A embriaguez da liberdade trágica

A embriaguez da liberdade trágica

 

Em cartaz no Teatro do Sesc Santo Amaro até o próximo dia 25 de abril, 2 X 2 = 5, O homem do subsolo constitui uma daquelas raras oportunidades em que, na condução de um espetáculo, um grande intérprete se serve de um grande texto e é igualmente provido por ele. Muito além de sua aparente simplicidade, a encenação – que conta com a dramaturgia de Stefano Geraci e a direção de Roberto Bacci, ambos do Teatro Della Toscana – mergulha fundo na desafiadora natureza, monológica na superfície, mas essencialmente polifônica, dos heróis das novelas de Fiódor Dostoiévski (1821-1881), concebendo uma experiência estética das mais consequentes no atual panorama teatral paulistano porque calcada, sobretudo, na radicalidade do pensamento e da palavra.

Publicada em 1864, Memórias do subsolo foi escrita durante a agonia da primeira mulher do escritor, Maria Dmitrievna, morta de tuberculose naquele mesmo ano, e marca, segundo a crítica especializada, o ponto de virada de Dostoiévski rumo à maturidade literária, ao período que o biógrafo Joseph Frank veio a chamar de “anos miraculosos”, por reunirem obras-primas como Crime e castigo (1866), O idiota (1868) e Os demônios (1871). Se a novela de um autor cuja obra fez o século XIX antecipar as malhas psicológicas que iriam servir de base aos tortuosos exames da consciência vigentes no século seguinte ainda é capaz de exercer forte atração sobre o leitor contemporâneo, a explicação mais plausível para isso reside na natureza sui generis do material por intermédio do qual o escritor russo trata da subjetividade aguerrida e violenta exalada por um “memorialista do subterrâneo” que, sem sombra de dúvida, encontra-se muito próximo de nós. Talvez exista escondida em nossa interioridade mais profunda uma voz apta a reconhecer que a consciência daquele “desagradável paradoxalista” equivale, neste início de século XXI, à nossa própria consciência. Quem sabe o fio narrativo dessas Memórias do subsolo não nos enrede tão habilmente somente porque vimos exercitando há um bom tempo a mesma subjetividade embriagada que nos impele a saltar, com as devidas doses de orgulho e soberbia, rumo ao abismo da liberdade trágica que diariamente estende seu atraente tapete púrpura sobre nossos pés.

Conduzido por Cacá Carvalho com admirável controle sobre o corpo e a voz, o espetáculo sabe tirar partido muitíssimo bem de toda a dramaticidade latente que subjaz no texto original, a começar de seu acentuado caráter confessional. Tanto a idealização do espaço (a cargo de Roberto Bacci) e a criação do cenário (por Márcio Medina, também responsável pelos figurinos), como as concepções da luz (por Fábio Retti) e da música (por Ares Tavolazzi) concorrem para instaurar um clima de revelação de verdades que incomodam, doem, dilaceram. (Não à toa, Dostoiévski pensou inicialmente em batizar a novela de Confissão).

A partir das três auto-enunciações confessionais iniciais (“Sou um homem doente… Um homem mau. Um homem desagradável.”), o intérprete entra em estreita relação com a plateia, convertendo sua fala em uma espécie de antecipação do discurso que o espectador, por sua vez, possa produzir a respeito do personagem – movimento este diligentemente escrutinado por Mikhail Bakhtin em Problemas da poética de Dostoiévski: “Na confissão do ‘homem do subsolo’, o que nos impressiona acima de tudo é a dialogação interior extrema e patente: nela não há literalmente nenhuma palavra monologicamente firme, não-decomposta. Na primeira frase o herói já começa a crispar-se, a mudar de voz sob a influência da palavra antecipável do outro, com a qual ele entra em polêmica interior sumamente tensa desde o começo”.

