande encarceramento: um estudo sobre sentenças de tráfico

O papel dos juízes no grande encarceramento: um estudo sobre sentenças de tráfico
Pesquisa conduzida por Marcelo Semer sepulta definitivamente a ideia de leniência por parte dos juízes (Arte Revista CULT)

 

A política criminal brasileira para as drogas conseguiu a proeza de reunir todos os defeitos: não ajudou a reduzir o consumo e manteve a distribuição em pleno crescimento; não cuidou efetivamente da saúde pública e produziu um desgaste sem precedentes nas forças policiais, além de ter impulsionado de forma contundente o encarceramento. Enquanto o homicídio mal representa 10% dos presos, quase um terço deles estão atrás das grades em razão do tráfico.

Embora o momento político não enseje qualquer fragmento de esperança, dos idealistas aos pragmáticos, a convicção de que algo não vai bem com a política de drogas, é razoavelmente consensual. Mas sempre há aqueles que se aproveitam, política, econômica ou criminosamente mesmo, daquilo que Jeffrey Reiman chamou de Derrota de Pirro: um sistema que se valoriza, sobretudo, pelos seus fracassos.

É o medo do crime que vitamina os investimentos em segurança, tanto os públicos quanto os privados. Do lado de dentro das celas, o encarceramento é pré-requisito para o empoderamento das facções criminosas; para as opções externas, comunidades terapêuticas se fortalecem à custa das internações compulsórias.

E os juízes, que papel representam no teatro de operações desta guerra às drogas?

O vertiginoso crescimento dos presos após a Lei Antidrogas de 2006 dá uma pista importante.

Embora a lei tenha excluído a prisão do mero usuário, ao mesmo tempo em que distinguiu punições entre grandes e pequenos traficantes, até esses tímidos pontos acabaram perdendo relevância na vida real.

A uma, porque a polícia continuou se concentrando nas prisões em flagrante, sem investigações, quando a chance de atingir executivos do crime é praticamente inexistente; a duas, porque sem critérios razoáveis, usuários são presos como traficantes. Ademais, os juízes resistiram, mesmo após decisões reiteradas do STF, a aplicar o privilégio, a fixar regime aberto ou substituir a pena privativa de liberdade por restritiva de direitos aos microtraficantes primários. Ao final, são justamente esses pequenos que lotam os cárceres, quando muito peões facilmente substituíveis, sem qualquer abalo ao comércio.

Os dados que apresento neste artigo foram fruto da pesquisa de meu doutoramento em Criminologia, recentemente defendido na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, que envolveu a análise de 800 sentenças de tráfico de drogas em oito Estado do país (SP, RS, PR, MG, BA, MA, GO e PA), entre o segundo semestre de 2013 e o primeiro de 2015. É possível entender um pouco melhor o papel dos juízes neste processo e aquilatar a responsabilidade que têm pela formação de um grande encarceramento – aliás, das maiores populações prisionais do mundo, a brasileira é a única que continua em pleno crescimento.

O primeiro dado situa quem são os “traficantes”, os réus destes processos: pelo menos dois terços deles são pobres (número que só não é maior pela falta de dados em muitas sentenças); 80% são primários. Em pouco mais de 70% dos processos, há apenas um réu envolvido (a média geral é de 1,52 acusados por processo, ou seja, nem chega a dois). Menos de 10% das pessoas presas foram encontradas com armas de fogo. As apreensões de dinheiro, quando existem, são em regra pouco expressivas: a média não passa de R$ 266,00, sendo que 67% das apreensões se dá com menos de 10% do salário mínimo.

Como se prende é outro dado significativo: cerca de 89% dos processos se iniciam com a prisão em flagrante – em 70% deles, pelos policiais militares. Pouco mais de 10% dos casos se iniciaram com investigações prévias, que levaram, por exemplo, a buscas e apreensões domiciliares ou interceptações telefônicas. O forte mesmo são as ações de patrulhamento, nos quais a seletividade das abordagens é historicamente conhecida.

Concentrar a prisão nas ruas significa deixar de lado a droga de grandes transações ou mesmo as festas privadas. O pobre é, efetivamente, o grande alvo da abordagem policial – e, embora, a pesquisa em si não tenha tido recorte racial, em face da ausência de informações nas sentenças, sabe-se, por outros levantamentos, que o assédio é muito maior sobre a população jovem e negra.

Por fim, o que se apreende: 97% das drogas entre as três mais recorrentes são maconha, cocaína em pó e na forma de crack. Os volumes são díspares, mas prevalecem as pequenas apreensões: 56% a 75% abaixo de 100g (maconha) ou 50g (cocaína e crack); medianas respectivamente de 66,1g de maconha, 30,66g de cocaína e 13,36g de crack. Mesmo nas grandes apreensões (2,5% dos casos acima de 10kg), as prisões são, em regra, das pessoas de menor expressão, como o motorista que transporta a droga, ou o cuidador do barraco onde ela é alojada. Quase não há prisão por venda, remessa ou importação da droga. As condutas incriminadas são as mais próximas à posse e estocagem: ter consigo e guardar.

Apesar deste quadro relativamente minimalista, os resultados das sentenças impressionam: média de 78% de condenação; pena-base fixada no mínimo apenas em 52% dos casos; pena definitiva três vezes superior a menor pena possível (1 ano e 8 meses de reclusão). Apesar da baixa reincidência e da pouca denúncia por associação, o redutor do tráfico é empregado apenas em 44% dos casos e no seu patamar maior (2/3 da pena), só em 20% dos processos. Não obstante o STF tenha expressamente permitido aos primários a substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos, apenas 16% a fixam e o regime mais comumente empregado ainda é o fechado (68%).

Para a análise qualitativa, resgatei de Stanley Cohen, o conceito de pânico moral: o alarde, a desproporção, o perigo iminente que ameaça a sociedade, a estereotipação do inimigo público (folk devil), a necessidade imperiosa de providências que possam minorar os efeitos maléficos, o enrijecimento das agências de controle e, ainda assim, a amplificação do desvio.

Todos os elementos são encontradiços na pesquisa, a começar pelo julgamento com base em crenças generalizadas, a caracterização do traficante como verdadeiro folk devil, que a nada faz jus, e consequente falta de individualização. Em muitos casos se conclui que os juízes estão julgando não os réus, mas o próprio crime de tráfico. Seus fundamentos são assim indicativos: “O narcotráfico é o flagelo da humanidade. Semeia terror e morticínio”; “O tráfico é uma das condutas mais danosas que existe no seio da sociedade moderna”; “Nefastas são as suas consequências, eis que promove a decadência dos valores”; “Inexiste delito mais odioso”; “Coloca em risco a própria existência sadia da humanidade”.

Entre os resultados surpreendentes, uma enorme diferença regional. Estados de maior porte, como SP, MG e RS aplicam em menor escala os parâmetros do STF e, portanto, as penas são mais severas do que as aplicadas por Estados como Maranhão e Bahia, que seguem o STF com mais frequência.

Esta inusitada diferenciação regional, que seria compreensível em um país de legislação estadualizada (como os EUA), é incompatível com nossos instrumentos de federalização: uma legislação que é de competência exclusiva da União e tribunais superiores com a incumbência de unificar a interpretação destas normas. E isso só tende a piorar com a manutenção da “prisão em segundo grau”, pois autorizar o início da execução pelo julgamento local, apenas consolida a regionalização e praticamente inutiliza a jurisprudência dos tribunais superiores – com decisões mais garantistas, apenas para inglês ver.

Nessa distinção regional, deve-se observar, São Paulo é uma espécie de Texas brasileiro. Seu apenamento é bem mais severo (muito mais regime fechado e quase nada de restritiva de direitos), ao mesmo tempo em que os índices que possam apontar para a gravidade dos fatos são os menores.