Não por outro motivo, Cacá Carvalho convida um espectador, escolhido aleatoriamente na plateia, a acompanhá-lo até o meio (melhor seria dizer “cerne”) da cena, onde este indivíduo irá testemunhar de modo íntimo e privilegiado, por um bom tempo, a série de confissões a serem proferidas, podendo, inclusive, reagir idiossincrasicamente a elas. Assim, fica estabelecida nossa relação de identificação com aquele espectador exposto aos olhos de todos. Seja pelo desejo secreto, dissimulado, que muitos de nós fomentamos para que tivéssemos sido os escolhidos; seja pelo mal disfarçado sentimento de alívio que experimentamos pelo fato de a escolha ter recaído sobre outra pessoa, tal sujeito que participa da cena junto ao protagonista somos nós mesmos. (Já que o papel de paradoxalistas da vontade também nos cai muito bem).

A dramaturgia optou aqui, naturalmente, por enxugar muitas das imagens e das ideias presentes no texto original, mas manteve preservadas as três principais linhas de força que estruturam tematicamente a novela. Passado o lirismo prosaico da primeira parte das Memórias (“O subsolo”), em que Ordinov dá vazão a muitas impressões esparsas, diluídas, de sua vida interior, refletindo até mesmo sobre uma dor de dente (“Pela matéria e o tema, a primeira parte de Memórias do subsolo é lírica. …Mas é uma lírica sui generis, análoga à expressão lírica de uma dor de dente”, observa Bakhtin), o espetáculo caminha para a narração de dois episódios bem marcados, que fazem parte da segunda metade da narrativa (“A propósito da neve molhada”). São eles, respectivamente, a refrega com os colegas de escola e o encontro com a prostituta Liza.

Em ambos os momentos, Cacá Carvalho também brilha, seja por sua magnética presença, seja pelo pleno domínio que exibe de seus recursos técnicos. Novamente sozinho no palco, o intérprete se entrega de corpo e alma ao centro nervoso deste espetáculo de sóbrio despojamento: a valorização da palavra. Não aquela palavra de retórica vazia, tagarela, meramente fática, que tanto espaço tem ganhado na sociedade informacional dos dias de hoje. De forma alguma. A palavra em nome da qual Cacá Carvalho empenha seu irrefreável talento advém da consciência, “essa doença”, segundo o próprio Ordinov, sobejamente aguda que identifica em sua própria lucidez a aniquilação de toda e qualquer ilusão com a qual a vida parece sempre menos soturna, ou pelo menos não tão esquálida. Tal palavra pulula na grande literatura e no grande teatro – essas formas profundas de sabedoria a que o homem da superfície dos dias de hoje não é dado mais conhecer.

Somente um intérprete com a espessa experiência artística que Cacá Carvalho vem acumulando há muitos anos pode enfrentar um texto de tamanha envergadura, encarnando diante de nossos olhos esse espírito satanicamente “subterrâneo” (da tradução francesa de 1886, L’esprit souterrain), a discorrer diante de nós sobre o mal da consciência. A esse respeito, vale invocar uma das mais belas páginas de nossa crítica literária, a de Augusto Meyer, desafiado a estabelecer uma correspondência imprevista entre as obras do autor de Os demônios e do nosso bruxo do Cosme Velho: “Animal de combate, o homem normal, homo faber, faz da inteligência um instrumento de ação, a sua atividade consciente ou inconsciente está voltada para o mundo exterior. E sob o ponto de vista pragmático, é um absurdo esse ‘bicho de unhas e dentes’ chegar a inverter a ordem do seu interesse vital, introvertendo-se. Porém, sendo o homem um monstro singular que inventa a cultura e o ócio, ainda se pode supor que a introspecção não passa de uma simples modalidade compensativa da ação. De tal modo necessita da luta, que não lhe basta o struggle for life, ainda que devorar-se a si mesmo. A não ser assim, como explicar em certos casos a evidente morbidez introspectiva?”.

2 x 2 = 5, O homem do subsolo é um espetáculo no qual um ator isolado em cena insula o monstro da consciência dostoievskiana diante de espectadores perplexos – eles também isolados em suas cadeiras e convidados, cada um a seu modo, a insular, por sua vez, suas demoníacas introspecções.

2 x 2 = 5, O homem do subsolo
Onde: Sesc Santo Amaro (Rua Amador Bueno, 505, Santo Amaro, São Paulo).
Quando: de 14 de março a 25 de abril (quintas e sextas, às 21h; sábados, às 20h).
Quanto: de R$ 6 a R$ 20.
Info: (11) 5541-4000.

 

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