Pela pesquisa, o Estado lidera o índice de apreensões de dinheiro de baixo valor (97% abaixo de um salário mínimo); apresenta média de apenas 1,31 réus por processo (o menor índice de coautoria entre os Estados pesquisados); 7% de investigações (o segundo menos investigativo); menos de 5% de armas apreendidas (o menor índice entre os oito Estados), 8% de apreensão de balança de precisão (também o nível mais baixo). São Paulo lidera, ainda, o maior índice de pequenas apreensões de crack (82% de apreensões inferiores a 50g) e é o segundo Estado em que nos processos mais se apreende quantias pequenas de maconha (67% de apreensões inferiores a 100g).

Por outro lado, é o líder em condenações (85% para uma média de 78%) e o que menos absolve (9% para uma média de 15%). É o Estado com penas em regime fechado em maior proporção, de longe (89%, de uma média de 68%) e o que menos aplica as penas restritivas (5%, de uma média de 16%), sendo que 34% das rejeições de aplicação não se fazem por nenhum impeditivo legal. Não é preciso muito para compreender a força estatística da maior severidade em São Paulo, onde já se localizam cerca de um terço dos presos.

No que diz respeito à prova, ela é quase toda construída sobre as palavras dos policiais. Tidos como portadoras de fé pública ou legitimidade sempre presumida (numa confusão com o conceito que é próprio ao direito administrativo), o que quer que digam tem uma “especial eficácia probatória”. Tudo que é contrário a seus relatos, está “isolado” nos autos.

Enfim, os policiais são críveis, quando coerentes, são tolerados quando contraditórios e são auxiliados quando desmemoriados; não resta mais do que o mero aval policial para desencadear a persecução e fixar bases para a condenação. Do outro lado, o desprezo absoluto pela versão e testemunhos de defesa (repelidas em abstrato pela parcialidade) além de mecanismos que privilegiam a inversão do ônus probatório –como a necessidade do próprio réu de fazer a prova diabólica de que a droga apreendida consigo teria exclusivamente a finalidade de consumo.

Os juízes funcionam sob a órbita dos estados de negação também estudados por Stanley Cohen: sabem e ao mesmo tempo não sabem dos vícios que são imputados aos policiais.

Os exageros do pânico moral, que vitaminam prisões e condenações com fundamentações genéricas se casam com os silêncios acerca das atrocidades. Pouco importa que os policiais brasileiros sejam os mais violentos contra a população civil no mundo: em suas mãos, e só nelas, os juízes depositam a confiança para julgar os crimes que reputam de maior gravidade.

A pesquisa sepulta definitivamente a ideia de leniência por parte dos juízes. Para o bem ou para o mal, é importante destacar que o quociente de encarceramento se dá em razão deles mesmos, inclusive e principalmente quando há alternativas menos draconianas na lei.

Isto pode ser um começo de explicação para o fato de que o crescimento prisional não se distinguiu tanto entre os diversos governos desde os anos 1990, quando começa a crescer vertiginosamente. O que significa dizer que a alteração política não define todos os passos no horizonte do encarceramento – embora, é óbvio, sempre possa atrapalhar bastante.

Há um ator importante, cujo estudo vinha sendo negligenciado pelos modelos que se debruçaram para entender o grande encarceramento: o juiz. É preciso prestar mais atenção nele para compreender que a política de drogas não se exaure na produção de uma lei.

MARCELO SEMER é juiz de Direito e escritor. Mestre em Direito Penal pela USP, doutor em Criminologia pela USP, é também membro e ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia.


> Leia a coluna Além da Lei toda segunda-feira no site da CULT

(3) Comentários

  1. Gostei do artigo. São fatos conhecidos pela comunidade de operadores do Direito Penal. Contudo, como mudar algo que é cultural e arraigado na sociedade brasileira?

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